Depois de flertar com a autossuficiência no início da década, quando boas safras em sequência indicavam que a produção nacional de trigo caminhava para a casa das 12 milhões de toneladas, dois anos de colheitas prejudicadas pelo clima demonstram que talvez ainda leve mais algum tempo para que isso aconteça.

Perto do seu encerramento, a atual safra de trigo (2023/2024) deve somar 8,8 milhões de toneladas, de acordo com o 12º levantamento da produção de grãos realizado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

Se confirmado, esse resultado representará aumento de 8,8% sobre o volume colhido na temporada passada (8,0 milhões de toneladas) e será uma ótima notícia para a agroindústria que depende do cereal.

Mas ainda longe do consumo interno. Além disso, os números ainda podem ser revistos, inclusive para baixo. É preciso ter paciência durante esse cerca de um mês que falta para o final da colheita, sobretudo por causa da incerteza sobre as chuvas. E isso impacta todo o planejamento do setor.

“Ainda é tudo muito incerto. Qualquer que seja a estimativa de mercado, precisamos aguardar o final da colheita no Brasil, em outubro”, afirmou o presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo), Rubens Barbosa, durante o 9º Encontro da Cadeia Produtiva do Trigo de São Paulo, realizado pelo Sindicato da Indústria do Trigo do Estado de São Paulo (Sindustrigo), na última sexta-feira (27), na sede da Fiesp.

Na opinião de Barbosa, também é necessário esperar para saber o que vai acontecer com a safra da Argentina, principal fornecedor de trigo para o Brasil, que ainda não é autossuficiente no abastecimento do cereal. E a dependência de importações vem crescendo nos últimos anos.

A produção nacional chegou a atender 83% da demanda interna na safra 2022/23. Na temporada atual, essa relação deve cair para 68% e, na próxima, recuar ainda mais, chegando a 61%.

Esses números foram apresentados no evento do Sindustrigo pelo analista do Mercado de Trigo da Safras e Mercado, Elcio Bento. Segundo dados da consultoria, a produção brasileira de trigo deve ser de 8,1 milhões de toneladas, colhidas em 2,9 milhões de hectares.

O analista da Safras e Mercado informou ainda que a produção argentina de trigo no período 2023/2024 deve passar de 14,8 milhões de toneladas, volume 26,5% maior do que os 11,7 milhões de toneladas da temporada anterior.

Vale ressaltar que na safra 2021/2022, os argentinos colheram 22,1 milhões de toneladas, o que mostra quanto os vizinhos também vêm sofrendo com as questões climáticas. A expectativa é de retomada na próxima temporada, com produção de 18,0 milhões de toneladas.

Segundo Bento, os problemas que a Argentina vem sofrendo com a seca podem prejudicar a produção atual de trigo. O tamanho desse prejuízo é que preocupa a agroindústria do cereal do lado de cá da fronteira.

“Há uma linha muito sensível entre ter o abastecimento pela Argentina e a necessidade de importar de outros países”, disse Bento.

O economista da Safras & Mercado acredita que mesmo com uma quebra na safra, os argentinos ainda terão produção excedente suficiente para atender o mercado brasileiro. Porém, considerando uma hipótese contrária, as opções no Mercosul seriam Uruguai e Paraguai, mas os volumes vindos de ambos nem se comparam ao que vem da Argentina.

Dessa forma, ainda seria necessário buscar fornecedores no hemisfério norte, principalmente Estados Unidos, Canadá e Rússia. “Nesse caso, a compra fica mais cara, pois perdemos a isenção dos 10% da Tarifa Externa Comum do Mercosul”, afirmou Barbosa.

O dirigente assegura, entretanto, que não haverá problemas de abastecimento. “A questão é a disponibilidade ou não de trigo mais barato aqui na América do Sul. Por isso, reforço que ainda é preciso aguardar.”

O presidente do Sindustrigo, João Carlos Veríssimo, também aposta na regularidade do fornecimento de trigo para as indústrias. “Se não for com o produto nacional, será com o importado, então não haverá problema algum de abastecimento ou de qualidade da matéria-prima”, afirmou, reforçando ser uma questão de definir os fornecedores.

Não é só a indefinição climática, em especial sobre quando e como vem a chuva, que coloca os dirigentes em alerta. O presidente-executivo da Abitrigo, por exemplo, chama a atenção para fatores geopolíticos, como a guerra entre Rússia e Ucrânia.

Os russos são grandes exportadores e esse conflito, que já dura mais de dois anos e meio, impacta o mercado tanto pela disponibilidade do cereal quanto pela logística.

Como destacou Bento, 50% dos polos de exportação de trigo estão na Europa, mais especificamente na região do Mar Negro, porta de saída da produção de Rússia e Ucrânia após atravessar o Mar de Azov.

O quadro é agravado pela guerra ente Israel e o Hezbollah, um confronto que vai completar um ano agora em outubro, já envolveu outras nações, como o Irã, e parece distante de chegar a um tratado de paz.

Qualquer impedimento no tráfego por ali cria uma barreira para o que pode ser uma oportunidade. Segundo o analista da Safras e Mercado, a Rússia tem o trigo mais barato entre os principais exportadores (US$ 197/t).

Apenas como fator de comparação, o preço para exportação nos Estados Unidos está em US$ 263 por tonelada e, na Argentina, US$ 225 para a nova safra. O trigo russo só não seria uma opção para São Paulo. “Devido a restrições fitossanitárias, pode chegar até Santos, mas não pode entrar no Estado”, disse Bento.

No caso específico dos moinhos paulistas, além das questões do clima e geopolíticas, há uma grande preocupação em recuperar a competitividade frente aos demais estados. O presidente do Sindustrigo é enfático ao comentar as perdas sofridas por conta da chamada “guerra fiscal”.

Segundo Vasconcelos, a indústria paulista do trigo já perdeu 40% de sua produção para outros estados, única e exclusivamente em função de incentivos fiscais.

“E não estamos falando apenas de uma questão de renda, mas de segurança alimentar”, afirmou. “É preciso que o governo de São Paulo esteja atento a isso e que possa buscar um equilíbrio de forças.”

A ocasião foi oportuna, pois o secretário-executivo de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Edson Alves Fernandes, também estava no encontro. E deixou uma lição de casa para a indústria tritícola do estado.

“Preparem uma pauta, elenquem um plano de investimentos a serem aplicados no setor nos próximos anos, assim levaremos ao governador”, disse. “Apresentem as dificuldades, mostrem o que o setor já fez, está fazendo e vai fazer, assim ele poderá conversar com a Secretaria da Fazenda para lidar com essa questão dos benefícios fiscais.”