A COP 28, conferência das Nações Unidas sobre o Clima que começa no dia 30 de novembro, será a primeira da série em que a questão da produção de alimentos estará no centro da pauta dos debates.
O evento acontece em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, e o presidente da conferência, Sultan Al Jaber, adiantou que até mesmo os alimentos servidos durante a sua realização trarão a marca da preocupação com o tema. Serão, segundo diz, predominantemente veganos e produzidos localmente.
Assim, a COP 28 servirá também de vitrine para divulgar um grande esforço que vem sendo feito pelo país e seus vizinhos para mudar sua imagem no mapa da alimentação.
Ali, o clima é árido, o solo é pobre, a água é escassa e a fome é um problema presente. Somados os países localizados em territórios da Ásia, Europa e África, o enclave que reúne o Oriente Médio e a Península Arábica soma uma população de quase 400 milhões de habitantes, mas as condições para produção de alimentos são desfavoráveis.
Trata-se, portanto, de um grande mercado ainda não atendido. Mais do que isso, em grande risco de viver uma crise de segurança alimentar em caso de interrupção dos fluxos de importação dos países produtores – hoje, os Emirados Árabes trazem de fora cerca de 85% dos alimentos que consomem.
Esse cenário já foi todo desenhado pelos gigantescos fundos soberanos dos países do Golfo Persico. E eles têm uma clara estratégia (e muito dinheiro) para revertê-lo. Nos últimos meses, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita têm liderado uma onda de investimentos para transformar a região, que tem apenas 5% do seu território agricultável, em um dos principais polos globais na produção de alimentos.
A solução passa pela tecnologia e por ambientes controlados de produção. No final de setembro, por exemplo, ministro da Economia dos Emirados Árabes Unidos, Abdullah bin Touq Al Marri, anunciou um pacote de US$ 10 bilhões em investimentos a serem realizados, nos próximos cinco anos, com o objetivo de colocar o país no topo do ranking mundial da segurança alimentar até 2051.
O dinheiro já começou a fluir, em grande parte na direção de projetos de agricultura indoor, produtos plant based e proteínas cultivadas em laboratório.
Até o fim de setembro, segundo dados da Autoridade Árabe para o Investimento e o Desenvolvimento da Agricultura (AAAID, na sigla em inglês), mais de US$ 660 milhões haviam sido aplicados em 50 projetos e empresas voltados para a criação de plantas para a produção de alimentos com o uso de tecnologia no entorno das principais cidades da região.
A DisruptAD, braço de capital de risco do fundo soberano de Abu Dhabi, por exemplo, liderou uma rodada de investimentos de US$ 105 milhões, para financiar projetos de carne cultivada da empresa israelense Aleph Farms. Isso, apenas meses depois de o emirado ganhar sua primeira fábrica de carne vegetal, a Swtich Foods.
Na vizinha Dubai, a aposta em criar um hub para foodtechs avança, com anúncios de novos empreendimentos se sucedendo. A IFFCO, uma das maiores empresas de alimentos dos Emirados, por exemplo, inaugurou ali a primeira fábrica de alimentos plant based do Oriente Médio.
A ideia é produzir ali receitas com base em proteínas alternativas, mas adaptados ao paladar da região. Com a marca Thryve, os primeiros produtos saídos da unidade chegam aos supermercados locais em poucas semanas. Quando operar a plena capacidade, segundo a empresa, a fábrica poderá atender até 30% do mercado do Golfo Pérsico, que inclui, além dos emirados, Arábia Saudita, Bahrain, Kuwait, Omã e Catar.
A ambição e a necessidade geram até mesmo uma saudável competição entre cidades e países. Da mesma forma que disputam turistas erguendo edifícios arrojados e modernos, Abu Dhabi e Dubai concorrem agora pela preferência de investimentos nessa área. Arábia Saudita e Catar seguem na cola.
Entre as empresas de agricultura vertical, por exemplo, a corrida começou em Dubai, no ano passado, com a inauguração da Bustanica, cravada ao lado do aeroporto internacional da cidade. Com 30 mil metros quadrados, a planta consumiu US$ 40 milhões das empresas locais Crop One e Emirates Flight Catering, empresa responsável pelos alimentos do serviço a bordo da Emirates Airlines.
Divulgada como a maior do mundo no gênero, foi estrategicamente instalada para ficar próxima de um dos principais hubs globais de aviação. "Vamos continuar investindo o que for necessário em tecnologia e em pessoas para fazer a produção e o fornecimento de alimentos mais ágil e eficiente", disse, em uma visita recente à Crop One, o primeiro ministro de Dubai, xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum.
Abu Dhabi respondeu com um acordo com a americana Aerofarms, uma das pioneiras no setor, para erguer uma instalação de pesquisa com cerca de 6 mil metros quadrados totalmente destinada a pesquisas de tecnologias para produção indoor – também alardeada como o maior centro de desenvolvimento do mundo nessa área.
Um dos estudos realizados ali, em parceria com a Cargill, avalia a viabilidade da produção de cacau em ambiente fechado e controlado.
O acordo com a Aerofarms prevê, no total, um aporte de US$ 100 milhões para a construção de pelo menos quatro plantas em toda a região. Uma delas será em Ryad, capital da Arábia Saudita.
Já no Catar, o grupo local Sadarah, dono da Agrico Organic Farm, associou-se à finlandesa iFarm, que possui fazendas indoor em vários países europeus, na Rússia e também em Abu Dahbi, para construiu a primeira unidade do tipo totalmente controlada por inteligência artificial.
Capital fértil
O caso da Aerofarms talvez seja o mais emblemático da onda foodtech no Oriente Médio. Com dificuldades financeiras nos Estados Unidos – onde chegou a recorrer à proteção de uma concordata e vendeu parte dos ativos –, a empresa encontrou no deserto árabe os insumos que precisava para prosperar.
“Eles não têm muita terra fértil, não têm água , mas têm fontes abundantes de energia”, afirmou, após assinar o contrato, o fundador da Aerofarms, David Rosenberg. “E tem também muito capital e um espírito de ‘vamos construir e abraçar novas tecnologias’”.
Assim, juntamente com recursos vêm incentivos e campanhas para fomentar o mercado. O custo da energia, por exemplo, é subsidiado pelos governos para as agtechs e foodtechs instaladas no Golfo.
Além disso, há campanhas para estimular o consumo das proteínas alternativas pelas populações locais.
O consumo de produtos plant-based cresceu quase 70% nos últimos cinco ano segundo pesquisa da Euromonitor. E a realidade não é diferente nos países da Ásia, África e Oriente Médio, onde a população mundial tende a crescer nos próximos anos, segundo estimativas da FAO.
Estudo conduzido em 2022 pela PSB Insights – e patrocinado pela Good Meat – identificou que 34% da população do Oriente Médio já ouviu falar ou experimentou carne cultivada. A análise mostra que, se a forma de cultivo e produção desse tipo de proteína seguir critérios que respeitem as exigências da cultura islâmica, ela pode se tornar a alternativa de alimentação.
Mas há o problema do acesso aos alimentos. De acordo com o Banco Mundial, os Emirados Árabes Unidos possuem quase um quinto de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza. Situação similar é enfrentada por outros países do Oriente Médio, da Ásia e na África, segundo a FAO, a comissão das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura.
Como Emirados Árabes Unidos, o Catar e a Arábia Saudita, importam mais de 80% dos alimentos que são consumidos por suas populações, o preço da alimentação é alto nesses países.
O impacto dessa realidade foi sentido de forma muito intensa durante a pandemia de Covid-19, pressionando governos a ampliar projetos com foco em garantir segurança alimentar.
O resultado é que, desde a pandemia, houve uma aceleração no volume de recursos que fundos soberanos do Oriente Médio e da Ásia aplicam não apenas na busca por tecnologia que permita a produção local de alimentos, mas também na participação em empresas agrícolas ao redor do planeta e na atração de investimentos.
“Antes da pandemia ninguém estava muito atento a isso (risco de ser importador de comida”, afirma Bina Khan, cofundadora do Summit Venture Partners e conselheira da Pure Harvest, uma foodtech dos Emirados Árabes Unidos que produz alimentos Plant Based em hortas instaladas no deserto e com produção totalmente tecnológica.
Levantamento feito pelo sócio que lidera os serviços para agronegócio na Deloitte, Luis Otávio Fonseca, aponta que existem globalmente pelo menos 42 fundos soberanos que investem em alimentos e na agricultura, a grande maioria criados por governos árabes ou asiáticos.
Um exemplo desses investimentos foi o anúncio feito em maio desse ano entre a BRF e o Salic (Saudi Agricultural and Livestock Company), 100% controlado pelo fundo soberano público da Arábia Saudita, o PIF, na sigla em inglês.
Os árabes pretendem investir até R$ 4,5 bilhões em ações da companhia brasileira, uma das maiores produtoras de alimentos do mundo. A Salic já detém 34% da Minerva, que também produz alimentos.
Em entrevista recente à CNN, o embaixador do Brasil na Arábia Saudita, Sérgio Eugênio de Risios Bath, disse que o objetivo do fundo soberano da Arábia Saudita é diversificar investimentos. “No Brasil, o foco é o setor produtivo, especialmente o de alimentos.”
No Catar, o QIA (Qatar Investment Authority), fundo soberano do país, é outro exemplo. Com US$ 450 bilhões de patrimônio e dono do time de futebol Paris Saint Germain (PSG), ele já detém participação em empresas como a AdecoAgro, que produz grãos no Brasil, Argentina e Paraguai, e na Paraway Pastoral Company, empresa australiana de pecuária. O fundo investe também em companhias de grãos no Canadá, além de Turquia e Rússia.
A Hassad Food, do Catar, tem apoiado o plano de segurança alimentar do país por meio da estratégia de diversificar investimentos e acordos com fornecedores de grãos e óleos e cereais.
“Temos acordo com diversos países de diversas regiões, incluindo a América do Norte, a América do Sul, Turquia, Austrália, e a região do Mar Negro”, disse Mohammed Al Sadah, CEO da Hassad Food Company, do Catar, à Qatar News Agency (QNA). Hoje, mais de 80% do portfólio da empresa é destinado a produtos alimentícios – entre agricultura, carnes, peixes e laticínios.