Um dos segmentos que mais cresce e mais atrai investimentos no agronegócio brasileiro é também um dos que mais estão sujeitos à famosa insegurança jurídica, que volta e meia costuma assombrar empresários e produtores rurais no País.

Estamos falando dos “bioinsumos”, palavra que já está no dia a dia de quem trabalha com o agro, mas que, por incrível que pareça, ainda não tem uma legislação para chamar de sua.

O termo foi adotado oficialmente no Brasil quando o Ministério da Agricultura, em 2020, criou o Programa Nacional de Bionsumos, com foco no incentivo ao uso de insumos biológicos na agropecuária.

Na época, o Mapa descreveu bioinsumo como “qualquer produto, processo ou tecnologia de origem biológica — animal, vegetal ou microbiana — para uso na produção, no armazenamento ou no beneficiamento em sistemas agrícolas, pecuários, florestais e aquáticos”.

A questão é que o tema é muito amplo. Hoje envolve investimentos bilionários, que vão desde grandes multinacionais com tradição em agroquímicos, que passam a buscar soluções mais alinhadas com a sustentabilidade, até o produtor rural, que, na última década, multiplicou a quantidade de biofábricas dentro das fazendas, onde faz o seu próprio produto biológico, no processo chamado de “on farm”.

Para se ter uma ideia, a Aprosoja Brasil, que representa os produtores de soja e milho no País conta hoje com 240 mil produtores rurais associados. Deste total, pelo menos 15 mil agricultores possuem biofábrica nas fazendas.

“E esse número não para de crescer”, afirmou Leonardo Minaré Braúna, assessor técnico da Aprosoja, em conversa com o AgFeed.

Segundo um levantamento da Blink Inteligência de Mercado, na safra 2022/2023, os insumos biológicos movimentaram R$ 6,7 bilhões, com projeção de chegar a R$ 10,2 bilhões em 2027/2028, um aumento de mais de 50%.

No caso do controle biológico, é uma tendência que começou com o apoio da pesquisa agropecuária há muitos anos e com algumas iniciativas mais isoladas, nas últimas décadas, por parte de produtores e agrônomos que buscavam formas alternativas, mais eficazes e sustentáveis, para lidar com problemas como pragas e doenças.

Com a pandemia da Covid-19 e o início da guerra entre Ucrânia e Rússia, na sequência, Leonardo Braúna, da Aprosoja, diz que houve uma aceleração do interesse por biológicos nas fazendas. “Na época o mercado mundial parou, defensivos químicos não chegavam, tudo ficou muito caro, produtor acabou ampliando o uso”.

Quem montou sua biofábrica e passou a manipular microrganismos como fungos e bactérias na fazenda usou como base, do ponto de vista jurídico, uma lei que foi criada para o setor de orgânicos, em 2003, que permitiu essa atividade, também comum entre os produtores que optam por ter uso zero de agrotóxicos.

Já para a indústria de insumos agrícolas, mesmo que o produto contivesse microrganismos, praticamente só havia duas opções de legislação para registro: enquadrar-se como fertilizante ou então como um agrotóxico (o defensivo químico, como muitas empresas preferem chamar).

Mas o desenvolvimento de produtos cada vez mais tecnológicos e multifuncionais vem fazendo com que muitos dos itens que chegam ao mercado já não se enquadrem nessa legislação mais antiga, o que está apressando as discussões entre lideranças do agronegócio e parlamentares para que seja aprovada uma nova lei, específica para o tema.

O AgFeed conversou com a equipe de “Life Science” da Pinheiro Neto Advogados, um dos maiores escritórios do País, que acompanha a regulação de insumos agrícolas e está preocupada com a insegurança jurídica no setor de biológicos.

“Nos últimos anos convivemos com uma legislação que não tratava diretamente dos bioinsumos. Tinha legislação de fertilizantes, de agrotóxicos e outros tipos de produtos regulados pelo Ministério da Agricultura, como também produtos de uso animal, veterinários e de alimentação animal. Mas não existia nada específico que tratasse de bioinsumos”, conta Nicole Aun, uma das advogadas associadas da área.

No caso do on farm, ela diz que, a partir do decreto que permitiu a multiplicação dos produtos, embora ainda houvesse dúvidas do ponto de vista técnico e jurídico, “os produtores se acostumaram com essa realidade e sentem como uma espécie de direito adquirido em relação a isso”.

A pauta no Congresso Nacional

Dois projetos estão tramitando no Congresso Nacional com o objetivo de criar uma legislação específica para o setor de bioinsumos. Ambos datam de 2021, mas somente este ano passaram a ser “acelerados”.

Um deles é o PL 3668/2021, de autoria do senador Jacques Wagner (PT/BA), que já foi aprovado na Comissão de Meio Ambiente do Senado e enviado à Câmara dos Deputados.

O outro surgiu na Câmara Federal. É o PL 658/2021, do deputado Zé Vitor (PL/MG) que também chegou a passar por comissões.

Originalmente, o 3668 veio com uma proposta mais industrial e o 658 com foco na produção de biológicos on farm. Após ajustes, porém, atualmente ambos tratam das duas esferas, tanto regulação da indústria, quanto nas fazendas.]

“Os dois projetos de lei chegam com uma boa intenção, que é regular de forma específica produtos que não necessariamente se enquadram como agrotóxicos e nem como fertilizantes. Mas abriu-se um debate infinito sobre essas normas, que dividiu a sociedade, dividiu a indústria, politizou o debate e dividiu os agricultores que se utilizam de bioinsumos há muitos anos e que não querem ter esse direito restrito ou sujeito a limitações”, explicou Nicole Aun.

A advogada diz que as definições são muito genéricas, sobre o que é ou não é biológico e o que vai ser regulado de forma mais rígida ou não. “Temos visto uma grande aflição na indústria para entender em que ponto cada empresa se encaixa no projeto de lei”.

Um ponto, porém, está no centro das divergências entre as próprias indústrias. A CropLife Brasil, que representa as grandes multinacionais, inclusive as maiores de químicos como Bayer, Corteva, Syngenta e Basf, defende que os registros de novos produtos biológicos, em alguns casos, passem por uma análise não apenas do Ministério da Agricultura, mas também de órgãos como Anvisa e Ibama.

“Entendemos que alguns produtos, a exemplo de novos produtos de controle de pragas e doenças, a critério do Ministério da Agricultura, deveriam ser sim avaliados pelo Ibama e pela Anvisa, porque estamos falando de produtos vivos, fungos, vírus, bactérias, que precisam ter seu risco avaliado pelos três órgãos” afirmou Eduardo Leão, diretor presidente da CropLife Brasil, em áudio enviado ao AgFeed.
Ele ponderou que a maior parte dos produtos não precisaria dessa avaliação, mas defende que fique com o Mapa a prerrogativa de sugerir quais são os produtos que precisam passar pelos outros órgãos ou não, “dependendo do seu uso, dependendo de seu nível de risco”.

Para outras entidades do setor, como a Abisolo, que tem 150 associadas, desde pequenas empresas de biológicos até grandes do setor de fertilizantes, essa avaliação “tripartite”, no caso dos bionsumos, não faria sentido.

Fontes do setor dizem que essa seria uma demanda das grandes multinacionais porque elas teriam condições – assim como fazem para registrar agroquímicos – de investir e aguardar por vários anos até que produto possa ser vendido no mercado.

“Queremos que o processo ande de uma forma que todo mundo possa participar. Reserva de mercado por legislação a gente não quer”, afirmou o coordenador de assuntos regulatórios da Abisolo, Irani Gomide Filho, em entrevista ao AgFeed.

Lucas Hoeppers, do time de Life Science da Pinheiro Neto, lembra que nem mesmo para agrotóxicos é necessária a “avaliação tripla”, atualmente. É algo que foi modificado na nova lei dos pesticidas aprovada no ano passado – agora o Mapa é o principal responsável pela autorização.

“Então, para produtos de teoricamente menor risco, como seriam os bioinsumos, acredito que a tendência seja não haver também essa avaliação pelos outros órgãos, mas algum tipo de controle menor”, afirmou. Os advogados consideram “contraditória” a inclusão da avaliação dos três órgãos no projeto dos bioinsumos.

Gomide, da Abisolo, diz que o universo que abrange a entidade hoje já contabiliza 13 mil registros. Caso a nova lei estabeleça a necessidade de três órgãos avaliadores, segundo ele, todos teriam que ser analisados novamente, ou seja, o setor sairia em busca de quase 40 mil licenças, algo considerado inviável.

Enquanto a situação não se define, para as indústrias, um dos problemas mais comuns tem sido o atraso na liberação de registros de novos produtos ou avaliações divergentes, que não conseguem concluir se um item é biofertilizante ou biodefensivo, por exemplo.

Tanto os advogados da Pinheiro Neto quanto a Abisolo relatam que são inúmeros os casos em que um produto recebe o seu registro inicial, mas depois, mediante alguma fiscalização nos estoques, por exemplo, algum fiscal chega a conclusão que aquele item é um defensivo, portanto, não deveria estar liberado.

Isso ocorre porque o universo dos bioinsumos inclui não apenas o produto claramente nutricional ou que age claramente sobre os patógenos, eliminando doenças e pragas.

Existem os chamados bioestimulantes, ou aqueles “multifuncionais”, que estimulam defesas das próprias plantas por exemplo.

A chefe da divisão de registro de produtos formulados do Ministério da Agricultura (Mapa), Tatiane Almeida do Nascimento, explica que, basicamente, o critério atual considera que se o estimulo é para controlar praga, trata-se de um defensivo, portanto sujeito a lei que regula os agrotóxicos. Mas se o estímulo for para capturar nutrientes, o produto fica submetido às regras dos fertilizantes.

Ela diz que o Mapa tem registrado cerca de 90 novos biológicos por ano e que o número de pedidos vem crescendo desde 2015, mas há limites de equipe para que se aumente este ritmo. No caso de biofertilizantes, é outra área dentro do Mapa e muitas vezes o registro é automático.

“A questão é que algumas empresas as vezes só registram como biofertilizante e depois divulgam o produto no mercado com capacidade de combater doenças. Aí, acabam sendo autuadas”, explica. Segundo Nascimento, tem sido comum o registro de biológicos nas duas categorias, tanto fertilizante, quanto de defensivo.

A boa notícia é que, por enquanto, levando em conta a mais recente Lei dos Pesticidas, que abrange qualquer produto “químico, físico ou biológico” para o controle de pragas, o ritmo de registro para os bioinsumos tem sido bem mais rápido do que os agrotóxicos tradicionais.

Nascimento diz que pedidos das indústrias para registro de biológicos estão levando em média 8 meses para liberação final, enquanto os químicos variam de 4 a 5 anos.

Risco de prisão para produtores rurais

A necessidade de uma nova lei para bioinsumos é ainda mais urgente para os produtores rurais do que para as indústrias. Como a nova regulamentação de agrotóxicos, a lei 14765 de dezembro do ano passado, estabeleceu obrigatoriedade de registro para todos os defensivos, inclusive os biológicos, os milhares de produtores rurais que hoje utilizam o biológico preparado na própria fazenda passarão a atuar na ilegalidade.

Em dezembro deste ano termina o prazo definido por lei para que os envolvidos se adaptem às novas regras.

É fato que muitas indústrias enxergam como uma ameaça o avanço das biofábricas em fazendas, o que limita o acesso a clientes que poderiam estar adquirindo seus produtos biológicos.

Lideranças de produtores dizem que muitos têm sido alvo de denúncias e que, pela regra anterior, estavam sujeitos a responder por infrações.

“Agora, com a 14785, o produtor pode ser condenado e pegar de 3 a 9 anos de cadeia, além de multa”, alertou Leonardo Braúna, da Aprosoja, explicando o “sentimento de urgência” que o setor está lidando.

Ele diz que a entidade está indignada com a situação, pois trata-se de organismos vivos, nada semelhante ao agrotóxico. Se nenhuma regulamentação for aprovada, o dirigente diz que até os produtores de orgânicos podem estar sujeitos a essa punição, já que o setor originalmente utiliza compostos biológicos para combater pragas e doenças, preparados nas fazendas.

Tatiane Nascimento, do Mapa, confirma que a nova lei dos defensivos não tratou do chamado “uso próprio”, por isso a necessidade de normas mais claras em um novo projeto, para que os biológicos on farm também tenham regras para a correta operação.

Esse caráter urgente da situação levou as principais entidades do agronegócio a elaborar um texto alternativo, que seria, a princípio, um substitutivo ao PL 685.

O texto foi discutido entre lideranças dos diferentes elos das cadeias, inclusive com o governo, e recentemente foi encaminhado ao deputado Pedro Lupion, presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).

Ao todo são 50 entidades que assinam a proposta de substitutivo, incluindo lideranças de produtores como CNA (Confederação Nacional de Agricultura) e Aprosoja Brasil, além da indústria de insumos como Abisolo e Anda (Associação Nacional para Difusão de Adubos).

A proposta pretende separar tudo o que é “bio” das demais regulações. Dessa forma, haveria uma regra para bioinsumos em geral, sejam eles biofertilizantes, defensivos biológicos ou mesmo medicamentos biológicos para uso veterinário, por exemplo.

A principal diferença em relação ao projeto que vinha sendo defendido pelas grandes indústrias é que não há obrigação de “avaliação tripla”.

Há dúvidas, porém, se a FPA vai levar adiante a proposta, isso porque alguns segmentos do agro ainda não estariam confortáveis com a versão das 50 entidades.

O AgFeed questionou a CropLife sobre por qual motivo não assinou o substitutivo junto com as outras 50 associações, mas a entidade não respondeu.

“A CropLife tem interesse que haja um marco regulatório claro, que dê segurança para as empresas investirem em inovação, com cenário de longo prazo. A nossa avaliação é que nenhum dos dois projetos que estão na Câmara devem ser aprovados, mas sim algo intermediário entre eles, o que vai ser fruto de um consenso entre os parlamentares e os elos da cadeia”, disse Eduardo Leão em outro áudio enviado ao AgFeed.

Para Lucas Hoeppers, da Pinheiro Neto, realmente se qualquer um dos dois projetos for aprovado do jeito que está “a repercussão seria bastante negativa para qualquer um dos lados, porque é um texto bastante inicial”.

Como principal problema, ele vê a falta de disposições transitórias, ou seja, saber como será feita a transição de um marco regulatório para outro, à medida que um biológico que estava sendo tratado como agrotóxico, por exemplo, passará para o novo conceito de “bioinsumo”.

Há vários nós, portanto, a serem desatados. E pouco tempo para fazer isso.