O que fazer com uma fazenda herdada no Cerrado, sem vocação clara para soja ou gado?
O empreendedor carioca Claudio Fernandes se deparou com essa dúvida há seis anos ao herdar uma propriedade de sua família localizada em Luiziânia (GO).
O conselho do administrador da fazenda foi direto: derrube o cerrado e valorize a terra caso queira vender – mas Fernandes preferiu tomar outro caminho. “Não tive coragem de botar o cerrado no chão. Meu pai preservou aquilo a vida inteira.”
Foi a partir desse impasse que nasceu o embrião da startup Bio2Me, que agora entra em nova fase. Depois de alguns anos desenvolvendo tecnologia e modelo de negócios para identificar, processar e comercializar bioativos originários da vegetação do Cerrado, a companhia vai aplicar tudo isso na prática – e já em um início de maior escala.
Esse novo passo se dar na primeira fazenda operada efetivamente pela Bio2Me, a Baru 1, uma propriedade de 1,7 mil hectares, localizada na cidade de Cavalcante, ao norte da Chapada dos Veadeiros, em Goiás.
Como o nome indica,seus principais produtos serão a castanhas e as mudas de baru, além da castanha de pequi, plantas típicas das matas da região. Daí vem a expressão de Fernandes que virou quase um slogan da startup: “mato que é agro”.
O investimento total na propriedade foi de R$ 2 milhões. Metade do valor foi destinado à construção de um viveiro com capacidade para 500 mil mudas nativas. O restante do montante foi aplicado na sede, estruturas e tecnologia.
Para chegar a esse anúncio, no entanto, a Bio2me, criada oficialmente em agosto de 2023 por Fernandes e seu primo, Marcio Campos, atravessou vários percalços, refletindo a complexidade do sistema fundiário brasileiro, das próprias práticas no campo e do processo de desenvolvimento das startup.
Logo no começo, Fernandes se deparou com uma primeira dificuldade prática: como vender o baru? Ele conta que, em uma reunião com a equipe de compras de um rede supermercadista famosa do Sudeste, as sementes chamaram a atenção dos representantes da empresa. O líder da Bio2me só não contava com o volume mínimo pedido pela varejista: 1 tonelada.
“Eu tinha achando que eu estava bombado, e eu devia ter uns 80 quilos de baru. Cocei a cabeça, agradeci e nunca mais voltei lá”, brinca. “O fato é que eu não tinha uma quantidade para vender.”
Ele passou, então, a tentar entender como funcionava a obtenção de baru e percebeu que a rede era descentralizada, composta basicamente por pequenas cooperativas de pequenos produtores.
“Eu cheguei numa dessas cooperativas, tinha 200 kg de baru e eu comprei 200kg dos caras. Depois encontrei uma outra, quando eu fui lá atrás de 200 kg, o cara me entregou 6 kg.”
Fernandes partiu então para a compra de terras, processo que não é simples não apenas por eventuais problemas fundiários como também pelo tamanho das propriedades. Nascia mais um problema.
“Na hora que eu saí para procurar terra, veio uma dificuldade: como é que eu visito uma fazenda de 2 mil, 5 mil hectars? São espaços muito grandes para saber se tinha baru e a quantidade para que eu pudesse ganhar com o baru daquela propriedade”, recorda Fernandes.
Engenheiro com passagens por companhias como a multinacional HP, ele desenvolveu uma tecnologia para identificar onde havia árvores de baru e pequi partir das copas nos galhos, utilizando drones e mapas do Google.
“Tive que desenvolver tecnologia para me ajudar na tomada de decisão e de saber qual terra é melhor que a outra. Eu chegava e visitava duas fazendas, uma do lado da outra, com o mesmo preço. Aí vinha a dúvida: qual é a melhor para mim? Qual eu compraria ou arrendaria? Aquela que tivesse mais bioativo para me gerar receita no curto prazo”, afirma Fernandes.
Quando Fernandes encontrou a fazenda de Cavalcante, achou que seus problemas tinham acabado. Ele chegou a visitar outras propriedades, mas percebeu que aquela era mesmo a escolhida.
“Quando eu chego lá e encontro aquela fazenda, os valores projetados eram bons, e ela era um celeiro de biodiversidade para a gente, com várias espécies que eu posso coletar sementes, tem bastante baru dentro dela já nativa, que eu já posso gerar uma receita no curto prazo. Foi aí que eu disse: ‘Opa, essa aqui é a fazenda ideal’.”
Só que novos problemas começariam – e se arrastariam por mais de um ano, entre 2023 e 2024. A propriedade, pertencente a uma família com oito herdeiros, estava com a documentação incompleta e dependia da abertura formal de um inventário para que pudesse ser legalmente vendida.
A solução foi, então, optar por um arrendamento e, em três anos, efetivar a compra da propriedade. “Os próximos três anos servirão para o proprietário conseguir abrir o inventário, resolver as questões de documentação, para que depois a gente possa efetivar o processo de compra”, disse.
Com a demora em conseguir a posse da fazenda, que foi obtida apenas em outubro do ano passado, uma época de chuvas na região, a Bio2me só vai conseguir produzir castanhas e mudas de baru plenamente na propriedade a partir deste ano. Os trabalhos para a preparação da propriedade, que envolvem o viveiro e as melhorias da fazenda, começaram em dezembro passado.
“A gente está agora com a estruturação da quantidade de mudas que eu vou plantar em novembro desse ano lá, porque aquilo que eu não consegui fazer no passado, colhendo o que está lá, e plantando em novembro o que está lá, de maneira estruturada.”
Mas a startup ambiciona incluir mais propriedade em um futuro próximo. Segundo Fernandes, já estão mapeadas outras quatro fazendas no pipeline da startup, elevando o total de hectares de 2 mil para 10 mil hectares, localizadas nos estados de Minas Gerais, Goiás e Tocantins.
Ao conversar pela primeira vez com o AgFeed, em 2023, a meta da Bio2Me era ter, em cinco anos, cerca de 300 mil hectares em gestão no Cerrado. A meta continua, segundo Fernandes. “Só não sei se em cinco anos, mas a nossa ideia é operar batante área.”
A intenção também não é exatamente comprar ou arrendar terras, mas sim operar fatias das propriedades de terceiros, aproveitando as possibilidades de áreas de reserva legal no Cerrado.
“A gente consegue crescer muito rápido a área de atuação operando a área de reserva legal de produtores, onde a gente consegue manejar os bioativos da nossa cadeia”, diz Fernandes.
Para botar de pé seus planos, a startup está buscando novos investidores. No momento em que Fernandes conversou com a reportagem do AgFeed, o executivo falava de um hotel em Belo Horizone, onde havia ido atrás de negócios.
A startup busca investidores que já conheçam o agronegócio, mas que também entendam que o investimento é de longo prazo.
A empresa já possui dois investidores. Um deles é Nuno Verças, ex-presidente do Banco Cetelem e da área de investimentos do BNP Paribas no Brasil.
Originalmente, a Bio2me havia aberta uma rodada de captação de R$ 30 milhões visando comprar terras. Essa captação segue aberta, ainda que com modelagem diferente e valor mais baixo.
“A gente tirou a compra da fazenda, que era um montante significativo, e pegamos um pouco mais de dinheiro que era da operação para operar mais áreas no modelo que eu não precisava comprar, mas que eu fazia arranjos com produtores. Eu não preciso mais comprar área, consigo trabalhar com área de terceiro.
A Bio2me pretende alcançar um faturamento entre R$ 7 milhões e R$ 8 milhões neste ano, sendo R$ 5 milhões vindos da venda de mudas e até R$3 milhões da comercialização da castanha de baru.
A startup pretende alcançar um retorno de R$ 45 mil por hectare em até sete anos, igual a um potencial superior a R$ 38 milhões em receita total.
A receita com o baru em si demora a vir, segundo Fernandes. “É um investimento de retorno de longo prazo, leva 7 anos para dar uma quantidade significativa de fruto para que a gente possa manejar e atinge a maturidade com 10 anos”, afirma.
Por isso, a startup resolveu também apostar em outras frentes a própria criação do viveiro para a produção de mudas, que ajudam a startup a ter fluxo de caixa.
“Você não encontra muda de árvores nativas do Cerrado na agropecuária, você precisa coletar. A muda me gera receita no curto prazo, então isso deu um match perfeito”, afirma.
Para exemplificar eventuais clientes, ele cita o caso de um produtor de soja de Minas Gerais que precisava cumprir um termo de ajustamento de conduta (TAC) firmado com o Ministério Público e resolveu utilizar mudas de baru.
“Ele disse: ‘Vou colocar árvore nativa e eu sei que eu não posso colocar só baru, porque isso não passa como projeto, mas eu vou colocar o máximo de baru possível, porque eu tenho esse passivo, então eu vou restaurar essa área’. E o que gerou para a gente? Uma receita vendendo muda.”