Quem é do ramo, bate o olho e já sabe. Uma das maiores e mais estruturadas propriedades rurais do Brasil, a fazenda Nova Piratininga, na divisa entre os estados de Goiás e Tocantins, é um colosso com mais de 230 mil hectares, com o estado da arte na produção de gado e agrícola.
Seu valor? Nesta quarta-feira, 17 de julho, um anúncio na plataforma Chaozão, especializada em ofertas de imóveis rurais, indicava, sem citar o nome da fazenda, que estaria à venda por astronômicos R$ 20 bilhões. Nem precisava dizer qual era a propriedade. As imagens, para quem conhece o setor, entregam.
Uma busca rápida na internet e encontra-se pelo menos outras cinco imobiliárias ofertando a mesma fazenda, com sede em São Miguel do Araguaia (GO). A descrição do imóvel é semelhante, recheada de informações que justificam o valor de venda. Este sim, varia – em uma, a “pechincha” de R$ 14 bi”; em outra, US$ 6,4 bilhões (mais de R$ 35 bilhões, na cotação do dia).
O imóvel tem mais de 230 mil hectares – apontada como a maior do País em área contínua – e , um plantel superior a 120 mil cabeças de gado, com estrutura para ciclo completo (cria, recria e engorda), muita água e aptidão para o cultivo de soja e milho.
Além disso, há laboratório de inseminação e de análise de solo, lagos, fábrica de ração, maquinários agrícolas, vila para funcionários com ruas asfaltadas e escola, sede com cinema, boate e duas pistas de pouso homologadas pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). A descrição é um resumo do que tal fazenda tem em terras e estrutura.
A venda é anunciada como “porteira fechada”, ou seja, inclui o terreno e tudo que pertence à fazenda, o que justificaria as cifras bilionárias.
Os diversos anúncios justificam, da mesma forma, uma pergunta que começou a correr nas rodas do agro, grupos de produtores e e até em redes sociais: a Nova Piratininga está à venda?
Nos últimos dias, o AgFeed repetiu essa pergunta a corretores e conhecedores do mercado imobiliário rural. E procurou o proprietário da fazenda, o empresário goiano Marcelo Limírio Gonçalves, ex-controlador da farmacêutica Neo Química, vendida em 2009 para a Hypermarcas, por R$ 1,9 bilhão.
Ele arrematou a propriedade em 2010, em um leilão, por R$ 436 milhões, em valores da época. Na época, já era uma joia do agronegócio brasileiro, embora degradada por estar envolvida em processos judiciais por pertencer à Agropecuária Vale do Araguaia, empresa de Wagner Canhedo, ex-dono da companhia aérea Vasp, que teve falência decretada no fim dos anos 2000.
Até o fechamento desta reportagem, Limírio não havia respondido às perguntas enviadas através de um amigo próximo a ele. Entretanto, um executivo da empresa, que disse não estar autorizado a conceder entrevistas, garantiu: "A Fazenda Nova Piratininga não está à venda”.
Ele classificou os anúncios como “fake News” e informou que “nosso jurídico está atrás dessas pessoas que estão postando essas informações, porque não procede".
“Fazenda de Excelência”
“Ele está remanejando e investindo na Fazenda”, disse o amigo que conversou com o AgFeed, também sob a condição de não ser identificado. “Esse é o negócio que o estimula a crescer depois da venda da Neoquímica”.
De acordo com ele, apesar do foco na pecuária de corte, a Nova Piratininga tem ampliado sua atuação na agricultura e colhido três safras ao ano, “passando de fazenda padrão para fazenda de excelência”.
A declaração da fonte está alinhada com as informações contidas no site da Nova Piratininga. “A atividade agrícola na Nova Piratininga está em plena expansão com o cultivo em larga escala da soja e do milho e foco na integração lavoura-pecuária”, diz o texto da página.
“Os investimentos robustos em alta tecnologia, como a agricultura de precisão, capacitação da equipe, máquinas e estrutura de armazenagem própria de grãos, têm permitido forte crescimento ano a ano”.
Os dados informados ali estão, entretanto, desatualizados. Segundo o site, na safra 2020/2021, foram cultivados 6 mil hectares de soja, o dobro do ano anterior.
“A área plantada do grão conta com um agressivo plano de desenvolvimento, cresce a cada safra e deve chegar a 50 mil hectares nos próximos anos”, informa.
Além de soja, a fazenda produz milho desde a safra 2020/2021, para uso na alimentação do rebanho. A meta, segundo a empresa, é ser autossuficiente na produção do grão.
Na pecuária, a Nova Piratininga é tida como um dos mais espetaculares projetos de melhoramento genético industrial de rebanhos. Na fazenda, o objetivo é criar um padrão de qualidade denominado internamente de “Gado Piratininga”.
A cada ano, a “colheita” de bezerros na propriedade chega a ultrapassar 50 mil animais da raça Nelore. A Nova Piratininga é modelo também na criação da raça Angus.
“O empreendimento agropecuário caracteriza-se por práticas de excelência para a rastreabilidade do rebanho e hoje 100% do gado tem identificação, via chip controlado por software de gestão”, diz a companhia em seu site.
“É de cair o queixo a revolução que está acontecendo lá", disse ao AgFeed o executivo de uma empresa que faz negócios com a Nova Piratininga e conhece a fundo o projeto de pecuária da fazenda.
Anúncios piratas
Ao longo da última semana, o AgFeed procurou também corretores e consultores que conhecem a fundo o mercado imobiliário na região.
Dois deles, que conhecem bem a Nova Piratininga, confirmaram a informação de que não está à venda e que tem sido, frequentemente, objeto de boatos e de “anúncios piratas”, que utilizam imagens e informações da fazenda para atrair a atenção para suas empresas.
“É o famoso ‘boi de piranha’. Faço um anúncio que não existe e, a partir disso, eu capto clientes para vender outros imóveis que estão disponíveis. Com essas cifras, a Nova Piratininga é uma das que mais sofre especulação no Brasil em termos de venda”, explica a CEO da plataforma de anúncios de imóveis rurais Chaozão, Geórgia Oliveira.
Segundo ela, a Nova Piratininga é uma das propriedades mais anunciadas para venda no País, mas sem estar disponível para negócio. Isso aconteceu, no entanto, na própria plataforma Chaozão. Alertada pelo AgFeed, Geórgia retirou a postagem, que oferecia a propriedade por R$ 20 bilhões.
Segundo ela, o anúncio foi feito por uma corretora cadastrada, a Parnaíba Imóveis, com sede em Santana do Parnaíba, em São Paulo. Procurada pelo AgFeed, a empresa não atendeu e nem deu retorno às mensagens deixadas pela reportagem.
Anúncio semelhante está publicado no site OLX. Ali, a Saidler Consultoria & Agronegócio, do Rio de Janeiro, informou, em postagem feita em 19 de junho, o valor de venda de US$ 6,4 bilhões. E chega a incluir, nas imagens, um vídeo institucional produzido pela própria Nova Piratininga.
O AgFeed também tentou contato com a Saideler, outra que não atendeu e não retornou às ligações.
Na imobiliária paranaense Haya Imóveis, a diretora Rosângela de Paula afirmou ao AgFeed que a venda está disponível em sua plataforma deste setembro de 2023, mas não houve procura. No início desta semana, sem indicar o nome, a propriedade estava anunciada por R$ 14 bilhões.
“Eu já pedi para retirar o anúncio. Ainda não teve interessado”, disse ela. Na quinta-feira, 18 de julho, entretanto, ele não apenas não havia sido retirado como o valor havia sido aumentado para R$ 30 bilhões.
Quem compra fazendas de bilhões?
Os anúncios revelam uma falta de regulação do mercado imobiliário rural. A prática não é considerada golpe, mas é recorrente no segmento.
“Infelizmente é comum. É livre mercado e não há questão regulatória sobre isso, assim como outros tipos de venda envolvendo imóveis rurais”, diz o especialista em desenvolvimento imobiliário e CEO do Cimi360, Heitor Kuser.
Em pesquisas na internet, não é difícil encontrar fazendas com valores de venda acima de R$ 1 bilhão. Mas Kuser chama a atenção para esses negócios. Ele pondera que quem vende fazenda de, por exemplo, R$ 15 bilhões não anuncia na internet.
“Eles não colocam o anúncio na página de classificados. Isso é vendido em um mercado exclusivo. Assim como você não encontrará um prédio de R$ 30 milhões à venda”, observa.
Com montantes equivalentes a cerca de duas vezes a avaliação de R$ 11,5 bilhões dos mais de 640 mil hectares cultivados pela SLC Agrícola, maior operadora do Brasil – segundo levantamento divulgado recentemente pela companhia, as ofertas causam espanto e levantam o questionamento se haveria, de fato, compradores para imóveis desse porte.
Kuser, do Cimi360, ressalta que essas propriedades são precificadas a partir de um laudo de avaliação das terras e de sua estrutura. Desta forma, dificilmente, há preço médio por hectare definido nas regiões.
“Não existe uma média de preço. Uma fazenda que tem água vale dez, a que não tem água, vale três. Cada fazenda tem uma topografia, produtividade. Assim, o proprietário coloca o preço em cima do laudo de avaliação do imóvel. Mas sempre de olho em um preço base da região”, diz.
Negociações desse porte em geral envolvem operações financeiras complexas, com intermediações de instituições financeiras. “Os compradores fecham acordo de compra e venda para pagar em cinco, dez anos. A própria fazenda quita essa dívida”, acrescenta Kuser.