Recentemente, durante explanação em um seminário, José Graziano da Silva reconheceu que não é a pequena agricultura familiar que garante o abastecimento de alimentos no país.
Apesar da atitude digna de elogio por corrigir um equívoco histórico, sua manifestação sobre a invenção da estatística é extremamente preocupante. Trata-se de um dos dados mais replicados sobre a produção no Brasil: 70% dos alimentos do Brasil seriam originados a partir da pequena agricultura familiar.
Em questões relacionadas à alimentação, José Graziano é um dos profissionais mais conceituados do país. Com diversos livros publicados, em seu vasto currículo destacam-se o cargo de Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome e o cargo de diretor geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
Relatar a invenção de dados com tanta naturalidade não é condizente com a sua própria trajetória.
Em vídeo do seminário, disponibilizado pelo Instituto Fome Zero - fundado pelo próprio Graziano - ele justifica que a invenção foi motivada pela falta de dados censitários, afirmando que quando chegaram ao governo, em 2003, o último censo disponível era o de 1970. Mas não é verdade.
Durante o período, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou quatro Censos Agropecuários (1975, 1980, 1985 e 1995), um flagrante de mais uma inconsistência para justificar as razões que os levaram a inventar o número.
A intenção aqui não é apontar o dedo para quem acaba de reconhecer o erro. O objetivo é alertar para que esse modus operandi não continue sendo usado para difundir ideologias embaladas como fatos pesquisados. Infelizmente, a prática de negligenciar ou ignorar completamente a existência dos Censos tem sido recorrente para embasar análises que afrontam a realidade.
É o exemplo do projeto MapBiomas, cuja evolução das áreas de produção agropecuária nas últimas décadas confronta os dados censitários.
No caso de pastagens, a área total no Brasil informada na coleção número 9.0 do projeto é de 92 milhões de hectares para o ano de 1985, início da série histórica. Para o mesmo ano, o Censo Agropecuário identificou 179,2 milhões de hectares. A diferença é de quase 100%.
E as diferenças não param por aí. Um texto publicado no site do MapBiomas, no início de dezembro, discorreu sobre a dinâmica de expansão da agropecuária no Brasil nos últimos 39 anos. Para 1985, o texto menciona área de 4,4 milhões de hectares para a cultura da soja. O Censo do mesmo ano encontrou 9,43 milhões de hectares de soja.
A soma das culturas temporárias, de acordo com o texto do MapBiomas, era de 18 milhões de hectares, em 1985. No entanto, de acordo com Gustavo Spadotti, chefe da Embrapa Territorial, o Censo Agropecuário daquele ano entrevistou responsáveis por 5,8 milhões de estabelecimentos existentes na época. E registrou 42,5 milhões de hectares ocupados com culturas temporárias, número duas vezes e meia maior que o relatado pelo MapBiomas.
As proporções se repetem nos três casos analisados: pastagens, soja e agricultura temporária. Em média, para o início de sua série, o MapBiomas tem considerado cerca de metade da área que havia em produção, de acordo com o Censo Agropecuário. Não é por acaso que os noticiários destacam o sensacional avanço da agropecuária no período.
Entre 1985 e 2023, a área de pastagens recuou 17,9 milhões de hectares, mesmo computando todo o desmatamento do período como área convertida em pastos. Essa redução ocorre porque a soma da área repassada à agricultura com a área em regeneração supera o total desmatado.
Importante lembrar que a regeneração mencionada é involuntária, ocorrendo após o processo de degradação em que as plantas naturais do bioma vão retomando lentamente à área antes usada como pasto.
De acordo com o MapBiomas, a área de pastagens teria avançado 73 milhões de hectares no período. Ao invés da queda de 10%, o projeto conclui que teria ocorrido um aumento de 79% na área de pastagens.
Essa diferença significativa provoca falsa percepção sobre a dinâmica do avanço das culturas agrícolas no Brasil. Ao contradizerem os números censitários, acabam negando toda a evolução tecnológica implementada no campo, especialmente na pecuária.
O avanço dos indicadores técnicos de produção é coerente com o mercado de insumos, produção, evolução do rebanho e adoção de técnicas modernas na condução das pastagens, nutrição e reprodução, o que altera a arquitetura do rebanho braseiro.
Quando questionados pelas inconsistências, nos melhores dos casos, os coordenadores tergiversam enumerando hipóteses, mencionando conclusões ainda não divulgadas ou levantando dúvidas sobre a confiabilidade da base censitária, visto que se trata de dados autodeclarados.
Essa última hipótese é ainda mais sensacional do que as próprias conclusões do projeto. Se estivesse certa, teríamos mais de 5 milhões de brasileiros contando a mesma mentira, durante 40 anos, dentro de uma linha de tendência coerente com indicadores técnicos e com o comportamento do mercado. Quais são as chances?
E em muitos casos, a resposta aos questionamentos acaba sendo até agressiva, intimidadora. Há inúmeros profissionais que foram atacados e até humilhados, publicamente, por apresentarem dados e argumentos questionando as conclusões. Os coordenadores do MapBiomas não entenderam que é essencial respeitar quem questiona os estudos, principalmente de forma técnica e embasada.
Como se trata de uma das fontes mais usadas na atualidade, as conclusões do MapBiomas influenciarão políticas públicas, decisões sobre liberação de créditos, estratégias de investimentos na indústria e em propriedades rurais e, evidentemente, a qualidade dos estudos acadêmicos que usam sua base de dados. O impacto negativo é exponencial, assim como os potenciais prejuízos que podem ser causados.
Diante de tamanha contradição, é essencial que haja maior transparência metodológica e que os autores se esforcem em esclarecer, objetivamente, as razões técnicas e científicas que embasam a contradição entre os dados gerados pelo projeto e os dados censitários.
Caso contrário, corre-se o risco de, em algum momento daqui 20, 30 ou 40 anos, alguém se apresentar em um seminário pedindo desculpas pela “criatividade” com que trataram a evolução histórica de ocupação da área no Brasil.
Os eventuais prejuízos de quem se orientou pelos dados seriam ressarcidos?
Maurício Palma Nogueira é engenheiro agrônomo, diretor da Athenagro e coordenador do Rally da Pecuária