Para o Brasil, pode-se dizer que 2023 é o ano do trigo. A estimativa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), anunciada na segunda semana de agosto, de que a safra deste ano pode bater em 10,5 milhões de toneladas, pavimenta as previsões mais otimistas de que o país atinja a autossuficiência em menos de cinco anos, além de abrir caminhos para exportações.

Os números indicam uma espécie de empate técnico na balança comercial do grão. O Brasil tem hoje uma demanda interna de pouco mais de 13 milhões de toneladas por ano, que é suprida, em parte por importações. Mas também vende para fora.

De acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, as exportações de trigo do país somam um pouco mais de 2 milhões de toneladas entre janeiro e julho deste ano. É quase o mesmo do total de importações.

Internamente, mesmo com um nível de produtividade semelhante ao do ano passado, o ritmo de expansão das lavouras segue acelerado. O Brasil teve um aumento de mais de 11% na área plantada destinada ao trigo – que saiu de 3.086 mil hectares em 2022 para 3.429 mil hectares neste ano.

Considerando a área maior e o início da fase de plantio no Sul do país, há otimistas que arrisquem dizer que a colheita deste ano possa chegar a 11 milhões de toneladas, caso da consultoria StoneX.

Notícia melhor ainda é que esse otimismo se ancora não apenas na tradicional produção de estados como Paraná e Rio Grande do Sul – que lideram o cultivo nacional.

Responsável pela adaptação da cultura – normalmente conhecida por ser típica de regiões de clima temperado –, Embrapa agora comemora o avanço do que chama de “trigo tropical” para regiões antes improváveis, como o Oeste da Bahia, e os recordes de produção em lavouras no estado de Goiás.

“O Brasil tem área, conhecimento e demanda aquecida” ”, afirma Jorge Lemainski, chefe-geral da Embrapa Trigo. “A expansão do trigo no País precisa assegurar tanto a oferta de alimento de qualidade ao consumidor, quanto a rentabilidade do produtor. Para isso é necessário diversificar mercados, internos e externos”.

O roteiro já é conhecido dos produtores brasileiros. O trigo repete nos últimos anos o mesmo trajeto trilhado pela soja e pelo milho nas décadas anteriores. Apenas nos últimos cinco anos, a produção nacional de trigo aumento 76%, enquanto a área plantada cresceu 50%, segundo dados da Conab.

Pelas projeções da Embrapa Trigo, o Brasil poderá chegar aos 20 milhões de toneladas até 2030 se mantiver um ritmo de expansão de 10% ao ano nas lavouras. Com isso, passará a ter um saldo positivo na oferta interna capaz de garantir espaço no mercado internacional entre os grandes exportadores.

Do Sul ao Norte

O grande trunfo da cultura é a combinação de evolução de produtividade e ocupação de novas áreas. No Sul, os dois principais estados produtores trazem safras recordes este ano.

O Rio Grande do Sul, segundo o diretor técnico da Emater/RS, Claudinei Baldissera, deve ter sua segunda maior safra da história este ano – de mais de 5,6 milhões de toneladas. O Paraná não fica atrás: a colheita estimada em 4,5 milhões de toneladas, se confirmada, será a maior da história do estado, segundo o Departamento de Economia Rural (Deral).

Mais impressionante, porém é o que vem acontecendo mais ao Norte. Em Goiás, análise da Gerência de Inteligência de Mercado da Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa), baseada nos dados da Conab, estima em 183,9 mil toneladas a produção da safra para 2023.

Trata-se de crescimento de 36,2%, impulsionado pela expansão de mais de 33% na área plantada, que chega a 80 mil hectares.

Na Bahia, instalados num campo experimental em Luís Eduardo Magalhães, na Bahia, cerca de 500 produtores testam as cultivares de trigo tropical, adaptadas ao Cerrado.

Cerca de 20 mil hectares já foram plantados adotando um sistema especial de irrigação que, espera-se, permita o desenvolvimento do trigo sequeiro na região.

Fim da dependência externa

O fato é que, mesmo sendo ainda um importador de trigo, o Brasil tem conseguido reduzir cada vez mais sua dependência externa. Dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex), apontaram que entre janeiro e junho deste ano, as importações de trigo brasileiro somaram 2,03 milhões de toneladas, o menor volume para esse período desde 1997.

Isso acontece em um momento estratégico, em que o cenário internacional torna-se mais desfavorável para os importadores.

Na sexta-feira (11), por exemplo, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), divulgou o seu relatório mensal de oferta e demanda para o trigo, onde detalha os níveis globais de produção e estoques do planeta.

A estimativa para a safra 2023/2024 é 793 milhões de toneladas, menor que o estimado um julho. Já o consumo mundial, deve alcançar 796 milhões de toneladas.

A expectativa de demanda maior que a oferta tende reverter o cenário de queda dos preços verificado nos últimos meses. Além disso, países que se destacam como grandes produtores mundiais terão safras menores ou mais comprometidas pela retomada de sua demanda interna.

É o caso da Argentina. Principal fornecedor do grão para o Brasil – cerca de 1,5 milhão de toneladas entre janeiro de junho, o país vizinho – sofreu uma quebra de safra que fará sua produção andar de lado nos próximos meses.

A safra de trigo da Argentina para o ciclo 2023/24 foi estimada em 17,5 milhões de toneladas, 2 milhões de toneladas a menos.

O Canadá, que ocupa o sexto lugar entre os maiores produtores do mundo, teve sua produção revisada para baixo pelo USDA – de 35 milhões de toneladas para 33 milhões de toneladas.

O mesmo cenário é enfrentado pela União Europeia, que deve produzir 135 milhões de toneladas e não mais 138 milhões como previsto.

Além da safra menor na Argentina e a influência negativa do El Niño sobre a produção asiática e que reduziu as estimativas de Índia, China e Austrália, reforçam o contexto de incertezas globais a continuidade da guerra entre Rússia e Ucrânia, dois importantes produtores, e a decisão russa de não renovar a concessão para exportação de grãos do Mar do Norte.

“A decisão russa de sair do acordo (de exportação de grãos do Mar do Norte) e a produção menor na Argentina abrem espaço para que o Brasil exporte mais trigo”, diz Fernando Gomes, analista de commodities do Itaú BBA, ao comentar o cenário para a cultura no Visão Agro, relatório do banco sobre o agronegócio brasileiro.

A Rússia, responsável por 22% das exportações globais, de acordo com o USDA, tem enfrentado dificuldades no escoamento de grãos.

Na estimativa do USDA, o país deve produzir 85 milhões de toneladas de trigo na safra 2023/2024, dos quais 48 milhões – ou 56% - serão destinados à exportação. A outra metade é destinada ao consumo interno.

Em análise, a Superintendência de Estudos de Mercado e Gestão da Oferta da Conab, ressalta que as perspectivas globais são de redução da relação estoque/consumo, que pode ficar em 33,5%, o menor patamar do indicador das últimas 10 safras.

Ao mesmo tempo, a soma do volume dos estoques finais dos principais exportadores segue em queda, ou seja, para a demanda dos importadores a disponibilidade se projeta menor.

Diante desse esse contexto desafiador na perspectiva mundial, o Brasil se garante com os insumos que o tornaram um dos maiores produtores mundiais de soja e milho: ousadia e investimento em biotecnologia.