Jundiaí (SP) - As fotos projetadas na parede de uma sala no Centro de Engenharia e Automação (CEA), em Jundiaí (SP), são as provas apresentadas por Hamilton Ramos a quem ousa duvidar de suas histórias.

Na imagem, um homem está com o corpo forrado de absorventes femininos em um cenário rural. Ao todo, eram 22 acessórios, detalha o diretor do CEA. Era 1995 e o então pesquisador iniciava os estudos para obter o método eficaz para proteger o trabalhador rural dos males dos agrotóxicos.

Resumo

  • CEA se tornou referência global em pesquisa com EPIs, tem 86% do orçamento bancado pela iniciativa privada, mas corre risco de ter área vendida pelo governo
  • Unidade é berço de projetos de automação nas lavouras e reúne protótipos das primeiras colhedoras de café e de avião “pai” dos drones
  • Número de pesquisadores concursados recuou 65% desde 1995 com aposentadorias, pesquisas foram paralisadas e contratações têm de ser feitas por meio de fundação de apoio à pesquisa

Naquela época, os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para a aplicação de produtos químicos não passavam de vestimentas comuns e ineficazes, como a história mostrou e as pesquisas provaram depois.

Nos primeiros estudos, conta Ramos, absorventes eram colocados nas partes internas e externas dos EPIs e recolhidos após um dia de trabalho na aplicação de cobre nas lavouras. Em seguida, os pesquisadores avaliavam os níveis de exposição e a segurança dos equipamentos.

Outras fotos são projetadas. São de 1999. Nelas, os testes com quatro sistemas de aplicação de agroquímicos nas lavouras de uva de mesa. A ideia era avaliar a quantidade de agrotóxico que chegava aos corpos dos trabalhadores em cada método, sempre com o uso dos EPIs da época.

A diferença entre o sistema mais moderno, um pulverizador ligado a um trator, e o mais simples, a aplicação manual por meio de mangueiras ligadas a um sistema semi-estacionário, era gigantesca.

No corpo do operador do trator chegavam 151 mililitros (ml) por hora e, no aplicador manual eram 3.200 ml, ou 3,2 litros por hora, uma variação de 2.107% a mais de carga de agrotóxico diluído.

Foi na virada do milênio que as pesquisas lideradas por Ramos e sua equipe avançaram. Em 2000, o CEA foi procurado pela Citrosuco para avaliar a eficácia dos seus EPIs. Após assinar um termo de adequação com o Ministério do Trabalho, que contestava os acessórios, a companhia precisava rebater o órgão público e mostrar a eficácia dos EPIs.

Imagem, de 1995, dos estudos de eficácia de EPIs com uso de absorventes femininos

Protótipo de colhedora de café desenvolvido no CEA

Avião experimental considerado o “pai” dos drones

EPI desenvolvido para ser utilizado por trabalhadores rurais no Quênia.

Diretor do CEA, Hamilton Ramos, no laboratório de análises de EPIs

“Não havia sequer um protocolo no Ministério do Trabalho, não haviam normas específicas e nosso método de pesquisa era empirismo ainda. Ali nasceu o grande estudo de normas para os EPIs”, disse Ramos em entrevista com o AgFeed.

Aqui entram na história uma série de siglas com números que, na prática, são as tais normas de segurança de equipamentos e procedimentos previstas na International Organization for Standardization (ISO) e a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

O estudo buscava não só apontar qual o EPI mais seguro e adequado. A ideia era criar uma norma específica para os acessórios e os produtos químicos utilizados nas lavouras. Em um dos estudos, os pesquisadores utilizaram o padrão ISO 16602, que regulamenta produtos químicos, para avaliar 52 materiais diferentes utilizados nos EPIs. Todos foram reprovados.

As pesquisas e o desenvolvimento de novos equipamentos seguiram até a publicação da portaria 121, do Ministério do Trabalho, especificamente para regulamentar os EPIs, em 2009. No texto é explicitado pela primeira vez o risco químico com agrotóxico nos acessórios.

No ano seguinte, a ISO 27065 foi definida pelo Ministério do Trabalho como norma padrão para os testes e fabricação dos EPIs a serem comercializados e utilizados no campo. Todo o processo teve consultoria e suporte do centro de pesquisas.

Mas a vitória de décadas de estudo seguindo o lema do CEA - de se criar projetos inéditos voltados para solução de problemas efetivos do campo - se transformou em um drama para o centro de pesquisas e pode terminar em derrota para a pesquisa brasileira.

Em 2016, Ramos foi novamente procurado pelo Ministério do Trabalho. Mas não era para mediar alguma crise com empresas como a da Citrosuco e nem para atuar na parceria para o desenvolvimento de normas.

A proposta era irrecusável: o projeto de criação no CEA de um centro de transferência de tecnologia para se formar agentes multiplicadores, em todo o Brasil, das normas e do uso correto dos EPIs nas lavouras contaria com R$ 8,5 milhões para ser viabilizado.

O recurso viria de parte da multa paga no caso Shell/Basf pelos danos ambientais e sociais causados pela contaminação ambiental de uma área em Paulínia (SP) e ocupacional, com mortes de trabalhadores na região da fábrica de defensivos.

Ao levar a proposta à diretoria do Instituto Agronômico (IAC) para ter a anuência do órgão ao qual o CEA está subordinado, Ramos ouviu que ela não poderia ser aceita. O motivo: o governo do Estado de São Paulo iria vender áreas de pesquisas agrícolas para fazer caixa e entre elas estava o centro de Jundiaí.

Os R$ 8,5 milhões foram destinados a hospitais de tratamento de queimados e de câncer no Estado. Foi até ironia transferir recursos que poderiam para um centro de tratamento do câncer em vez de utilizá-los para pesquisas sobre o uso correto de defensivos para evitar a doença.

Mas os poucos milhões perdidos pela pesquisa eram uma mixaria perto das centenas de milhões que poderiam ser arrecadados com a área do centro de pesquisas de Jundiaí.

Com 110 hectares - 65 hectares destinados à pesquisa e 45 hectares de reserva ambiental -, dois lagos e nascentes de ribeirões afluentes do Rio Jundiaí, o CEA é um oásis embrenhado no meio da mancha urbana do município a 45 quilômetros de São Paulo.

Um oásis ao lado do aeroporto local, já cercado por condomínios e praticamente dentro das rodovias Dom Gabriel, Anhanguera e Bandeirantes. Um cenário perfeito para o governo ganhar dinheiro com a venda da área e qualquer incorporadora multiplicar o investimento com a especulação imobiliária.

A ideia de 2016 se transformou na lei 16.338, aprovada pela Assembleia Legislativa e sancionada pelo então governador e hoje vice-presidente da República, Geraldo Alckmin. No entanto, por pressão popular e política, o processo de vendas foi engavetado nos anos seguintes.

As pesquisas continuaram, o CEA consolidou-se como referência mundial em avaliação e até desenvolvimento de EPIs. Em um canto do moderno laboratório de avaliação dos equipamentos está, por exemplo, uma vestimenta considerada por Ramos, hoje diretor do CEA, como um marco para a pesquisa.

É o primeiro EPI criado e aprovado especificamente para a África, mais precisamente para os trabalhadores nas lavouras do Quênia. O acessório foi desenvolvido pelo International Center for PPE for Pesticide Operators and Re-entry Workers (ICPPE), do qual o CEA faz parte, e passou por avaliação técnica na unidade

“Você pode reparar que tem vários bolsos no EPI, ou seja, o equipamento foi feito para o padrão local”, explicou Ramos.

Assim como vários países têm vestimentas típicas, é comum também os trabalhadores rurais terem EPIs adaptados aos costumes locais. “Quenianos, pelo jeito, utilizam os bolsos para guardar documentos e outras coisas”.

Mas os estudos sobre assessórios de segurança e métodos de aplicação que reduziram em 90% a exposição de trabalhadores aos agroquímicos e em 70% o uso de água nas aplicações são apenas uma das linhas de pesquisa do CEA.

O centro de pesquisa tem 32 projetos em andamento, sempre com a ideia de levar a pesquisa para a prática. “Nós não queremos e não vamos estudar o ciclo menstrual de uma borboleta”, brinca o diretor.

Nos laboratórios é possível encontrar estudos sobre os melhores adjuvantes para espalhar com mais eficiência os defensivos nas plantas, avaliações de sementes e fertilizantes, além de protótipos de máquinas e equipamentos que hoje são comuns nas lavouras e os que tornarão realidade no futuro.

Na visita ao CEA, o AgFeed conheceu os protótipos das colhedoras de café e de um avião experimental com monitoramento capaz de ser ligado a um computador operado por um passageiro. “Nele, um pesquisador ia atrás do piloto com um computador ligado rastreando as lavouras. É o pai dos drones”, afirmou o diretor do CEA.

A vocação para máquinas e automação vem desde os primórdios da unidade. Nascido há 90 anos como uma seção de mecânica do IAC, na sede do instituto, em Campinas (SP), foi centro de ensaios de tratores e implementos de habilitação das primeiras máquinas agrícolas importadas. O CEA sediou até uma escola de tratoristas para operá-las, no final da década de 1960, quando já funcionava em Jundiaí.

Entre as próximas máquinas que sairão de lá estão uma colhedora de cana para pequenos produtores e dois pulverizadores com usos completamente diferentes: um compacto para o controle de carrapatos em áreas urbanas e outro capaz de recuperar e reutilizar defensivos agrícolas aplicados em áreas de culturas já podadas, como videiras, onde o trato químico é necessário, mas o desperdício sem as folhas é grande.

A missão de transformar o empírico em realidade útil no campo aproximou a iniciativa privada ao CEA. Na média dos últimos cinco anos, o orçamento do centro foi de R$ 4,3 milhões ao ano.

Desse total, 86%, ou R$ 3,7 milhões, em média, vieram de recursos privados por meio de parcerias feitas com empresas privadas e repassadas pela Fundação de Pesquisa Agrícola (Fundag). Apenas 14%, ou R$ 596 mil na média de cinco anos, são dos cofres públicos.

Em 1995, quando Hamilton Ramos começava as pesquisas, o centro tinha 23 pesquisadores e 81 funcionários de apoio. Sem concursos, com aposentadorias e projetos descontinuados por falta de funcionários, hoje são oito pesquisadores concursados e 20 funcionários de apoio, quedas de 65% e 75%, respectivamente, no quadro oficial.

Os recursos via Fundag também servem como alívio para a contratação de pesquisadores e seis deles trabalham hoje na unidade bancados pelo fundo.

O governo paulista anunciou recentemente a contratação de 37 pesquisadores para todas as unidades e centros de pesquisa da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta). Apenas um foi aprovado para o CEA de Jundiaí, mas ainda não foi convocado.

Também em 2025, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, desengavetou de vez a lei de 2016. Ele quer iniciar o mais breve possível o feirão de áreas agrícolas de pesquisa e colocar mais de R$ 1 bilhão no caixa. Os 110 hectares do CEA na área nobre de Jundiaí estão na mira do governo.

Se o governo tiver sucesso, em breve as fotos que ilustram essa reportagem podem ser só um retrato de um passado recente. Imagens só para lembranças, como as do trabalhador rural com absorventes no corpo, em 1995, e as das máquinas agrícolas utilizadas nas lavouras de uva, de 1999.

As atuais estarão projetadas em paredes que podem não ser mais as do centro de pesquisas.