A falta de padronização na adoção de métricas de rastreabilidade da produção agropecuária coloca o Brasil numa corrida contra o tempo para atender as exigências do Regulamento da União Europeia para Produtos Livres de Desmatamento (EUDR, na sigla em inglês) – ou “lei antidesmatamento”, que entra em vigor em 20 de dezembro deste ano.
“Da maneira como tudo está caminhando, arrisco dizer que não teremos tempo hábil para nos adequar”, afirmou a sócia da área ambiental do escritório Pinheiro Neto Advogados, Paula Amaral Mello, durante evento que reuniu especialistas dos setores público e privado para abordar a lei e suas implicações para o comércio brasileiro com o mercado europeu.
Aprovada no ano passado, a nova norma exigirá que empresas sediadas na Europa comprovem que os insumos importados de sua cadeia global de fornecedores, em especial commodities agrícolas, tenham sido produzidos em área livre de desmatamento a partir de 2020.
De acordo com a lei, para que fabricantes da Itália ou da Alemanha possam, por exemplo, importar café do Brasil, será necessário comprovar que a fazenda que produziu o grão não está em área de floresta desmatada.
Ou seja, é preciso ter documentação que comprove a rastreabilidade da colheita ao embarque. Caso contrário, as importações serão barradas nas alfândegas dos portos e aeroportos europeus.
André Nassar, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), diz que, no setor privado brasileiro, muitos segmentos estão bastante avançados em suas plataformas de monitoramento. “Os grandes exportadores já desenvolveram ou estão desenvolvendo seus processos de rastreabilidade com foco em atender essa demanda”, afirmou.
De fato, alguns setores como o de proteína animal e café estão mais avançados. A Marfrig, por exemplo, pretende rastrear 100% de seus fornecedores até 2025. E esse avanço, apesar de positivo, pode ser o gargalo para que o Brasil consiga atender a regulamentação europeia de forma mais ampla e institucional – como país.
“Vemos que falta uma integração de plataformas, da base de dados e dos critérios de análise que permitam criar uma referência padronizada dos dados para a emissão da documentação que comprove a rastreabilidade da produção”, comentou o CEO da Eccon Soluções Ambientais, Yuri Marinho.
Se grandes players estão preparados para atender seus clientes europeus, médios e pequenos produtores dificilmente conseguirão acompanhar, segundo os especialistas.
Priscila Rocha Silva Fagundes, pesquisadora do Instituto de Economia Agrícola da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, diz ser necessária a ampliação do diálogo entre governos federal, estaduais e municipais, além do setor privado, para que o país consiga avançar em critérios únicos e em padronização das informações que serão cadastradas.
Segundo ela, sem isso, haverá riscos de credibilidade nos dados que serão fornecidos aos importadores da Europa. “As nossas dores são comuns. O Brasil é um país continental e precisamos desenvolver um trabalho a partir disso, que una esforços”.
O Estado de São Paulo, por exemplo, não tem registro de desmatamento desde 2008 e vem trabalhando numa plataforma de dados que usa inteligência artificial e que já está sendo compartilhada e adaptada por estados como Santa Catarina, Distrito Federal e Minas Gerais.
“Estamos trabalhando num hub de informação, com pilotos que vamos apresentar quando tivermos muita segurança sobre a plataforma”, conta Priscila.
Do lado do governo federal, a plataforma utilizada tem como base dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento que auxilia no processo de regularização ambiental de propriedades rurais. Estados como Pará, Maranhão e os produtores de café de Minas Gerais utilizam o sistema.
“Se cada um fizer de um jeito, não vamos chegar a lugar nenhum”, diz Nassar, da Abiove, lembrando que da forma como a Europa vem se organizando, o risco de se vender ou comprar algo que descumpra a norma não irá recair sobre o importador, mas sim na cadeia de suprimentos.
Segundo Nassar, há um grande risco jurídico para o produtor brasileiro e por isso é essencial que o governo seja o fiador e garantidor dessa rastreabilidade. “Caso contrário, o comércio de muitos setores será inviabilizado”, diz.
Raoni Rajão, diretor do Departamento de Políticas de Controle do Desmatamento e Queimadas do Ministério do Meio Ambiente, admitiu que definir uma padronização depende de alinhamento do governo federal com os governos estaduais e o setor privado e sinalizou que o Ministério da Agricultura tem feito movimentos nesse sentido.
“Somos mais avançados no controle de desmatamento que os europeus e vamos comprovar isso”, diz Raoni.
O embaixador Fernando Pimentel, Diretor do Departamento de Política Comercial do Ministério de Relações Exteriores, que tem participado ativamente das negociações com a comissão europeia que fará a implementação da lei, vê a norma com uma grande preocupação.
Segundo ele, ela tem um caráter punitivo num momento em que os grandes emissores de GEE, caso da Europa, deveriam estar disponibilizando apoio a países em desenvolvimento que são impactados pelas mudanças do clima. “São barreiras que se impõe porque a lei é muito ampla e os setores têm necessidades muito particulares”, disse.
A diplomacia brasileira tem realizado reuniões com as autoridades europeias para discutir apoio para a elaboração de plataformas que permitam a rastreabilidade com custo zero para o produtor brasileiro.
“Nossa preocupação são os pequenos, pois há risco que eles fiquem alijados do mercado europeu”, diz Pimentel. “Haverá forte impacto sobre o comércio de países em desenvolvimento como o Brasil. A Europa precisa entender que o comércio do cacau é diferente da soja, do café e da pecuária”, alerta o embaixador.
Laurent Jauvadin, conselheiro para Mudanças Climáticas, Meio Ambiente e Energia da União Europeia (UE), afirma que a UE não irá atender demandas específicas de países ou segmentos da indústria e do agronegócio. Segundo ele, a regra será igual para todos.
“A UE não vai criar adaptações para atender as legislações dos países de produção, pois a lei se aplica aos importadores que estão sediados na Europa. Ou seja, não são os produtores que vendem para a Europa que terão de seguir a legislação europeia, mas sim os fabricantes europeus. Eles terão de definir regras para garantir que sua cadeia de fornecimento não pratique o desmatamento para produzir”.
Mesmo a Europa não sendo mais um dos principais parceiros comerciais do Brasil no cômputo da sua balança comercial, atender bem esses requisitos será fundamental para que o Brasil se mantenha um player competitivo no comércio internacional.]
“Teremos que nos adequar porque o propósito é bom. Não tem como o Brasil ficar de fora”, diz Nassar, lembrando que as grandes tradings têm metas de desmatamento e emissão zero e GEE e que cacau e palma, que hoje não exportam para a Europa, querem exportar por verem uma janela de oportunidade se abrindo com a nova lei – considerando que países que hoje lideram esses mercados terão ainda mais dificuldades que o Brasil para comprovar que suas áreas são livres de desmatamento.
Amanda Athayde, advogada do Pinheiro Neto Advogados, reforça que esse tipo de legislação tende a se ampliar globalmente. “A Europa iniciou esse processo, mas existem legislações similares sendo discutidas na China, no Japão e nos Estados Unidos”, diz. “Ou a gente se adequa, ou vai ficar de fora”.