A força do agronegócio brasileiro é inegável. O setor alimenta o mundo, sustenta superávits comerciais, movimenta cadeias inteiras e, em muitos casos, organiza o tecido social de regiões inteiras do país.
Mas essa potência produtiva, construída com trabalho, intuição e resiliência, convive com uma fragilidade estrutural que começa a cobrar seu preço: a ausência de governança.
Durante muito tempo, a governança foi tratada como algo distante do campo, uma construção teórica, urbana e incompatível com a agilidade prática que a produção exige. Mas o tempo e os fatos vêm revelando outra realidade.
A complexidade crescente do setor, marcada por margens apertadas, oscilações climáticas, instabilidade de preços, novas exigências regulatórias e demandas familiares, exige sistemas de decisão mais estruturados. E o conselho, nesse cenário, é um dos primeiros passos.
Chamar de “conselho de botina” é mais do que uma metáfora. É uma forma de afirmar que o agro precisa de conselhos que conheçam a terra, respeitem a história das famílias que conduzem os negócios e tenham sensibilidade para a linguagem do setor.
A governança no agro não se constrói com fórmulas importadas ou estruturas urbanas genéricas. Ela nasce de conselheiros que não apenas conhecem negócios,mas conhecem o negócio. Que compreendem a diferença entre receita e safra, entre produtividade e sucessão, entre escala e pertencimento.
Um conselho bem estruturado pode ampliar horizontes estratégicos, antecipar riscos, organizar sucessões e profissionalizar decisões sem descaracterizar a identidade da família ou do negócio.
Pode servir de espaço de escuta qualificada, de contenção de conflitos e de construção de consenso. E, sobretudo, pode proteger o negócio de uma ameaça que cresce silenciosamente: a desorganização institucional.
Nos últimos anos, o número de produtores rurais e grupos do agro em recuperação judicial aumentou de forma expressiva. Parte dessa realidade se explica por fatores externos, como endividamento, crédito mal calibrado e eventos climáticos extremos.
Mas outra parte tem origem na ausência de instrumentos de governança. Muitas crises poderiam ter sido mitigadas com estruturas de comando mais claras, com fluxos de informação mais confiáveis e com mecanismos institucionais adequados de resposta.
Quando tudo depende de uma única figura, ou de decisões tomadas em círculos restritos e informais, a capacidade de reação diminui, e o custo dos erros aumenta.
Ainda há resistência. Muitos produtores associam a criação de conselhos a uma perda de autonomia, a um passo distante da realidade ou a uma formalidade desnecessária. Mas a experiência mostra o contrário.
Um conselho bem montado, com membros preparados, agenda clara e conexão com os valores do grupo, não impõe burocracia; traz clareza. Não substitui a família; apoia suas decisões. Não afasta os fundadores; ajuda a preservar seu legado com sustentabilidade.
O caminho passa por respeitar a história de cada negócio. Para famílias que nunca formalizaram decisões, o primeiro passo pode ser um conselho consultivo, com composição híbrida entre membros da família e especialistas externos.
A pauta pode incluir questões operacionais, sucessórias, financeiras ou estratégicas. O importante é que o espaço exista, que seja valorizado e que evolua com o tempo.
Quando o conselho ganha legitimidade, torna-se natural avançar para modelos mais robustos, com conselhos deliberativos e comitês especializados.
Esse processo exige cuidado. A escolha dos conselheiros deve considerar não apenas currículo técnico, mas afinidade com os valores da família, capacidade de escuta e humildade para lidar com ambientes em que a racionalidade econômica convive com vínculos afetivos e histórias profundas.
O agro não precisa de conselhos “modernos”. Precisa de conselhos verdadeiros. De gente que saiba ouvir o silêncio de uma reunião tensa. Que entenda o peso simbólico de um trator que carrega o nome do avô. Que saiba traduzir o idioma do campo em decisões estratégicas de longo prazo.
A governança não é um fim em si. É um meio para proteger o que foi construído com esforço, para preparar as próximas gerações e para dar perenidade ao negócio.
E isso não se faz com contratos prontos, mas com estruturas que tenham aderência à realidade e ao tempo de cada grupo familiar. O conselho é a tradução mais concreta dessa intenção.
Em um ambiente cada vez mais desafiador, com mercados voláteis, exigências de sustentabilidade, digitalização acelerada e competição global, o produtor que caminha sem governança caminha sozinho.
O que distingue os grupos que prosperam por décadas daqueles que sucumbem nas transições geracionais não é apenas a produtividade ou a gestão financeira, é a capacidade de decidir em conjunto, de antever dilemas e de construir consensos. É, em última instância, a governança.
Conselho de botina é aquele que tem o pé na terra e o olhar no futuro. Que respeita à origem, mas entende que perpetuar o agro exige mais do que produção: exige estrutura, diálogo e visão. No campo, como na empresa, não basta saber plantar: é preciso saber conduzir.
Diego Billi Falcão é mestre em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo, fundador da Governança Agro e sócio do escritório Huck Otranto Camargo Advogados.
Amanda Salis Guazzelli é produtora rural, fundadora da Governança Agro e sócia do escritório Huck Otranto Camargo Advogados.