“A nossa luta pela independência vem do passado. No meu caso, começou com minha avó, que era uma mulher muito forte e que batalhou para ter o seu espaço. Durante muitos anos, ela conduziu sozinha a nossa fazenda e depois contou com o apoio da minha mãe, nora dela e que virou seu braço direito.”
A frase é de Carolina Palmeiro, diretora e sócia da Estância São João I e Estância São João II, localizadas no município de Herval, no Rio Grande do Sul.
Após a morte da mãe, Carolina assumiu o negócio da família ao lado da avó e com apoio das irmãs. A fazenda, que chegou a ter quase que todas as suas terras arrendadas a terceiros nos anos 1990, hoje controla 100% do rebanho de 1.200 cabeças de gado e 400 matrizes, com a perspectiva de chegar a 700.
A Estância São João é fornecedora de proteína animal para a Marfrig, além de produzir soja. “Minha avó e minha mãe são o meu exemplo porque foram elas que batalharam primeiro para que eu pudesse estar aqui e ter o meu espaço”.
A cafeicultora Patrícia Carvalho, que é sócia-proprietária do Grupo Fazendas Terra Fértilatuar, pertencente a sua família, e Consultora de Cafés Especiais do Grupo 3corações, também diz se sentir numa posição privilegiada por poder atuar num espaço que foi aberto por mulheres que chegaram antes dela no agronegócio.
“Na minha família, a gestão da fazenda sempre passou de pai para filho. Foi assim por gerações e o comum seria que o meu irmão fosse o sucessor”, afirma Patrícia. Mas isso mudou, pois quem toca os negócios, ao lado do pai, hoje são ela e a irmã.
Formada em administração de empresas, com especialização e MBAs focados em marketing e no agronegócio obtidos nos Estados Unidos e Canadá, Patrícia lidera há dois anos a área de vendas e contratos da Fazenda, enquanto a irmã cuida da lavoura, da qualidade da safra e dos funcionários.
Em paralelo, ela também atua no Projeto Florada, uma iniciativa da 3corações que valoriza e gera reconhecimento e renda para as mulheres cafeicultoras.
Maior produtor mundial e responsável por um terço do que é consumido no mundo, o Brasil possui mais de 300 mil fazendas de café, das quais 70% são de agricultura familiar.
“Nessas fazendas, a mulher é muito presente no dia a dia de tudo, mas elas ainda não se reconhecem como integrantes do negócio. Muitas se veem apenas como ‘auxiliares’ dos maridos, pais e irmãos”, afirma Patrícia, citando o exemplo da própria mãe, que há décadas cuida da gestão administrativa da fazenda ao lado do pai, mas que só agora, com a ascensão dela e da irmã na liderança do negócio, começou a se reconhecer como uma mulher agricultora.
Gislaine Balbinot, diretora-executiva da Abag, a Associação Brasileira do Agronegócio, lembra de um levantamento feito pela instituição há alguns anos que tinha como foco traçar o perfil da mulher no agronegócio e que refletia justamente essa situação.
“Tivemos que revisar muitos cadastros da pesquisa porque as mulheres não se identificavam como gestoras e atribuíam todo o seu trabalho aos homens, colocando-se apenas como ajudantes”, lembra.
O último Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2017, apontou que 19% dos estabelecimentos rurais do Brasil são dirigidos por mulheres – 10 anos antes eram 13%.
Esse percentual significa que 947 mil mulheres são diretamente responsáveis pela gestão de propriedades rurais do país. Outras 817 mil fazem gestão compartilhada, elevando para 1,7 milhão o número de mulheres que atuam na direção e codireção de estabelecimentos agropecuários.
“Tivemos uma evolução muito grande nos últimos anos especialmente pelo surgimento de movimentos organizados de mulheres que atuam no agro ajudando outras a buscar seu reconhecimento no setor”, afirma Gislaine.
Ela se diz otimista em relação à evolução da mulher no agronegócio brasileiro, especialmente por causa do movimento de troca de gerações nas famílias de agricultores. “Isso abre espaço para a adoção de inovações e tecnologias e, consequentemente, para as mulheres”, diz.
O levantamento do IBGE traz dados que sinalizam essa tendência. Ele aponta que o perfil das mulheres dirigentes das propriedades é um pouco mais jovem quando comparado aos homens - 30% tinham menos de 35 anos.
Além disso, os estabelecimentos sob direção feminina são majoritariamente de agricultura familiar, com percentual maior na pecuária (78,1%).
Patrícia e Carolina são exemplos dessa tendência, mas não estão sozinhas. Há ainda um contingente imenso de mulheres que atuam no campo, sem a prerrogativa de estar em cargos de gestão e que também precisam de reconhecimento.
De acordo com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), as mulheres respondem por pouco mais de um terço da população ocupada no agronegócio. Elas também ganham menos – com remuneração em média 20% menor que de homens que exercem as mesmas funções.
Muitas são empreendedoras individuais que enfrentam ainda dificuldades de acesso a crédito e insumos para que possam conduzir seus próprios negócios.
É o caso de Zene Vieira, engenheira agrônoma que faz a gestão da Cooperativa Agropecuária Mista Regional de Irecê (Coopirecê), no semiárido baiano. Ela lidera um projeto que auxilia 200 produtores de milho não transgênico a produzir em larga escala na região.
“No começo enfrentei bastante preconceito, mas hoje, os produtores confiam e reconhecem o meu trabalho, pois conseguimos ampliar mercado e aumentar lucro e produtividade”, diz Zene.
Ela conta com apoio da startup Polvo Lab, que auxilia na abertura de mercado para os produtos da cooperativa em todo o País – o mel, por exemplo, chega a redes como St Marche, Empório Fasano e Casa Santa Luzia, em São Paulo.
Além do semiárido, a Polvo Lab auxilia ainda 3.440 famílias em cidades dos estados da Bahia, Piauí e Maranhão, impactando cerca 14 mil pessoas das quais 70% são mulheres que trabalham na cadeia do mel, castanha de caju, cacau, milho, mandioca e licuri.
“O Brasil vende muito mal essa força feminina da agricultura familiar, então o nosso propósito é rodar todo o país para conseguir conectar produtos muito potentes, com a força feminina”, diz Gabi Marques, co-fundadora do Polvo Lab.
Ela explica que o foco é atuar em territórios onde há maior concentração de pobreza e, assim, colaborar com o aumento da geração de renda.
Gislaine, da Abag, lembra que a redução da desigualdade no campo e o reconhecimento do trabalho da mulher está diretamente associado ao papel que as mulheres líderes têm para incentivar e ajudar as demais.
“Precisamos de representantes da força da mulher, seja no campo, na política ou na economia”, diz, lembrando que a mulher tem o olhar para a construção e para a sustentabilidade.
“A mulher tem tido um papel fundamental na introdução de novas áreas de negócio dentro do agro”, diz a cafeicultora Patricia, citando o aperfeiçoamento de áreas de vendas, controle de qualidade, inovação, tecnologia, marketing e comunicação como exemplos dessas novas áreas que geram muito valor para o negócio e que tem se desenvolvido por causa das mulheres.
Uma visão unânime entre as agricultoras é que o agro, apesar de ainda ser um ambiente muito masculino, tem muitas coisas do feminino dentro dele, por pertencer ao que Patrícia chama de “um mundo muito humanizado”.
“Trabalhar com a terra, com a água e com os animais é ter visão de cuidado e isso é muito feminino”, diz Carolina.