Por Joyce Honda e Rodrigo Belon
A Comissão Europeia publicou, recentemente, um guideline de orientações que busca regrar acordos de sustentabilidade entre produtores rurais de países que integram a União Europeia (UE).
Na prática, as diretrizes passam a permitir que produtores agrícolas, mesmo que concorrentes, possam fazer acordos entre si e executar ações conjuntas se a sustentabilidade for o objetivo central e comum entre as duas partes.
Para estas situações excepcionais, as autoridades concorrenciais, a priori, não aplicarão sanções antitruste sobre as partes envolvidas, desde que estas sigam os padrões estabelecidos pelo novo regramento.
A cooperação entre concorrentes geralmente funciona como um mecanismo mais eficiente para o cumprimento de metas de desenvolvimento sustentável (seja pelo compartilhamento de custos e infraestruturas envolvidas, redução de assimetrias informacionais para consumidores, redução dos desafios do first mover disadvantage, etc.).
No entanto, o aumento da interação entre rivais em geral suscita preocupações sob a ótica concorrencial, em especial quanto a potenciais efeitos colusivos, exclusionários ou discriminatórios, além de troca de informações concorrencialmente sensíveis entre concorrentes – circunstâncias que representam violação às leis antitruste, inclusive a brasileira.
Em termos operacionais, os acordos entre os produtores europeus devem ter como objetivo a proteção ambiental, a redução do uso de pesticidas e da resistência antimicrobiana, ou a saúde e bem-estar animal. Ou seja, a exclusão de uma penalização no âmbito concorrencial não se aplica a acordos para melhorar a situação econômica ou social dos produtores.
Além disso, esses acordos devem ser absolutamente necessários para se atingir o objetivo de sustentabilidade. As autoridades locais apenas poderão atuar se ficar comprovado algum abuso na implementação do acordo, como aumento não razoável de preços ou restrição de oferta de bens.
Com a nova norma, por exemplo, produtores concorrentes de carne europeus poderão compartilhar informações entre si para que busquem, conjuntamente, alternativas para melhorar a qualidade do produto animal na cadeia produtiva.
Ou, ainda, agricultores que produzam determinado tipo de grão podem atuar conjuntamente para reduzir a necessidade de pesticidas em suas lavouras. Isso, anteriormente, poderia resvalar no compartilhamento de informações sensíveis entre concorrentes e ser condenado por um órgão de controle antitruste.
O movimento da União Europeia segue uma tendência já em curso tanto nos países membros como nos da região. Holanda, Grécia, Áustria e Reino Unido já vinham editando regulamentos próprios sobre parâmetros aplicáveis a acordos entre concorrentes envolvendo questões de sustentabilidade desde 2021.
O reconhecimento da importância da agenda ESG não apenas pelo mercado, mas também pelo Estado (como uma política pública), aponta para a necessidade de discussão sobre sua efetiva implementação frente aos entraves das regulamentações setoriais existentes.
Essa tendência acende um alerta sobre como o Brasil irá se posicionar sobre o tema. Como se sabe, o processo de adesão do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem suscitado a necessidade de mudanças concretas nas políticas vigentes, notadamente ambiental, e que impactam diretamente no desenvolvimento de atividades dos agentes da cadeia de agronegócio e exploração mineral.
Ademais, a discussão também é necessária considerando que o Brasil é um grande exportador de commodities que tem países europeus como importantes parceiros e clientes.
Com a agenda ESG cada vez mais central na estratégia das empresas e dos investidores, e com essa política de incentivos dada pela Comissão Europeia para isenção antitruste em acordos entre produtores europeus, é possível cogitar que o mercado europeu tenha maiores ganhos de eficiência e de competitividade em comparação ao brasileiro, oferecendo ao consumidor final produtos mais baratos ou de maior qualidade, com o selo de sustentabilidade (cada vez mais valorizado pelo consumidor).
Isso representaria um risco ao desenvolvimento interno do setor, principalmente nos segmentos direcionados à exportação.
O fato é que o Brasil ainda precisa de uma norma (seja ela um guia ou um sandbox) que dê clareza aos limites para tais cooperações visando a sustentabilidade. O Cade – órgão responsável por zelar, preventiva e repressivamente, pela livre concorrência – pode limitar ou proibir acordos desenhados entre agentes, além de aplicar multas sobre práticas já implementadas.
Mas como essa atividade é feita reativamente por meio de processo administrativo em que o órgão é provocado (seja pela apresentação prévia de um projeto para aprovação, seja por uma investigação oriunda de uma denúncia), num primeiro momento não há segurança jurídica para os agentes da cadeia de agronegócio.
Olhando para a jurisprudência do órgão, poucos foram os casos analisados. O mais recente – e paradigmático – foi o Ato de Concentração n° 08700.009905/2022-83, em que o Cade aprovou uma joint venture envolvendo os principais comerciantes globais da cadeia de produção de commodities agrícolas, cujo objetivo era o desenvolvimento de uma plataforma de software B2B (business to business) voltada ao rastreamento e padronização de métricas de sustentabilidade nas cadeias de suprimentos alimentícios e agrícolas.
O software idealizado teria seu funcionamento pautado na coleta e processamento de dados de diferentes fornecedores de produtos agrícolas e alimentícios, a fim de possibilitar maior aferição do impacto ambiental das atividades comerciais de tais agentes e, assim, tornar o acesso à informação mais dinâmico e consolidado para os usuários da plataforma.
A decisão do Cade indicou uma série de requisitos para a autorização da plataforma, visando o controle e a independência de atuação dos concorrentes: equipe especializada para fiscalizar o cumprimento dos compromissos concorrenciais, com designação clara e autonomia dos responsáveis; agregação e anonimização de dados concorrencialmente sensíveis; criptografia dos dados e a segregação de hardware e infraestruturas de tecnologia de informação; formalização de compromissos antitruste que estabeleçam clara e expressamente princípios, estrutura de governança, sistemas, e fiscalização por profissionais especializados e independentes; garantia e demonstração de acesso de terceiros à plataforma, segundo critérios de isonomia e não-discriminação; apresentação de documentos internos e vinculantes entre as partes que demonstrem a persecução de objetivos da associação pretendida; a criação de canal interno de denúncias.
Entretanto, como a análise dessas operações é focada nas particularidades do caso concreto, o posicionamento do órgão ainda é incipiente para conferir segurança jurídica aos agentes da cadeia do agronegócio – notadamente dada à miríade de possibilidades de acordos visando maior eficiência na produção/distribuição/exportação, ou mesmo no incremento de qualidade e adoção da pauta de sustentabilidade.
Em artigo, o conselheiro do Cade Victor Fernandes reconhece que o debate sobre o alinhamento da aplicação de normas concorrenciais com iniciativas de sustentabilidade está ganhando força, embora os desafios ainda sejam enormes.
Assim, devido a incertezas para avaliar os reais ganhos para a sociedade decorrentes de certas medidas com viés de sustentabilidade, ele recomenda que as autoridades concorrenciais foquem em sua missão primordial: garantir que iniciativas sustentáveis não impliquem em restrições à concorrência.
Entretanto, enquanto não houver uma maturação deste debate entre diferentes órgãos públicos responsáveis pelas regulamentações setoriais – e o CADE pode auxiliar nessa discussão – é importante que os agentes dos setores de agronegócio estejam cientes de que projetos que envolvam acordos com outros competidores, visando atingir eficiências ligadas à sustentabilidade, demandarão de largada algumas análises prévias no que diz respeito a adoção de medidas que anulem, ou ao menos mitiguem, preocupações concorrenciais, tais como: (i) transparência; (ii) acesso livre e não discriminatório de terceiros; (iii) participação voluntária; (iv) liberdade para adotar padrão mais elevado; e (v) ausência de troca de informações comercialmente sensíveis.
Joyce Honda e Rodrigo Belon são sócios da área Concorrencial do Cescon Barrieu