Primeiro, a sinalização. Depois, a confirmação. Agora, a expectativa. Na última quinta-feira, 12 de junho, o Governo Federal confirmou as sinalizações do ministro da Fazenda Fernando Haddad e publicou uma MP (Medida Provisória) que aumenta alguns impostos e compensa o decreto do IOF, que não foi para frente.

O texto prevê, dentre outras coisas, um imposto de 5% sobre os rendimentos de títulos que até então eram isentos, como CDAs (Certificado de Depósito Agropecuário), WA (Warrant Agropecuário), CDCAs (Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio), LCAs (Letra de Crédito do Agronegócio), CRAs (Certificado de Recebíveis do Agronegócio) e CPRs (Cédula de Produto Rural com liquidação financeira, desde que negociada no mercado financeiro).

Às vésperas das Festas Juninas, que costumam esvaziar o Congresso, e do recesso parlamentar que paralisa os trabalhos de Câmara dos Deputados e Senado, as chances de que o projeto seja votado são pequenas.

Bem diferente do mal estar causado pelo apetite arrecadatório do governo, que não tem dado sinais de passar. Ao contrário, à medida em que o tempo passa, estimativas do impacto da MP sobre o setor produtivo começam a surgir, trazendo números preocupantes.

Um estudo feito pela gestora Suno calculou que a mudança pode enxugar até R$ 50 bilhões em financiamento do agronegócio e do setor imobiliário. Segundo o economista-chefe da Suno Research, Gustavo Sung, um dos responsáveis pelo estudo, pouco mais da metade, algo em torno de R$ 25,7 bilhões, seriam retirados do crédito agrícola, seja por meio de CRAs ou LCAs.

Para chegar nesse número, Sung e sua equipe utilizaram como base um estudo do ano passado de Travis St. Clair, professor de pós-graduação na Universidade de Nova Iorque, que mapeou os efeitos de um pequeno salto nas taxas de juros criado pela Lei de Reforma Tributária de 1986 nos Estados Unidos.

Naquela época, os bancos americanos emitiam dívidas e utilizavam o recurso dessas captações para comprar títulos municipais. As cidades e estados, por sua vez, concentravam cerca de 75% do investimento em infraestrutura pública.

Sung explica que, nessa operação, o banco comprava títulos e pagava imposto sobre os juros, mas como havia benefícios por serem investimentos estratégicos, utilizava o pagamento de juros para descontar o imposto da operação

“A partir da reforma do imposto, depois de 1986, acabou-se com a prática do banco usar o pagamento dos juros para descontar no imposto de renda, o que encareceu as operações”, disse Sung ao AgFeed.

O pesquisador americano chegou à conclusão que o governo estadunidense reduziu seus empréstimos em aproximadamente 5% em resposta a um aumento de 8% a 17% nos custos de juros.

Adaptando para a realidade da MP proposta aqui no Brasil, Sung chegou a conclusão que, mesmo com a alíquota moderada em relação ao que foi feito nos EUA há 40 anos, os 5% propostos por Haddad podem trazer uma perda significatova.

“Se há um aumento de 5% da alíquota, afeta-se entre 1,25% e 3,5% no volume de novas emissões de LCIs, LCAs, CRis e CRAs”, concluiu Gustavo Sung.

Considerando o estoque atual de R$ 735 bilhões em LCAs e CRAs, os 3,5% podem resultar no enxugamento de quase R$ 26 bilhões.
Somado a isso, a Suno calculou, utilizando como base um estudo da CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção), que cada milhão investido no agro gera 35 empregos diretos e indiretos.

Assim, com a “retirada” desses mais de R$ 25 bi, o setor pode deixar de gerar 900 mil vagas de trabalho.

“O número é estimado e pode ter uma defasagem temporal, a depender de quando entra em vigor. O importante é que provavelmente alguns pontos dessa MP vão cair, pelo menos essa é a minha sensibilidade conversando com Brasília”, acrescentou Sung, economista-chefe da Suno Research.

Ação e contradição

Do lado do Governo Federal, o argumento de Haddad a favor da medida é de que ela “não afeta a vida da população”, mas “corrige distorções”.

Ele defende que os 5% equilibram o pagamento de impostos pelas instituições financeiras e acrescentou que as isenções estavam “criando um problema para a economia do País”.

O setor privado, em especial o agronegócio, reagiu de forma negativa. Ivan Wedekin, consultor e ex-secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, com atuação no mercado financeiro, acredita que a medida é um tiro no pé da política agrícola brasileira, a poucos dias da divulgação do Plano Safra 2025/2026

Foi sob a gestão de Wedekin que os LCAs nasceram, com o objetivo de ampliar as fontes privadas de financiamento do agro, complementando o crédito rural oficial.

“No primeiro mandato do presidente Lula, a lei [11.076/2004] criou os títulos do agronegócio, que fizeram uma revolução no financiamento da agricultura e do agronegócio”, relembra.

Wedekin calcula que hoje, os títulos do agro somados à CPRs alcançam R$ 1,27 trilhão, montante acima dos R$ 744 bilhões do crédito rural oficial, que hoje prioriza pequenos e médios produtores.

Só no total desembolsado no Plano Safra 2024/2025 até maio deste ano, Wedekin calcula que as LCAs foram responsáveis por R$ 98 bilhões do crédito rural destinado a produtores, sendo R$ 53 bilhões para custeio, R$ 4,8 bilhões para investimentos e o restante para comercialização e industrialização. No total, o título abarcou quase 30% do plano.

Wedekin considera a medida do Governo Federal um “tiroteio no saloon”. Ele relembra que, antes da MP, o CMN (Conselho Monetário Nacional) fez uma série de movimentos para otimizar o uso das LCAs.

Em 2024, estabeleceu um mínimo de 50% para que os recursos captados por LCAs sejam aplicados em operações de crédito rural. Neste ano, aumentou a porcentagem para 60%.

Além disso, também no ano passado, aumentou o prazo mínimo de resgate sem IR das LCAs de 3 para 9 meses e, neste ano, reduziu novamente para 6 meses, com algumas exceções.

“Aumentar de 50% para 60% e depois tributar em 5% me parece contraditório. A medida é esse ‘tiro no saloon’ porque tributa crédito imobiliário e títulos do agro e até debêntures incentivadas para projetos de infraestrutura, que é um problema no País”, disse Wedekin.

Ele ressalta, contudo, que o tema deverá ser amplamente discutido no Congresso nas próximas semanas e meses.

O que muda para o investidor?

Do lado dos investidores, quem já possui esses títulos não pagará o imposto. A medida valerá para títulos emitidos e comprados a partir do ano que vem. De qualquer forma, Octaciano Neto, fundador da Zera.Ag e especialista em mercado de capitais, acredita que a tributação tira o apetite do investidor brasileiro por títulos e fundos do agro.

“Vejo uma possibilidade concreta de desarrumar o financiamento da agricultura brasileira, que demorou 50 anos para ser colocada de pé com avanços legislativos e regulatórios”, disse ao AgFeed.

Octaciano Neto ainda relembra que a agricultura brasileira é pouco subsidiada em comparação a outros países do globo. Ele afirma que, na média da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), 9% da receita bruta do produtor vem de subsídios, ante 3% no Brasil.

“Na União Europeia é 19%, na China, 14%. Se tem uma coisa que a agricultura brasileira não é, é subsidiada, e o pouco que é o Governo está tentando desarrumar”, afirmou.

Um estudo da Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias), tentou simular o impacto da taxação de 5% em títulos e fundos.
No caso dos CRIs, CRAs, LCIs e LCAs, considerando uma taxa Selic de 14,75% ao ano e que os bancos não reajustem taxas de emissão, o rendimento acompanha a taxação, 5% menor.

Mas considerando que os bancos provavelmente aumentaram essa taxa para manter a atratividade ao investidor, já que ele pode optar por outros títulos já taxados atualmente, como CDBs, haverá acréscimo de 0,6% no custo do funding.

Para fundos como Fiagros e FIIs, a Abrainc simulou uma aplicação de R$ 100 mil, com retorno de 10% ao ano, durante cinco anos, na qual o investidor vendeu suas cotas ao final do período. O rendimento anual de R$ 10 mil bruto, que era também R$ 10 mil líquido, pode virar R$ 9,5 mil segundo o levantamento.

Como o investidor precisa declarar o lucro pela venda no seu imposto de renda (numa alíquota de 20%), os R$ 10 mil líquidos virariam R$ 8 mil. Somando a taxação de 5% ao imposto que já existe pela venda das cotas, o rendimento líquido acumulado no período sairia de R$ 58 mil para R$ 55.750.

“Haverá uma perda de rendimento líquido de R$ 2.250 (2,2% do valor da operação) no exemplo citado, em função da maior cobrança de impostos”, concluiu a associação.

Ivan Wedekin ainda acredita que a tributação pode fazer com que os bancos optem por outros títulos de dívida no lugar das LCAs.

Ele cita que hoje a LCA é um concorrente do CDB (Certificado de Depósito Bancário), título que considera mais “simples” para o banco operar. Para o investidor, a alocação sempre se voltará para o que trouxer mais retorno e a isenção das LCAs, mesmo com um imposto incidido numa venda antecipada do título, a tornava mais atrativa.

“No frigir dos ovos, coloca-se uma insegurança grande no sistema e isso pode desencadear uma emissão menor de LCA no futuro. Com isso, menos emissões, menos obrigatoriedade e menos oferta de crédito rural tendo como lastro o LCA”, finalizou Wedekin.

Resumo

  • Segundo estimativa da Suno Research, o impacto da MP pode tirar até R$ 25,7 bilhões do financiamento do agro
  • Ivan Wedekin, ex-secretário de Política Agrícola, afirma que a MP é um “tiroteio no saloon” e contradiz avanços recentes nas regras das LCAs
  • A taxação pode tornar títulos do agro menos atrativos frente a opções como CDBs, reduzindo emissões futuras e afetando o volume de crédito rural disponível via mercado