No começo do século passado, Ribeirão Preto e Cravinhos enriqueceram com o café. O “ouro negro” foi tão importante que está nos hinos e nas bandeiras desses municípios vizinhos no interior paulista.
Com a crise da commodity, a partir da década de 1930, colonos italianos se tornaram proprietários de terras e seus sobrenomes estão até hoje ligados ao desenvolvimento do setor sucroenergético e urbano da região.
A vocação e a riqueza rural, o domínio da cana-de-açúcar e a pujança econômica fizeram com que a região fosse rebatizada de Califórnia Brasileira já na década de 1980. Posteriormente, Ribeirão Preto se autodenominou Capital Brasileira do Agronegócio.
Indústrias, grandes empresas e consultorias mantêm fábricas e escritórios nos municípios e, no boom imobiliário de mais de 20 anos, prédios e condomínios avançaram sobre canaviais. Hoje, é possível ir de Ribeirão Preto a Cravinhos por uma avenida, sem precisar recorrer à Via Anhanguera.
Assim como na Califórnia, a dos Estados Unidos, o alto poder de compra e as terras férteis dos dois municípios se tornaram a combinação ideal para uma nova cultura - a de uvas para a produção de vinhos finos - e, quem sabe, um novo ciclo agrícola.
O movimento é liderado por duas vinícolas, a Terras Altas, em Ribeirão Preto, e a Biagi, em Cravinhos, criadas por “herdeiros” da cana e do setor imobiliário, ambas consolidadas e com projetos de ampliação em curso, como contaram seus gestores em conversas com AgFeed.
Pioneira, a Terras Altas nasceu em um canto de solo pedregoso de um canavial com pouca produtividade para a cultura produtora de açúcar. Em apenas dois hectares, os engenheiros, enófilos, amigos e investidores do setor imobiliário José Renato Magdalena e Fernando Horta desenharam um projeto de cultivo de uvas viníferas para a produção de vinhos de alta qualidade.
O primeiro plantio foi em 2017, da variedade Syrah, a mais estudada e bastante comum nos cultivos realizados em outras vinícolas paulistas pela sua rusticidade e adaptabilidade. Apesar da altitude de 750 metros e de uma amplitude térmica favoráveis à produção, as dúvidas sobre a viabilidade do projeto eram grandes.
As parreiras se desenvolveram bem e a primeira vinificação foi feita em 2019 no centro da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), em Caldas (MG), onde também foi realizada a análise da qualidade do vinho.
“O vinho foi engarrafado e enviado para o concurso da Decanter em Londres onde recebeu medalha de bronze, a primeira de muitas que temos”, disse Ricardo Baldo, engenheiro agrônomo e diretor da Terras Altas desde o início do projeto.
Com a chancela do mercado internacional, o investimento seguiu. Em 2021, foi inaugurada a estrutura para vinificação em Ribeirão Preto, com unidade de processamento, 24 tanques de inox para fermentação e armazenamento, além de barricas de carvalho francês para o descanso do vinho, que varia de quatro meses a dois anos antes de ser engarrafado na unidade.
Os aportes, que, segundo Baldo, somam R$ 18 milhões até 2025, incluíram a ampliação da área de vinhedos para 10 hectares, o plantio de novas variedades de uvas cabernet sauvignon e cabernet franc. Um restaurante e uma loja já funcionam e um wine bar estará em operação ainda no segundo semestre.
A produção atual é de 40 mil garrafas por ano. Mas uma nova ampliação, com o cultivo de mais 5 hectares, deve elevar a oferta para 100 mil garrafas anuais.
Todo o vinhedo é irrigado por gotejamento. Como os períodos de estiagem são longos na época da colheita, inverno na região paulista, a água é utilizada para controlar o estresse hídrico que concentra o açúcar e determina a qualidade da uva e do vinho.
“É preciso ter um estresse moderado para ativar os compostos que garantem a qualidade dos vinhos”, afirmou Baldo. A Terras Altas produz seis rótulos: o rosé Cava do Bosque, três tintos do Entre Rios Syrah e dois mais recentes do Amplitude 25 Cabernet Sauvignon e Cabernet Franc.
O Amplitude 25, explica Baldo, é uma referência à amplitude térmica, diferença de temperaturas entre as mínimas de noites frias e máximas de dias quentes na região, que chega a 25 graus Celsius, outro fator positivo para a qualidade da uva e do vinho ribeirão-pretano.
“Todos os anos eu, a nossa enóloga e um consultor independente fazemos uma avaliação de amostras de todos os vinhos produzidos em todas as safras e os resultados sempre mostram que a qualidade está evoluindo”, concluiu Baldo.
A poucos quilômetros dali, já no município de Cravinhos, em uma tarde agradável de junho, o empresário Luiz Lacerda Biagi atendeu a reportagem do AgFeed. A conversa aconteceu na Osteria Elisabetta, anexa ao vinhedo e vinícola e que levam seu tradicional sobrenome da família italiana de empresários do setor sucroenergético.
Ele conta que o projeto da vinícola foi colocado em prática em 2020, no auge da pandemia. “O risco era grande, estávamos presos o tempo todo em casa e eu precisava fazer alguma coisa antes de morrer”, disse Biagi.
O empresário sobreviveu e seguiu firme no projeto. O próximo passo é a inauguração da unidade de processamento de uvas e produção de vinho, no segundo semestre deste ano. Até lá, a vinificação das variedades moscato giallo, nebbiolo e sangiovese, para dois rótulos de vinhos brancos, dois tintos e um rosé, segue terceirizada.
Os 12 hectares iniciais serão ampliados para 20 hectares e as uvas italianas ganharão companhia das “inimigas” francesas das variedades cabernet sauvignon e cabernet franc. Entre os próximos lançamentos, além de novos rótulos de tintos, está o de um espumante.
Biagi não revela o valor investido, mas não se cansa de elogiar o mundo do vinho, bem diferente do seu último negócio, a Zanini, metalúrgica que ganhou fama por ser a fábrica de centenas de usinas produtoras de açúcar e etanol no Brasil.
“A coisa mais importante é a atitude acolhedora e a generosidade dos amigos produtores, onde não há disputa. Eu cresci numa indústria onde você não podia olhar mais de um minuto para alguma peça ou projeto”, disse Biagi antes de citar ter encontrado, em outras empresas, cópias de peças produzidas pela Zanini nas quais nem o logotipo da sua companhia foi retirado.
Com o projeto praticamente consolidado em uma área minúscula da fazenda de mais de mil hectares, Biagi diz estar “feliz, mas inseguro” com seu novo projeto. Inseguro porque, segundo ele, gostaria de saber mais o que os clientes e visitantes do restaurante pensam do seu novo projeto.
“Ali em cima estamos fazendo um jardim”, aponta Biagi para uma área perto da lagoa ao lado do restaurante da vinícola. É mais uma forma, segundo ele, de cativar os visitantes, “compartilhando o lugar com outras pessoas, sem ser elitista”, completa.
No fim do dia e da conversa, Biagi volta a falar da harmonia e generosidade no movimento vinícola local e de outros produtores paulistas. Ele comemora a oficialização da Wines of São Paulo como uma associação com dez vinícolas paulistas, entre elas a sua e a Terras Altas.
“O mercado de vinhos é muito seletivo e foi uma surpresa para mim. Cada uva, cada vinho tem uma torcida como a de um time de futebol e a associação é uma forma de demonstrarmos que temos qualidade”, disse o empresário. “Vamos criar histórias como os outros criaram e construir novos vínculos”, concluiu.
Resumo
- Alto poder de compra e as terras férteis criaram a combinação ideal para a cultura de uvas para a produção de vinhos finos
- As vinícolas Terras Altas, de José Renato Magdalena e Fernando Horta, e Biagi, de Luiz Biagi, têm os projetos mais consolidados na região