Enquanto os mercados de insumos agrícolas sofrem o impacto de fatores geopolíticos e climáticos, um segmento parece passar ileso e prospera ainda mais em anos de dificuldades no setor.
Negócio bilionário e ilegal, a pirataria cresce a taxas mais acentuadas que o formal e chega a movimentar mais de R$ 22 bilhões ao ano, considerando falsificação e venda ilegal de sementes e insumos como fertilizantes e inseticidas.
“No Brasil, temos dois universos que competem pelo mesmo mercado: o ilegal, que não respeita regra alguma, e o regulado, que recolhe todos os impostos e segue todas as regulamentações”, disse, em entrevista ao AgFeed, o presidente do Fórum Nacional contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP), Edson Vismona. “Nesse cenário, o ilegal sai com uma vantagem: preços menores”.
Isso, é claro, não se restringe ao agronegócio. De acordo com os dados mais recentes do FNCP, em 2022, o mercado de produtos piratas e ilegais no Brasil movimentou R$ 410 bilhões.
Na conta estão 14 setores da economia, excluindo software, autopeças e farmacêutico. Dessa conta, R$ 20,8 bilhões são referentes às perdas geradas pela pirataria de defensivos agrícolas.
“Esse é o tamanho que o produto ilegal ocupou dentro do agronegócio brasileiro e ele é muito significativo”, afirma Vismona.
Ele lembra que além da competição injusta, o produto ilegal tem impacto no erário por não recolher impostos; na saúde pública, por não respeitar regras fitossanitárias; e no comércio internacional, pois prejudica a imagem do Brasil no exterior – dando munição para os países que tentam ampliar medidas protecionistas.
E o impacto da pirataria não se restringe a fertilizantes e defensivos agrícolas. A falsificação de sementes também é um grande problema. Segundo a Associação Brasileira de Produtores de Sementes (Abrasem), trata-se de um mercado que movimenta R$ 2,5 bilhões ao ano e tem um efeito extremamente nocivo em diversas culturas, entre elas feijão, arroz, trigo e algodão.
De acordo com a Abrasem, esses números consideram prejuízos em royalties que deixam de ser pagos pela propriedade intelectual aos desenvolvedores de sementes, impostos que deixam de ser arrecadados e impacto na produtividade das lavouras decorrentes do uso de sementes falsas. O mercado oficial de sementes no Brasil é estimado em R$ 24 bilhões.
“Para mim, é inconcebível que um agricultor compre sementes ou defensivos agrícolas falsificados de forma consciente”, afirma Maurício Mendes, produtor de laranja e integrante do Grupo de Consultores em Citros e Produtores de Laranja (GCONCI). “No final, o preço menor não compensa o risco para a colheita e para quem trabalha nela”, diz.
Mas é justamente o preço que faz o mercado pirata continuar existindo e movimentar bilhões todos os anos. A depender do tipo de semente, ela pode custar até menos da metade do preço em comparação com as legalizadas. “Trata-se, infelizmente, de um mercado que existe porque há demanda”, diz Vismona, do FNPC.
E é com o objetivo de conter essa demanda e conscientizar quem compra que as ações de fiscalização e regulamentação desse mercado têm se intensificado nos últimos anos.
Desde 2020, o Ministério da Agricultura tem emitido normativas que estabelecem, por exemplo, percentual de germinação mínimo de 80% para qualquer semente comercializada, além de exigir por questões sanitárias que as os insumos utilizados no processo de semeadura sejam comprovadamente sadios, livres de pragas e doenças. Para se obter essas confirmações são realizados testes em laboratórios, seguidos da emissão de certificações.
Isso ocorre porque um dos principais problemas causados pelo uso da semente pirata é justamente a falta de garantia de germinação, o que prejudica a produtividade, além de aumentar o risco de disseminação de pragas e doenças não apenas na propriedade que está usando o produto falso, mas também nas fazendas vizinhas, pois o insumo pirata não respeita normas fitossanitárias.
A produção de feijão é um exemplo dessa realidade. Segundo levantamento recente do Instituto Brasileiro de Feijão e Pulses (Ibrafe), pelo menos 90% das sementes usadas atualmente pelos produtores não possuem certificação.
“Nosso grande desafio é incentivar o desenvolvimento de novos cultivares de feijão, que abram espaço para aumentar a produtividade e também desenvolver variedades que impulsionem as nossas exportações”, explica Marcelo Luders, presidente do Ibrafe.
Goran Kuhar, Diretor-Executivo de Biotecnologia da CropLife Brasil, lembra que, no caso do feijão, a falta de garantia de retorno e o elevado nível de investimentos acabam desestimulando os produtores de feijão a investir em novas variedades. “Leva-se de oito a dez anos para desenvolver variedade nova. É algo que demanda investimento alto e longo prazo”, afirma.
Segundo a CropLife, pelo menos 20% de toda a área cultivada do Brasil não usa semente certificada. Mas esse índice varia para mais ou para menos a depender da região e do tipo de cultura.
O Rio Grande do Sul, por exemplo, é o estado onde há recorde na adoção de sementes não certificadas – ou seja, com maior índice de pirataria ou falsificação, com taxa média de 50%.
Kuhar explica que o Brasil tem uma peculiaridade na qual a legislação permite que o produtor guarde grãos para usar em plantios posteriores – algo que não é autorizado nos Estados Unidos, por exemplo.
Isso acontece especialmente com sementes de soja, trigo, algodão, o que prejudica a fiscalização e aumenta as brechas para o uso de insumos piratas ou falsificados.
Mas há exceções. Segundo ele, algumas culturas, como milho e sorgo, usam híbridos. Nesses casos, não compensa para o agricultor guardar sementes para usar na safra seguinte ou para comercializar, o que ajuda a reduzir a incidência de falsificação.
É o que acontece também com a soja, que tem uma média de 80% de uso de sementes certificadas. Não à toa, o Mato Grosso é o estado com maior cuidado com certificação: 90% das sementes.
Fiscalização
Como uma tentativa de reverter o cenário de falsificação, a CropLife Brasil, que é a associação de empresas que atuam na pesquisa e no desenvolvimento de tecnologias para produção agrícola sustentável, vem atuando em conjunto com órgãos reguladores para ampliar o apoio ao processo de fiscalização.
Segundo a CropLife, nos últimos quatro anos, o número de apreensões realizadas pelos órgãos de fiscalização mais que dobrou: saltou de 301 toneladas em 2020/2021 para 813 toneladas em 2022/2023, totalizando cerca de 1,114 mil toneladas de defensivos agrícolas ilegais apreendidos.
“É extremamente importante que o produtor esteja ciente dos riscos que o uso de insumos ilegais no campo traz, tanto para a saúde de quem maneja esses produtos quanto para quem consome o alimento cultivado com esse tipo de substância”, reforçou Eduardo Leão, presidente da CropLife, ao apresentar o estudo.
Somente no ano passado, fiscais da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural do Rio Grande do Sul impediram a comercialização de cerca de 750 toneladas de sementes não certificadas. Trigo, aveia e soja estavam entre os grãos que eram comercializados irregularmente.
A urgência de acelerar a fiscalização tem muito a ver com a produtividade. O investimento em melhoramento genético das sementes é considerado fundamental para aumentar a produtividade das culturas, além de desenvolver sementes mais resistentes a pragas e doenças. Para que isso aconteça é necessário investimento e respeito às regras.
O elevado nível de produtividade de culturas como soja, milho e cana-de-açúcar, por exemplo, está diretamente ligado aos investimentos feitos nos últimos anos para melhorar a qualidade das sementes.
A safra recorde de cana do último ciclo teve a renovação das plantas – a partir do uso de novas sementes certificadas – como um dos principais fatores para o grande resultado.
“Esse é um problema que o Brasil precisa enfrentar de forma séria e consistente”, diz Kuhar, diretor da CropLife, ao AgFeed. Ele lembra o exemplo da Argentina, que, por falta de controle na comercialização de sementes, vem perdendo produtividade em setores onde já foi líder. Por lá, a cultura do algodão quase desapareceu por falta de investimento.
“O efeito de longo prazo para os países que não investem é ter um platô de produtividade, com efeitos ainda na disseminação de pragas”, diz o executivo da CropLife.
“Além da produtividade, o que está em jogo também é a manutenção da posição do Brasil como líder mundial nas vendas de diversos produtos”, diz Vismona, da FNCP.
Segundo ele, conscientizar quem compra para romper como ciclo de que a oferta existe por causa da demanda é essencial, pois o uso de produtos piratas ou falsificados dá argumento para a narrativa de alguns competidores do Brasil no mercado internacional de que o produto do país é produzido com insumos proibidos e devastando a floresta.
“Isso tudo tem impacto direto na nossa pauta de exportações. E o produtor que aceita um produto ilegal precisa entender que está trabalhando contra ele mesmo quando escolhe usar uma semente pirata ou qualquer outro insumo que seja falsificado”, diz Vismona.
É sempre importante lembrar: comercializar e comprar sementes piratas é crime, previsto na legislação federal e estadual, podendo gerar multa conforme a legislação, seja pela lei de proteção de cultivares (nº 9456/1997), ou pela lei de sementes e mudas (nº 10.711/2003), que trata das empresas detentoras dos direitos genéticos e de biotecnologia de cultivares já existentes no país.