O aroma doce e intenso do café que sai das terras ocupadas pelo povo indígena Paiter Suruí, em Rondônia, carrega mais do que notas de rapadura e mel.

Traz o peso simbólico de um feito inédito: pela primeira vez, um café da espécie Coffea canephora – o robusta amazônico –  atingiu a pontuação máxima de 100 pontos após um júri de nove especialistas independentes ter avaliado o produto, seguindo o protocolo internacional de avaliação Fine Robusta Cupping Form.

O café premiado foi produzido por Rafael Mupimoku Suruí, cacique da etnia Paiter Suruí, e agricultor da aldeia Linha 9, na Terra Indígena Sete de Setembro, uma grande área de 248,1 mil hectares localizada entre os municípios de Cacoal (RO), Espigão D'Oeste (RO) e Rondolândia (MT), na divisa entre os estados de Mato Grosso e Rondônia.

O café de Suruí agora está chegando ao mercado sob o rótulo Tribos 100 Pontos, parte da linha de cafés especiais Rituais 85+, do grupo 3Corações, líder do segmento de cafés no Brasil.

O AgFeed provou o café em um almoço nesta quarta-feira, dia 8 de outubro, no restaurante Dalva e Dito, do chef Alex Atala, em São Paulo (SP), que contou com a participação de Suruí e executivos da 3Corações.

Mesmo este repórter não sendo um crítico gastronômico de profissão, é possível dizer que a sensação que o café deixou foi de leveza no paladar, com um toque amadeirado - não havia qualquer presença de acidez - e, ao mesmo tempo, um cheiro intenso e doce. Mais de uma hora, o café ainda se fazia presente no paladar.

Esse produto é fruto de um projeto que vem sendo desenvolvido desde 2019 pela 3Corações, o Tribos, com indígenas da região amazônica. Hoje, a companhia compra 1,5 mil sacas de café de 169 famílias das terras indígenas Sete de Setembro e Rio Branco.

"Tudo começou em 2018, na Semana Internacional do Café, que acontece anualmente em Belo Horizonte. A gente viu um indígena com um pequeno estande, mostrando o café dele. Aquilo nos intrigou. Fomos conversar e descobrimos que havia café na Floresta Amazônica com um potencial enorme, mas sem assistência técnica, sem estrutura e vendido a preços muito baixos", recordou Patrícia Carvalho, gerente de cafés especiais da 3Corações e líder do projeto Tribos, que conversou com o AgFeed durante o evento.

O projeto nasceu para mudar esse cenário. A 3Corações montou um censo em parceria com a Funai e mapeou 169 famílias de 28 aldeias em dois territórios que somam 500 mil hectares, que já tinham café plantado pelo homem branco antes da demarcação das terras indígenas.

"Só que a gente viu que o café não tinha um manejo adequado de qualidade, porque os indígenas não tinham expertise de colheita, de pós-colheita, então eles simplesmente tiravam o café da árvore e vendiam na cidade para intermediários", explica Carvalho.

O café, conta ela, que chegava a ser vendido entre R$ 450 a R$ 500 a saca, acabava sendo comercializado por valores muito menores pelos indígenas. "Era algo como R$ 100 a R$ 120 a saca. Muito baixo", recorda a executiva.

A partir desse mapeamento, a companhia entendeu que o desafio era muito maior do que simplesmente comprar o café e colocá-lo no mercado. “Seria inviável chegar, comprar o café e fazer um produto limitado. Estamos falando de povos indígenas, com histórias e estruturas próprias, e que já tinham vivido experiências frustrantes com empresas que começaram projetos e desistiram no meio do caminho”, lembra Carvalho.

Foi com essa consciência que ela e sua equipe passaram a visitar as aldeias mensalmente para ouvir as famílias.

“A gente ia, sentava, escutava. Eles falavam das dificuldades de transporte, de como vendiam o café por um valor muito abaixo do mercado, da falta de assistência técnica. A partir dessas conversas, criamos o que chamamos de ciclo sustentável do projeto.”

Esse ciclo reúne três pilares: investimento em infraestrutura, com a construção de terreiros suspensos e melhoria de estradas locais, capacitação técnica e garantia de compra com preços acima do mercado. A companhia conta com apoio da Embrapa Rondônia, Emater, Câmara Setorial do Café e secretarias estaduais e municipais de agricultura para realizar o projeto.

Carvalho diz que o pagamento de valores acima dos preços de mercados nas negociações com os indígenas varia conforme a qualidade do café. No mundo do café, há uma classificação por defeitos, escala que vai do tipo 2 ao tipo 8.

No tipo 2, o café pode ter até 8 defeitos, enquanto que no tipo 8, pode ter até 360 defeitos. “Do café do tipo 2 até o tipo 5, a gente paga 50% acima do preço de mercado”, explica a gerente da 3Corações.

Em paralelo, Carvalho diz que a companhia promove um concurso entre os produtores indígenas de café para premiar aqueles que estão produzindo o melhor fruto.

Foi assim que o café de Rafael Mupimoku Suruí chamou a atenção da companhia, ao atingir a pontuação máxima de 100 pontos segundo o Fine Robusta Cupping Form, protocolo internacional de avaliação.

Agora, o café produzido por Suruí vai ser comercializado no Mercafé, e-commerce da marca, junto com um moedor de alta precisão, por R$ 599. Todo o lucro aferido com o café vencedor desse concurso é repassado aos produtores indígenas.

Ao AgFeed, o cacique disse que ficou surpreso com a marca obtida. O café que ele produz é fruto de um trabalho contínuo de aprimoramento realizado pelos Paiter Suruí enquanto povo, que hoje veem na cafeicultura uma atividade capaz de gerar renda, preservar o território e fortalecer a cultura local.

A história começou ainda na década de 1980, quando já existia pés de café, que haviam sido plantadas anteriormente por invasores nas áreas que foram ocupadas pelos indígenas, mas eles não sabiam nem o que fazer com os frutos. “Até a gente comia ele”, recorda Suruí.

Com o passar do tempo, com apoio da Funai, os indígenas foram entendendo que os frutos que davam nas árvores poderiam ser torrefados, moídos e transformados na bebida preferida dos brasileiros.

Mas ainda há dificuldades. Suruí conta que, na última safra, seus pés de café não renderam frutos em função do clima quente na região. “Tem que ter uma irrigação para o café”, defende ele.

Com a irrigação, a produtividade pode ganhar um incremento. na avaliação de Patrícia Carvalho.

“Essa questão climática afeta muito a produtividade e a produtividade deles já é muito baixa, muito mais abaixo do que a média, porque eles estão começando a cuidar da lavoura e a lavoura não responde do dia pra noite. Há todo um processo”, afirma. “Produtividade também é sustentabilidade, é você produzir mais no mesmo espaço, e a irrigação contribui pra isso.”

Apesar dos desafios, Suruí diz que o interesse dos indígenas em produzir café tem crescido, ajudando também a fixar os jovens nas aldeias. “Até o jovem que trabalhava na cidade, estudava na cidade, quer voltar na aldeia e trabalhar”, conta ele.

Resumo

  • Pela primeira vez, um café da espécie Coffea canephora – o robusta amazônico –atingiu a pontuação máxima de 100 pontos, seguindo o protocolo internacional de avaliação Fine Robusta Cupping Form.
  • O café foi produzido por Rafael Mupimoku Suruí, cacique da etnia Paiter Suruí, e agricultor da aldeia Linha 9, na Terra Indígena Sete de Setembro, na divisa entre os estados de Mato Grosso e Rondônia.  
  • O produto agora faz parte do projeto de cafés especiais da 3Corações, a maior empresa do setor no Brasil, que está trabalhando com o grão produzido por indígenas.

Indígenas durante evento na capital paulista