A atual administração no governo federal tem feito esforços notáveis para reduzir o desmatamento no Brasil, a partir da retomada do PPCDAM, o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazonia, e a construção de planos similares para os outros biomas brasileiros. Os dados mostram o quão desafiador ainda é o enfrentamento à ilegalidade, sobretudo na realidade amazônica.

Não é segredo que o gado é usado há tempos como instrumento de ocupação de terras públicas. Nesse jogo, o gado entra na cadeia produtiva como um subproduto da especulação imobiliária feita por criminosos que transformam patrimônio público, de todos os brasileiros, em terra privada, para benefício de poucos.

ICMBIO e Ibama têm atuado corretamente na retirada de animais de áreas protegidas e, evidentemente, estão se esforçando para que os animais de áreas embargadas não cheguem ao mercado.

Desde 2009, a indústria que opera no bioma, através de acordos com o Ministério Público Federal, investiu pesadamente em tecnologias de geoprocessamento que permitem uma verificação socioambiental da origem do gado, com critérios definidos no protocolo harmonizado conhecido como Boi na Linha.

Os resultados das auditorias dos termos de ajuste de conduta são um bom termômetro e ponto de partida para que as autoridades detectem quais as empresas que estão fazendo esforços sérios no controle da originação de matéria prima, e quais são as que se aproveitam da matéria prima de origem irregular.

Resta o problema do vazamento, da lavagem ou triangulação de gado. Uma propriedade embargada ou que tem gado em áreas griladas ou protegidas passa esse gado para propriedades regulares para chegar ao mercado.

O controle dessa triangulação demanda acesso às informações de trânsito animal. E aí temos um paradoxo. O Estado que está cobrando que as empresas frigoríficas tenham controle sobre sua cadeia de fornecimento é o mesmo Estado que se nega a fornecer as informações necessárias para que as empresas possam ter esse controle.

O trânsito animal é controlado pelas agências estaduais que controlam sanidade animal através de inventários de estoque e emissões de GTAs, as guias de trânsito animal. As informações não são públicas e nem acessíveis. O frigorífico recebe a guia do seu fornecedor junto com a carga que chega às suas instalações.

No âmbito da ADPF 760, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o papel das GTAs como ferramenta de rastreabilidade e controle ambiental e determinou a disponibilização de dados de Guias de Trânsito Animal (GTAs) para rastreamento de desmatamento ilegal.

Assim, os órgãos de controle ambiental têm acesso aos bancos de dados de trânsito animal. O acesso a esses dados tem sido dado à instituições de pesquisa, aqui e fora do Brasil. Os únicos que continuam não tendo acesso a essas informações são os frigoríficos, os que estão sendo cobrados para ter esse controle. É uma espécie de Ardil 22 da cadeia da carne nacional.

Em 2023, na Climate Week de Nova York, a Abiec apresentou uma proposta de rastreabilidade baseada no uso de GTAs e do Cadastro Ambiental Rural para fins de rastreabilidade socioambiental.

A mesma proposta foi apresentada na Câmara Setorial da Pecuária de Corte no início de 2024 e às Secretarias do Ministério da Agricultura. Uma proposta construída de forma a não criar riscos comerciais para produtores (não há necessidade de visualizar estoque ou volume de trânsito) e nem traz riscos à defesa agropecuária.

Existem algumas medidas simples que, se implementadas, poderiam trazer segurança a todos os agentes da cadeia. Enumero algumas delas: a) ter o Cadastro Ambiental Rural informado e verificado no cadastro de produtores nos órgãos de defesa agropecuária b) ter as coordenadas geográficas das unidades produtivas impressas na guia de trânsito animal c)criar nos sistemas a capacidade de gerar relatórios de uma propriedade que informe a geolocalização de todas as propriedades formadoras daquele estoque d) fiscalizar ativamente as geolocalizações informadas e) Fazer com que frigoríficos tenham acesso às GTAs emitidas contra ele e que confirmem o recebimento dos lotes para abate.

Está na hora que as autoridades envolvidas no combate ao desmatamento, mas também as autoridades fiscais, comecem a cobrar das autoridades federais e estaduais competentes os motivos pelos quais medidas como essas não pode ser implementadas num curto prazo, ao invés de cobrar frigoríficos por algo que eles não têm.

Segundo o relatório anual do desmatamento publicado pelo Mapbiomas, em 2024, do total de 7.800.449 imóveis cadastrados no CAR, foram detectados desmatamentos com sobreposição total ou parcial em 62.508 imóveis (0,8% do total de imóveis do CAR no Brasil). Mas o bioma Amazônia apresenta a maior concentração de imóveis no CAR com desmatamento (38,8%).

Ao mesmo tempo em que é preciso dar transparência à rastreabilidade é preciso urgentemente que se acelere a regularização ambiental nos estados da Amazonia, algo pelo qual esses estados também deveriam ser cobrados. Não há como trabalhar pela exclusão de produtores inconformes da cadeia (à exceção dos casos inegociáveis de crime) sem que existam mecanismos ágeis de requalificação e regularização.

Em uma outra reflexão, existe em uma parcela de lideranças setoriais a ideia de que a rastreabilidade deve ser resolvida apenas "pelo mercado", de forma voluntária e acordada entre as partes. Trocando em miúdos, as informações sobre o caminho do boi do nascimento ao abate só seriam acessíveis a interessados que pagassem por elas. E pagassem a quem eles entendem que é o dono da informação, o pecuarista.

Há dois aspectos perversos nessa visão.

O primeiro é que essa visão vai privilegiar apenas os produtores mais aptos a investir e se adaptar a demandas de mercado. A ausência de uma política pública universal de rastreabilidade termina concentrando o fornecimento da cadeia organizada em grandes players e condena a maioria a um mercado paralelo. É no mínimo contraditório que essas lideranças digam defender o interesse de todos os produtores.

O segundo aspecto é o entendimento de que tudo é "mercado", inclusive a garantia de legalidade. Na prática se está dizendo que o Estado não tem obrigação nenhuma de garantir a legalidade da produção agropecuária do país aos agentes da cadeia e à sociedade em geral.

É o Estado quem detém as informações de trânsito animal e todos os bancos de dados públicos sobre regularidade ambiental, sanitária, fiscal ou fundiária.

Rastreabilidade, para fins de garantir a legalidade da produção e a sanidade dos produtos deveria ser uma política universal, transparente e gratuita. Toda adicionalidade demandada pelo mercado, sim, pode ser tratada em protocolos privados de adesão voluntária.

O Brasil, através do anúncio do Plano Nacional de Identificação Individual de Bovinos, o PNIB, pelo Ministério da Agricultura, acertadamente tomou a decisão de caminhar para expandir a rastreabilidade individual do rebanho, o que irá aumentar a capacidade de resposta de nosso sistema de defesa agropecuária.

É um plano ambicioso com etapas a médio e longo prazo. A rastreabilidade para fins de controle socioambiental através do uso de GTAs é uma solução de curto prazo, baixo custo e larga escala.

O próprio PNIB prevê a integração das informações de trânsito animal a uma base nacional. A integração desses dados na Plataforma Agro Brasil + Sustentável, outra iniciativa do mesmo Ministério que qualifica propriedades rurais e a produção agropecuária em relação à legalidade, pode ser uma solução a nível nacional, assim como ferramentas como o Selo Verde tem sido no âmbito estadual. A implementação depende apenas de vontade política.

Fernando Sampaio é engenheiro agrônomo, diretor de Sustentabilidade na Abiec e cofacilitador da Coalizão Clima, Florestas e Agricultura.