No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5 e meia da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo.
Assim, Gabriel Garcia Marquez começa Crônica de uma Morte Anunciada. O que faz a graça do livro é que na história, a cidade inteira sabe que essa morte vai acontecer, mas aparentemente ninguém age de fato para que não aconteça.
Nós sabemos da crise climática. Os desastres batem às nossas portas em série hoje em dia.
Nós sabemos que as emissões devem ser cortadas para que o mundo permaneça dentro do limite seguro de no máximo 1,5°C de aumento de temperatura. Isso implica cortar 45% das emissões de todo o mundo até 2030.
Sabemos que florestas são essenciais para a manutenção do clima e das chuvas. Nós sabemos que a agricultura vai sofrer com mudanças climáticas. Sabemos que os mais pobres vão sofrer mais.
É um bocado de “já sabemos”. O desfecho, se ninguém fizer nada, já está anunciado.
Mas e aí, quem vai fazer o quê?
Livrar o mundo do vício dos combustíveis fósseis é uma tarefa descomunal para a COP, especialmente quando fora das negociações, no mundo real, ainda se investe pesadamente em petróleo.
Há toda uma transição a ser planejada e executada, mas quem quer ser o primeiro a abandonar suas jazidas?
O Brasil tem uma matriz energética bem mais limpa se comparada a outros países. Mas, aqui, trata-se de outra transição a ser planejada, a de sistemas alimentares.
O Brasil pode e deve liderar essa agenda.
Todos já sabemos também que é possível produzir muito mais sem desmatar.
Todos já sabemos que nossa agricultura pode produzir mais e, ao mesmo tempo, reduzir suas emissões e mesmo sequestrar carbono.
Todos sabemos que nossa agricultura precisa de adaptações para as mudanças que virão.
Todos já sabemos que é preciso criar uma verdadeira bioeconomia na Amazonia.
E aí, de novo, quem vai fazer o quê? E o que se espera exatamente do setor produtivo e do setor agroindustrial no Brasil?
É interessante observar alguns exemplos dos últimos meses, que dão o tom da encruzilhada que o país se encontra para definir seu futuro e o futuro do agronegócio.
Empresas, em diferentes setores compradores de commodities no Brasil, comprometeram-se com metas climáticas que incluem desvincular suas cadeias de fornecimento de desmatamento.
Produtores geralmente entendem o código florestal como uma obrigação legal suficientemente exigente, onde só eles têm o custo, embora o benefício seja de todos. Qualquer obrigação de conservação além disso é visto simplesmente como confisco de propriedade.
Recentemente, uma centena de prefeitos em Mato Grosso baixou em Cuiabá para protestar junto ao governador (de um estado também com metas climáticas) contra as políticas de desmatamento zero de multinacionais.
Municípios, especialmente em fronteiras agrícolas, veem a produção de commodities como oportunidade de desenvolvimento, quiçá a única.
Municípios, especialmente em fronteiras agrícolas, veem a produção de commodities como oportunidade de desenvolvimento, quiçá a única. Até hoje, ter floresta nesses lugares significa uma condenação à pobreza.
A discussão da inclusão ou não do setor primário no mercado regulado de carbono foi outro exemplo. Uma parcela da sociedade entende que, como setor relevante nas emissões, a produção deveria participar.
Para produtores, agricultura é parte da solução, e não do problema. Aceitam participar como ofertantes em um mercado voluntário, não como regulados, ainda mais quando existe a tentação de se despejar toda a conta das emissões derivadas do desmatamento ilegal no seu colo.
O marco temporal é outro exemplo. Pode ser uma forma de ampliar as áreas conservadas no País, contribuindo com o clima e com o futuro da nossa agricultura, ao mesmo tempo em que se garantem direitos fundamentais aos indígenas.
Mas pode também criar conflitos, sobretudo em demarcações futuras em áreas privadas, ampliando uma insegurança jurídica que apavora os produtores.
Adicionar garantias ambientais às sanitárias é cada vez mais importante para se garantir acesso a mercados e investimentos. Sabemos todos que precisamos de uma nova política de rastreabilidade no país, sobretudo na cadeia da pecuária. Mas há discordâncias de como, em que prazo, com que incentivos, e por onde começar.
Não há respostas fáceis e nem prontas para nenhum desses desafios. Da mesma forma que ocorre na arena internacional, no Brasil, internamente, é preciso negociar. Negociar e cooperar.
Jay J. Van Bavel, Philip Pärnamets, Diego Reinero, e Dominic Packer, professores das Universidades de Nova York, Princeton e Lehigh, escreveram um artigo sobre cooperação intitulado “How neurons, norms, and institutions shape group cooperation. Advances in Experimental Social Psychology”.
Segundo os autores, grupos de pessoas cooperam porque indivíduos fazem cálculos de custo e benefício do que podem ganhar, cooperando ou não. Acontece que se os objetivos da cooperação são mais distantes (digamos o clima no planeta daqui a 30 anos), o interesse pela cooperação diminui.
Eu tendo a cooperar mais quando tenho mais confiança no grupo de pessoas com as quais estou cooperando. E confio mais se compartilhamos dos mesmos valores e posições.
Quando esses valores e posições são mais distantes, a cooperação é mais difícil. Nesse caso, instituições confiáveis são necessárias e podem servir de intermediárias ou anteparos a essas colaborações.
A grande ameaça à colaboração vem principalmente da deterioração na confiança no outro. E aí a coisa tem piorado bastante com as tais das redes sociais.
Para fazer do Brasil (e do agro brasileiro) a liderança que ele deve exercer no cenário internacional, é preciso construir aqui o entendimento do que pode e o que deve o agro
Quanto mais a internet contribui para a corrosão da confiança, mais extrema a polarização vai ficando. E quanto mais a política se traduz em um fla-flu de nós contra eles, bem contra o mal, mais tendemos a transformar democracias em autocracias. À esquerda e à direita, diga-se de passagem.
Para fazer do Brasil (e do agro brasileiro) a liderança que ele deve exercer no cenário internacional, é preciso construir aqui o entendimento do que pode e o que deve o agro, à base de negociação e cooperação entre o público e o privado, entre empresas e produtores, entre o setor e a sociedade civil.
Não fazer nada não é uma opção. Falhar também não é uma opção.
"Sempre sonhava com árvores", disse a mãe de Santiago Nasar, vinte e sete anos depois, evocando os pormenores daquela segunda-feira ingrata.
Espero não estarmos nós a sonhar com arvores daqui a um tempo, amargurados com o que poderia ser evitado hoje.
Fernando Sampaio é Engenheiro Agrônomo e Diretor de Sustentabilidade da Abiec.