Pela primeira vez no Brasil, um rebanho monitorado por inteligência artificial serviu de garantia para uma operação de crédito rural.
Esse é o resumo da operação que foi assinada nos últimos dias e marcou a emissão de uma CPR (Cédula de Produto Rural) lastreada em bovinos acompanhados digitalmente em tempo real.
Em um momento de caixa apertado no campo, o processo foi feito a muitas mãos e garantiu ao pecuarista Marcelo Xavier, de São Sepé (RS), R$ 120 mil com base em 58 animais equipados com a tecnologia da Autotag, da agtech Instabov, que tem a Belgo Arames como sócia.
O recurso foi aportado por um FIDC da gestora Kanal e ainda envolveu uma série de outras empresas, como escritórios de advocacia e a agtech argentina SiloReal, que chegou há alguns anos no Brasil com sua tese de “digitalizar” silo bolsas.
A transação levou cerca de dez meses para ser estruturada, até que o conjunto de dados gerados pelos brincos eletrônicos da Instabov fosse reconhecido como uma “prova de vida contínua” dos animais dados em garantia.
Segundo Bruno Nolasco, gerente de negócios Agro da Belgo Arames, empresa investidora da Instabov, a lógica segue a mesma dos financiamentos com CPR usados para grãos, em que o produto armazenado funciona como garantia reconhecida para a captação.
A diferença é que, no caso dos bovinos, essa equivalência nunca foi possível porque o animal se move, pode ser roubado, vendido ou simplesmente desaparecer do radar do credor.
“Com acompanhamento 24 horas por dia, sete dias por semana, o rebanho deixa de ser apenas um ativo operacional e vira um ativo financeiro digitalizado”, afirmou Nolasco.
“É uma camada de segurança que faltava para destravar uma linha de crédito que sempre existiu para culturas como soja ou milho, mas jamais para gado”, acrescentou o gerente de negócios agro da Belgo.
A tecnologia da Instabov nada mais é do que um brinco eletrônico que funciona combinado a antenas, GPS e um aplicativo abastecido por inteligência artificial (IA).
Segundo explicou o CEO da startup, Fernando Moraes, essa gama de dados permite que se faça análises zootécnicas, detecção de desvios sanitários, movimentações incomuns dos animais, além de registros de alterações de lote.
É nesse ponto que entra a SiloReal, que captura essas informações para realizar auditorias remotas e validar, com dados independentes, que os animais penhorados continuam na propriedade e dentro das condições exigidas pelo contrato da CPR.
“Isso não existia para os bovinos. Como falamos de um ser móvel, não havia como. A tecnologia permitiu isso, já que cada animal tem um brinco com geolocalização”, disse Nolasco, da Belgo.
Fernando Moraes cita que a ideia surgiu de forma natural dentro da Instabov. “A gente já gerava dados, mas quando falamos em garantias reais na pecuária, sempre foi muito complicado”.
A startup tentou tirar a ideia do papel desde o ano passado, mas foi só quando a SiloReal entrou na jogada que o projeto saiu do papel.
Na sua opinião, usar dados digitais como garantia real é algo disruptivo e, além da Belgo, da própria Instabov e da SiloReal, “outros CNPJs” foram fundamentais para o fato.
Além da Kanal, gestora de Alexandre Cardoso - que é cliente da Instabov como pecuarista na pessoa física -, a Reis Advogados, de Uberlândia, atuou com toda a validação jurídica, com apoio da também mineira Esfera Consult.
Moraes, da Instabov, acredita que a operação tem um componente simbólico relevante além da inovação tecnológica. Ele lembra que muitos pecuaristas têm pouca margem para novas garantias. Alguns já comprometeram imóveis, máquinas e parte do rebanho, enquanto outros operam em confinamentos terceirizados, sem falar nos impactos climáticos que, especialmente o estado gaúcho, tem vivido.
“Saber que um produtor do interior do Rio Grande do Sul conseguiu crédito com um fundo do outro lado do País usando dados digitais diz muito sobre o que isso pode virar”, disse.
Marcelo Xavier, o produtor contemplado, atua tanto em genética bovina quanto na produção comercial. Ele opera com cerca de mil cabeças, sendo 400 de genética.
Ao AgFeed, citou que costuma comprar animais em momentos de maior oferta, sobretudo entre setembro e outubro, período em que os preços estão mais baixos no Sul.
Como as vendas acontecem só alguns meses depois, no ciclo seguinte, acontece um descasamento de cerca de três meses entre desembolso e receita.
“Ou eu espero para comprar e pago mais caro, ou antecipo a compra, o que me faz precisar de caixa. Essa janela abriu a possibilidade de usar os próprios animais como garantia para financiar esse intervalo”, explicou o pecuarista.
Durante a entrevista com os participantes da empreitada, Moraes, CEO da Instabov, era o mais animado com o fato. Na sua avaliação, a emissão dessa CPR abre brecha para ampliar o financiamento rural, pois traz mais um elemento na esteira de crédito dos investidores, como bancos e fundos.
O CEO contou que a empresa hoje está com presença em oito estados, com projeção de atingir entre 40 mil e 50 mil animais monitorados até o ano que vem. A companhia tem dado seus primeiros passos no mercado após receber, no final do ano passado, R$ 3 milhões da Belgo Arames.
Segundo Moraes, mostrar que a tecnologia consegue ajudar o produtor a obter crédito será um trunfo na estratégia comercial ao longo do próximo ano. Até então, a tecnologia tem sido utilizada principalmente para a segurança dos produtores, que conseguem monitorar em tempo real a localidade do rebanho.
“Lançamos essa tecnologia junto da Belgo na Agrishow deste ano e já houve uma explosão muito grande de vendas. Nós colocamos os brincos nos animais junto das antenas na fazenda e com dados nas nuvens, tudo vai para um aplicativo”, explica.
“Os fundos que querem dar crédito têm acesso a esses dados, assim eles conseguem verificar se o animal está na fazenda de fato”, acrescentou.
Nessa operação com o pecuarista Marcelo Xavier, o CEO da Instabov conta que alguns bancos e fundos chegaram a analisar a operação, mas acabaram recuando diante de dúvidas regulatórias.
O FIDC Kanal assumiu a dianteira. “Foi o primeiro que olhou para os dados, entendeu a robustez do sistema e topou fazer. Alguém precisava puxar a fila”, disse.
Para Bruno Nolasco, da Belgo, o movimento se encaixa na estratégia de ampliar ofertas ligadas à segurança, rastreabilidade e produtividade do rebanho, áreas em que a companhia já atua com sistemas de cercamento e proteção patrimonial.
Nolasco reforça que, além do crédito, a ferramenta possibilita que os produtores reorganizem o manejo diário ao automatizar tarefas como pesagem, identificação de lotes, movimentação de animais e registros sanitários.
A Belgo não divulga seus números de receita, mas segundo ranking publicado no anuário da revista Globo Rural em dezembro do ano passado, a receita líquida anual do grupo em 2023 foi de R$ 4,5 bilhões.
Em entrevista ao AgFeed durante a Agrishow deste ano, a companhia mencionou que projetava crescer “dois dígitos” em 2025.
Resumo
- Pecuarista de São Sepé (RS) levantou R$ 120 mil em CPR lastreada em 58 bovinos monitorados por IA, abrindo precedente para transformar rebanhos em ativos financeiros digitalizados
- Operação envovleu a agtech Instabov, Belgo Arames, SiloReal, Kanal e escritórios jurídicos para validar “prova de vida contínua” e permitir auditorias remotas dos animais
- Instabov projeta 40 a 50 mil cabeças monitoradas em 2025 e vê a CPR como porta de entrada para ampliar o crédito pecuário com dados digitais acessíveis a fundos e bancos