Guru de boa parte das grandes empresas do agronegócio – seja via Agroconsult, empresa fundada por ele, ou pela presença nos conselhos de administração – o engenheiro agrônomo André Pessoa faz diversos alertas sobre mais uma mudança de ciclo no setor, especialmente em termos de rentabilidade ao agricultor e fluxo de caixa em outros elos da cadeia.

Em entrevista ao AgFeed, o empresário afirmou, por outro lado, que não se deve seguir cegamente "a narrativa de crise”, já que muitas empresas podem enxergar oportunidades de crescer neste ambiente e boa parte dos produtores está bem preparada para os tradicionais altos e baixos de quem conhece a agricultura com profundidade.

Pessoa concorda que enfrentaremos períodos de preços mais baixos para a soja e o milho. Alerta também para a perspectiva de aumento na oferta de grãos na América do Sul, enquanto o mundo observa a demanda crescer menos que a produção.

Quanto ao mercado de capitais, o diretor da Agroconsult ressalta que o período de risco mais elevado pode trazer perdas para quem se aventurar sem conhecer no detalhe as características cíclicas da agricultura.

Alguns setores podem, porém, também sair beneficiados deste período. Até porque, em 2023, será "a primeira vez” que diversos recordes serão batidos, com excelentes perspectivas para alguns segmentos da agroindústria.

Quer saber mais? Confira a entrevista de Pessoa ao AgFeed.

Você tem dito que 2023 é o ano da “primeira vez”. Acredita que este ano pode ser considerado uma espécie de marco para a agricultura brasileira?
Sim, acho que este ano é um marco e por várias razões. Primeiro porque muito provavelmente é o turning point. É um ano de transição entre uma fase exuberante, que foram os últimos três ou quatro anos, passando para uma uma fase que é característica da agricultura, que são os ciclos de altos e baixos.

Em termos de preços?
Especialmente em relação a preços, provavelmente estamos entrando num ciclo agora, que é mais de baixa do que o ciclo de alta longo que tivemos. Essa é uma característica do 2023 e também é um ano de "primeiras vezes". É a primeira vez, por exemplo, que produzimos uma safra recorde de soja com um desempenho muito bom em quase todos os estados. A exceção foi o Rio Grande do Sul. Mas oito estados produtores brasileiros bateram recordes de produtividade. Chegamos muito próximo de 60 sacas por hectare pela primeira vez e produzimos pouco mais de 158 milhões de toneladas, o que é uma produção espetacular.

E o milho também?
Sim, estamos produzindo uma safra de milho recorde quando se soma a safra de verão com a segunda safra. A de verão teve seus percalços também no Sul do Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul. Mas ainda assim conseguiu produzir 30 milhões de toneladas. E a chamada safrinha, que de safrinha não tem nada, vai passar de 100 milhões de toneladas. Acabamos de fazer o Rally da Safra Etapa Milho e vínhamos trabalhando já com uma produtividade elevada e uma produção também grande, 103,5 milhões de toneladas, mas estamos processando os dados e é possível que seja maior este número.

E qual a outra “primeira vez”?
A consequência dessas safras boas é nos levar para um recorde de exportação de soja, que estamos estimando neste momento em 96 milhões de toneladas, mas pode ser até mais. Temos um esmagamento de soja no Brasil este ano também recorde, não só pela dinâmica interna de crescimento da demanda, seja do mercado de farelo de soja, via setor de proteína animal, seja por conta da retomada de esmagamento para óleo destinado à produção de biodiesel, mas também por um efeito indireto sobre as nossas exportações de farelo, que ocorreu por conta da quebra de safra da Argentina. Vamos exportar um volume recorde de farelo de soja, que vai se aproximar de 23 milhões de toneladas. É exportação recorde de farelo, consumo recorde do mercado interno e exportação recorde de grãos.

Até porque a exportação de milho também deve ser recorde...
Sim, no caso do milho, no ano passado teve uma exportação recorde de 46 milhões de toneladas e esse ano tem tudo para passar fácil dos 50 milhões de toneladas. Em termos de demanda, a China é o grande importador mundial. E o Brasil consegue colocar milho hoje US$ 20 por tonelada mais barato que os Estados Unidos no mercado chinês. Por isso, a tendência é que a gente ocupe uma fatia significativa desse mercado.

Qual será o impacto da China para o milho do Brasil?
Em outubro do ano passado, passamos a exportar para a China e estamos exportando volumes grandes. Se a China importar 20 milhões de toneladas até setembro desse ano, não vai ser nenhuma surpresa que o Brasil fique talvez com um quarto desse mercado, talvez até mais. Nós temos uma demanda internacional bastante fortalecida pelo nosso milho, por conta da competitividade que a gente atingiu e pela disponibilidade que a gente tem. E quanto vai ser a exportação? Vai depender basicamente da logística. Se vai ter a capacidade operacional nos portos para entregar.

O Brasil vai ultrapassar os EUA nas exportações de milho?
Nós esperamos que, pela primeira vez, passe de 50 milhões de toneladas, com alguma folga. E talvez, algo que já aconteceu no passado, sim, o Brasil exportar mais milho do que os Estados Unidos. Mas isso ocorreu em um ano que eles perderam 100 milhões de toneladas, na tragédia que tiveram entre 2012 e 2013. Este ano a gente deve exportar mais que os norte-americanos, porém em condições normais de competição lá. E não vai ser pouco. Talvez até 10 milhões de toneladas a mais. Portanto é uma primeira vez, também.

Tem mais alguma “primeira vez”?
É a primeira vez que a gente produz mais de 300 milhões de toneladas de grãos. Além dos recordes na exportação de soja e milho que eu citei, vamos ter uma demanda interna de milho pela primeira vez acima de 80 milhões de toneladas, tendo uma participação robusta do etanol de milho. É possível que se destine um volume próximo de 14 milhões de toneladas esse ano no Brasil para a produção de etanol.

"Em que pese tenha havido investimentos, a logística está no limite. Se o Brasil caminhar em 2024 para volumes maiores, vamos ter problemas maiores também"

E quando a gente soma os granéis agrícolas, o principal deles, a soja, o segundo é milho, mas a gente vai colocando na conta o farelo de soja, o açúcar, que este ano deve ter uma exportação bem maior, põe na conta o próprio trigo, que vem sendo exportado, especialmente no Sul do Brasil, a exportação de arroz, o DDG, que é fruto da produção de etanol, e mais a parte toda de celulose, cavaco de madeira, ou seja, você vai somando todos esses granéis agrícolas, vamos passar de 200 milhões de toneladas, pela primeira vez.

Qual a consequência disso?
Nunca o Brasil lidou com um volume como esse nos portos que têm terminais de granéis. E essa é uma questão importante desse ano, porque vamos testar os limites da nossa capacidade de logística portuária. A chegada nos portos melhorou muito nos últimos anos com investimentos em ferrovias, em hidrovias, algumas rodovias também foram ampliadas e asfaltadas. Mas agora vamos ver se a capacidade portuária dá conta do tamanho da safra que a gente tem. Se olharmos para os últimos quatro, cinco anos, apesar de ter crescido bastante a produção, a logística não vinha sendo um grande gargalo. Agora voltamos a ter uma preocupação. Em que pese tenha havido investimentos, a logística está no limite. Se o Brasil caminhar em 2024 para volumes maiores, vamos ter problemas maiores também. E temos que falar, no caso de soja e milho, também da queda dos preços, por conta de uma safra enorme e por conta de uma logística estressada.

E há exceções?
Quando se olha para outras culturas, estamos num bom momento da cana de açúcar, de preços muito bons para o açúcar. Houve uma recuperação de produção esse ano, após os problemas climáticos enfrentados nos últimos anos, e deve ter uma safra muito boa no Centro-Sul, que talvez chegue a 600 milhões de toneladas. É um bom momento para o café, os preços estão caindo um pouco por conta da recuperação da safra brasileira, não só nesse ano, mas há a bienalidade para o ano que vem. Estamos em excelente momento de preços de citros. É um ano muito bom, de uma forma geral, para alguns setores, mas começa a ser preocupante para outros, como no caso dos grãos. O algodão está tendo uma safra excelente. A safra de verão é basicamente na Bahia e já está sendo colhida. Mas estamos começando também a colheita da segunda safra, que é plantada especialmente em Mato Grosso. E tudo leva a crer que nós vamos ter um ano com recorde de produtividade de algodão no Brasil, então tem muita coisa boa nesse fechamento de ciclo.

Há uma mudança de padrão em termos de rentabilidade?
A safra 2023 teve coisas boas, a produtividade talvez seja a melhor delas, mas teve também um lado ruim, que foi o aumento de custo de produção. Os insumos estavam caros, especialmente os fertilizantes, mas também defensivos e sementes. E isso diminuiu a rentabilidade da produção de grãos no Brasil esse ano. De certa forma, essa queda de rentabilidade não foi maior porque as produtividades foram boas, mas elas são menores do que as rentabilidades alcançadas em 2022 e 2022, 2021 e 2020.

Tem uma mudança importante também na comercialização...
Até 2020, principalmente durante o período da pandemia, a gente vinha fazendo uma comercialização muito antecipada. Soja era comum chegar no Centro-Oeste na colheita, em janeiro, já com 70% da safra vendida ou chegando na colheita do milho, em julho, com 60, 70% vendido. Nesse ano inverteu essa lógica e chegamos à colheita em janeiro com 40% vendidos. Chegamos na colheita do milho com menos de 50%. Isso fez com que a combinação de uma safra muito grande, que enfrenta seus problemas de armazenagem por conta da deficiência nas fazendas que a gente tem, mais uma comercialização atrasada causasse uma derrocada nos prêmios.

Qual o principal impacto nesse sentido?
Eles costumavam ser positivos no caso da soja durante a colheita e se tornaram prêmios negativos esse ano. Quem vendeu com bons preços, vendeu pouco. O preço internacional também cedeu por conta da boa safra do Brasil e teve a taxa de câmbio, que ficou abaixo dos R$ 5. Quando se combina as três coisas, os preços ficaram muito abaixo daquilo que era a expectativa dos produtores. Então essa rentabilidade já não foi a mesma, digamos assim, do período de vacas gordas. Foi uma rentabilidade positiva, mas sem a euforia, que se viu nos últimos três anos.

Para a próxima safra o cenário muda?
Agora, em 2023 para 2024, tem mudanças importantes também nos custos de produção. Felizmente os preços dos fertilizantes e defensivos estão voltando (aos patamares mais baixos), sementes um pouco menos, mas estão vindo na direção daquilo que seria o custo mais normal de insumos. Mas, infelizmente, os preços das commodities continuam cedendo. Então quando se olha para o preço internacional, a tendência é de preços mais baixos no ciclo 23/24, quando olha para o câmbio, não dá para prever, mas o câmbio sinalizado nos contratos futuros está abaixo de R$ 5, bem abaixo dos patamares que eram praticados nas safras anteriores. E o prêmio muito provavelmente também vai caminhar para o campo negativo de novo, porque a nossa comercialização do 23/24 está ainda mais atrasada do que foi a do ano passado. Talvez motivada por essa sinalização de queda, já que muitos produtores podem estar aguardando a definição da questão climática nos Estados Unidos.

A compra de insumos também está atrasada?
Sim, está bem atrasada. No ano passado, em função de diversos fatores, houve a sensação de que poderia haver escassez de alguns insumos. Isso fez não só com que os preços subissem, mas que os produtores comprassem muito cedo. Chegamos nessa época do ano, final do primeiro semestre e as carteiras, especialmente de defensivos, já estavam feitas. A de fertilizantes ainda não, mas a de defensivo já estava feita.

Qual o cenário desta safra?
Este ano, ao contrário, fertilizantes andou um pouco mais, especialmente no Cerrado, porque os preços caíram tanto que os produtores enxergaram que a relação de troca entre a produção de soja ou de milho ou de algodão contra fertilizantes já estava ok. Mas a carteira de defensivos e sementes não andou. Ela está em níveis que são menos da metade do que tínhamos o ano passado nessa mesma época. Em geral se estaria com 90% da carteira feita no Brasil, mas esse ano não tem nem 50%. É porque os produtores seguem apostando em novas reduções de preços de insumos. Só que quando eu não formo o meu custo, de certa forma também fico com uma insegurança em relação a garantir a receita. Podemos ir postergando e chegar lá na colheita com os mesmos 30%, aí os prêmios serão negativos.

"Não significa que, ao ver que alguns produtores estão com dificuldades, inclusive para manter as áreas que vinham plantando, que a área plantada vá cair. Ela vai mudar de mãos"

Qual será o efeito disso?
É uma nova rodada de margens mais baixas. Ainda que positivas, já estarão muito próximas do breakeven para os arrendatários. Quem, por exemplo, faz 100% da produção dele numa área arrendada está com uma margem prevista para o ano que vem, se não negativa, muito próxima do breakeven. Isso preocupa porque vai trazer como consequência uma pressão sobre os arrendamentos. Muita gente procurando renegociar arrendamento ou devolvendo áreas arrendadas. Claro que sempre vai ter um tomador para essa área, talvez não no mesmo preço que ele estava feito o contrato antes. É igual ao aluguel, se alguém devolve um aluguel caro para alguém, aluga por um valor mais baixo depois. Isso pode estar acontecendo.

Pode haver redução de área plantada em função disso?
Não significa que, ao ver que alguns produtores estão com dificuldades, inclusive para manter as áreas que vinham plantando, que a área plantada vá cair. Ela vai mudar de mãos. Agora, produtores que têm área própria ou que têm uma parcela da sua área arrendada ainda preservam alguma margem positiva para o ano que vem. Mas ela é menor do que foi 2023 e é seguramente menor do que foi em 2022 e 2021. A gente vem descendo uma escada na rentabilidade da soja.

O mesmo ocorre com o milho?
O milho é o caso mais grave do ano que vem, porque o preço também passou pelas mesmas dificuldades da soja, mas o custo de produção do milho, diferente da soja, está com uma resiliência maior para cair. Caiu o preço dos fertilizantes, é verdade, mas o preço dos defensivos e especialmente sementes, não caiu ainda. E o preço do milho caiu mais intensamente do que a soja, especialmente no mercado brasileiro. Quando a gente pega e compara o quanto caiu o preço em Chicago e quanto caiu o preço no mercado brasileiro, aqui caiu bem mais. E é por uma razão muito simples: nós ainda não exportamos a soja toda que colhemos. Falta espaço nos armazéns para receber uma safrinha gigantesca. Essa safra não está vendida, ela é grande e não tem onde armazenar tanto milho.

Neste cenário, com preços do milho abaixo do mínimo em Mato Grosso, por exemplo, haverá redução de área plantada em 2023/2024 no Brasil?
Como o custo do milho não caiu na mesma intensidade que a soja e o preço do milho caiu com muito mais, na safra de verão, muito provavelmente, haverá uma redução de área. Na segunda safra, se houver um crescimento, ele vai ser bem mais modesto do que aquele que vinha acontecendo nos últimos anos. Na safra de verão, tem regiões que o milho concorre com a soja, como Oeste da Bahia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, tem a região que pode ter o problema do El Niño, que é Maranhão e Piauí. Nestas, a tendência é de redução de área. Agora, lá na safrinha, temos que considerar que, provavelmente, ainda tem espaço para a penetração, que é quanto da área que é plantada com soja eu consigo cobrir com milho. O milho, ainda no ano que vem, na segunda safra, certamente vai crescer. Até porque ele faz parte do processo de manejo das lavouras, com rotação de cultura. E tem uma demanda muito forte local, como é o caso do etanol. É um bom momento de relação de troca para a indústria de proteína animal. Nós não estamos vendo queda de área em safrinha, mas uma redução significativa na velocidade da expansão que vinha ocorrendo.

Qual deve ser o crescimento agora?
Com exceção desse ano de 2023, que teve atraso por conta do clima e não se concretizou toda a intenção de crescimento, nos anos anteriores a 2023, vinha crescendo acima de 1 milhão de hectares, quer dizer, acima de 5% ao ano. Não temos essa expectativa, nestes níveis, para o próximo ano. Não quer dizer que não vai ter muito milho, porque mesmo que não venha a crescer, a perspectiva de El Niño, que é o quadro climático que está desenhado, traz no Sul do Brasil, onde se concentra a maior parte da área plantada de verão, boa perspectiva de produtividade. Na safrinha também, se não tiver um problema climático para o Centro-Oeste, que é onde a maior parte dela se concentra, se houver neutralidade climática, não há nenhuma razão para ter problema de oferta no ano que vem. Pelo contrário, deve ter uma oferta de novo muito grande.

Mesmo os produtores que dizem ter milho abaixo do custo de produção não podem desistir de plantar?
Devem segurar a expansão, mas a conta que normalmente os produtores fazem se refere à margem de contribuição positiva. Eu tenho o milho me ajudando a pagar custo fixo. Eu tenho o melhor aproveitamento da minha da minha área, do meu maquinário e da mão de obra. E eu tenho vantagens agronômicas importantes. Se eu deixo de produzir milho, certamente terei um problema maior com soja que vem depois, porque tem o manejo de pragas e doenças, de ciclagem de nutrientes, por exemplo. Portanto, produzir milho a baixo custo de produção muitas vezes ainda é melhor, desde que tenha margem de contribuição positiva.

E o trigo, também terá “primeira vez”?
O trigo teve um desempenho muito bom na última safra, chegou muito próximo do que se consome. O Brasil consome cerca de 12 milhões de toneladas por ano, e produziu 11 milhões de toneladas. E continuamos com a expectativa de um aumento da área plantada para 2023. Se a produtividade do ano passado for pelo menos repetida, tem uma chance enorme de a gente chegar finalmente, pela primeira vez, a produzir a mesma quantidade de trigo que a gente consome. Isso não significa que não vamos importar trigo. Seguiremos importando e exportando, até em função dos diferentes padrões de qualidade. Ainda não temos projeção de produtividade porque é cedo. Quanto a área plantada, trabalhamos com a possibilidade de crescimento acima dos 3,5 milhões de hectares, talvez 3,7 milhões de hectares, o que seria suficiente, com uma produtividade igual, para chegar próximo ao consumo.

"Na soja, ritmo de crescimento será menor do que nos últimos anos. Alguns chegam a dizer que área plantada vai cair, mas acreditamos que vá crescer"

Qual a perspectiva para a soja em 2023/2024?
Continuamos trabalhando com expectativa de crescimento de área. Não se vê espaço para a redução, porque outras culturas vão ceder área para soja, como é o caso do milho verão. E com uma expectativa muito positiva em relação à produtividade, especialmente pelo fato de estar em ano de El Niño, quando o Sul do Brasil tende a produzir bem, evitando os prejuízos que ocorreram nesses anos de La Niña, especialmente o Rio Grande do Sul. No ano que vem podemos ter uma produção maior que este ano, com novo recorde, tanto pelo crescimento da área quanto por uma sinalização climática mais positiva. Mas o ritmo de crescimento será menor do que nos últimos anos. Sabemos que alguns chegam a dizer que área plantada vai cair, mas acreditamos que vá crescer. Na soja tem um carry over, tem um embalo. Vamos imaginar o cidadão que pegou uma fazenda de pecuária para transformar em soja durante o período de rentabilidade elevada, ele não faz toda a transformação em um ano só. Tem muita gente que está terminando agora o ciclo de expansão.

E você concorda que a demanda por soja está crescendo menos do que a produção?
No mundo vai crescer menos do que a produção. Mas aí você pode me perguntar se vai ser um ano ruim... Não, não vai. Vai ser um dos melhores anos da história para a demanda. Mas a oferta de soja deve crescer muito mais que a demanda. Os Estados Unidos estão com um problema climático, mas aparentemente não é tão grave, especialmente na soja, e podem entregar uma safra ainda razoável. E na América do Sul, a gente tende a uma recuperação muito significativa de produção. A Argentina teve uma safra péssima esse ano, 21 milhões de toneladas, o potencial de produção de soja lá é no mínimo, 30 milhões de toneladas acima do que produziu esse ano. É por isso que os preços sinalizados para 2024 são mais baixos, porque se espera uma recuperação significativa de estoques. Mas e se houver quebra na safra americana? Se quebrar 10 milhões de toneladas, não muda esse quadro.

Alguns executivos do agro têm dito que a situação em 2024/2025 poderá piorar. Qual seria o motivo deste pessimismo?
Eu acho que são duas razões principais. A primeira é a tendência de médio prazo. Se tivéssemos que falar hoje do 2024/2025, que está muito longe, se olhar a trajetória dos preços na Bolsa de Chicago, ela é descendente. Ela não está indicando a recuperação dos preços. Então você tenderia a ficar com margens baixas não apenas em 2024, mas eventualmente, em 2025 também. Não é que ela segue piorando, mas ela vai para o patamar baixo e permanece lá, isso é ruim.

"Em 2024 o fluxo de caixa da agricultura brasileira de grãos vai passar por um momento muito diferente do que vinha enfrentando"

Só que tem um outro efeito, que é sobre o capital de giro. As safras anteriores permitiram investimento e desalavancagem. Eu pagava a dívida e investia. Sobrava dinheiro para o investimento e sobrava para fazer, sem grandes atropelos, o financiamento da safra, até mesmo comprando insumos à vista ou pagando contas antecipadamente.

Não vai dar mais para fazer isso?
Nesta safra 2023/2024, a sobra do 2022/2023 é menor. Eu já fico com menos dinheiro para o investimento e já preciso pegar a reserva do lucro da safra e usar um pedaço maior desse resultado para cobrir o fluxo de caixa. Só que a gente está dizendo que 2023/2024 vai deixar o resultado ainda menor. Então vai reduzir ainda mais o espaço para investimento e talvez comece a complicar a disponibilidade de recursos para o fluxo de caixa da próxima safra.

De que forma?
Tem um problema econômico, que é a redução da margem, que provavelmente permanece por mais de um ano, pode alcançar 2024/2025. E mais do que isso, tem um problema financeiro, que é o fluxo de caixa no ambiente de taxa de juros elevada. Eu preciso recorrer ao mercado para cobrir o meu descasamento de fluxo de caixa - isso sempre ocorre, mas eu tinha receitas que sobravam dos resultados das safras anteriores. Quando eu vou ao mercado, nesse momento, eu vou com taxas de juros mais altas. Nós chamamos a atenção dos nossos clientes para isso. Em 2024 o fluxo de caixa da agricultura brasileira de grãos vai passar por um momento muito diferente do que vinha enfrentando. Será muito mais apertado.

Então a situação realmente pode piorar?
Eu compartilho desta visão de que 2024/2025 pode ser ainda mais preocupante, pela questão financeira. Agora, está longe de a gente enxergar uma situação de crise. Poderemos ter uma narrativa de crise por parte de alguns produtores. É aquele cara que o arrendamento já não dá conta de pagar, ou que só investiu e não melhorou a estrutura de capital dele, que eventualmente está muito alavancado no momento de taxas de juros muito altas. Existe isso, mas eles não são a maioria. Não dá para fazer generalização. Vai ter gente que vai investir no contraciclo? Vai. Aqueles que lá atrás achavam que a terra estava muito cara, o trator estava caro, podem agora decidir investir, entendendo que acabou a euforia.

Então nesta lista de recordes, não estão os pedidos de recuperação judicial?
Depende da posição da cadeia do agronegócio em que você está. Entre os produtores rurais há situações distintas, como já falamos. Se você está no mercado de insumos, é o ano de redução de preços e sazonalidade muito diferente. A aquisição também lenta dos insumos, com estoques que estavam elevados no início do ano num ambiente de taxa de juros elevada, certamente constrói um cenário mais negativo para a indústria dos insumos de uma maneira geral. Se você está no setor muito ligado a investimento, como equipamentos e máquinas, tem uma luz amarela, porque ainda tem o carry over do crescimento passado, mais o ambiente com margens mais baixas e juro alto para frente e com uma expansão menor de área também, o que preocupa.

E na área de crédito?
Quem está do lado da cadeia que fornece crédito precisa estar revendo suas políticas de avaliação de risco, porque o risco subiu. Ao mesmo tempo, vai ter mais gente demandando dinheiro por capital de giro. Portanto, pode ser uma boa hora para ampliar a carteira. Toda a situação quando muda muito rápido, gera desafios e oportunidades. Temos vistos clientes muito preocupados com as próximas safras e há quem esteja animadíssimo, vendo oportunidades que antes não estavam acontecendo. Depende da posição da cadeia e até do market share.

Que tipo de oportunidade deve haver?
Para quem está chegando no Brasil agora pode ser uma bela oportunidade, porque alguns players da cadeia podem estar avaliando com mais cautela a sua exposição ao mercado. O risco subiu, sobrando um espaço para quem não estava ainda. O mesmo ocorre com a adoção do pacote tecnológico na lavoura. Antes o produtor não estava fazendo muita conta. Agora ele vai fazer a conta e talvez decida mudar a tecnologia, aí gera oportunidade.

"Sempre falo que não precisa ser muito esperto para enxergar as oportunidades que o setor tem. O mais difícil é entender os riscos"

O mercado de capitais vinha mostrando uma certa empolgação com o agro nos últimos anos. Neste cenário de risco maior, isso pode mudar?
Acho que para aqueles que são profissionais, que vinham fazendo essa jornada com o pé no chão e conhecendo o setor, ou seja, já viram outros momentos cíclicos no setor agrícola no passado, para eles não muda muita coisa. Pelo contrário, pode gerar boas oportunidades. Por exemplo, pessoal que está fechando Fiagro voltado para aquisição de terra. Estava difícil comprar terra, mas talvez já não esteja tão difícil comprar nos próximos dois anos. Mas para quem acabou de aterrissar no agro, interessado "pela tese” do setor, acho que vai ter muita gente se decepcionando. Quem entrou sem a necessária profundidade, só viu uma parte da história que é essa mais recente de resultados exuberantes e pode sim, ter feito projeções ou vendido cenários irrealistas para o setor.

É difícil, para o mercado de capitais, precificar o agro?
A Agroconsult é muito procurada pelo mercado de capitais. E eu sempre falo para as pessoas que não precisa ser muito esperto para enxergar as oportunidades que o setor tem. O mais difícil é entender os riscos. Você precisa conhecer como as coisas funcionam, quem são os players, como é a dinâmica de cada região. Os riscos não são poucos, eles são diversos. Eles não estão todos no mesmo lugar e não aparecem todos ao mesmo tempo. Eles aparecem e desaparecem com mais ou menos intensidade.

Vai ter gente sofrendo com esses riscos?
Nesse sentido, eu acho que tem gente que fez uma equilibrada leitura das oportunidades e dos riscos e não terá problema nenhum. Vai continuar performando, com capacidade de explicar para seus investidores o momento que a gente está e vai continuar ampliando a sua presença no agro. Mas quem só conseguiu enxergar as oportunidades e não fez lição de casa direito – e infelizmente, muitos não fizeram isso – vai passar por um, digamos, "constrangimento" com os investidores, nesses próximos dois anos. Será a vez de explicar o risco que ele não mapeou e que ele nem sabia que existia. De uma certa forma, isso é bom, porque acho que vai tirar gente do mercado e vai fortalecer a posição de outros que estão fazendo a coisa direito. É uma seleção natural.