R$ 1,4 mil por quilo – ou R$ 84,5 mil pela saca de 60 quilos. Vendido há menos de um mês, um exclusivíssimo lote de grãos verdes produzidos na fazenda Rainha, no município de São Sebastião da Grama, na divisa de São Paulo com o Sul de Minas Gerais, atingiu o maior valor já pago por cafés colhidos no Brasil.

Do lado comprador, uma pequena (mas ambiciosa) rede de cafeterias japonesa, a Sarutahiko Coffee, com seis lojas em Tóquio, dona do lance mais alto durante o leilão Cup of Excellence Brazil promovido pela Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA, na sigla em inglês para Bazilian Specialty Coffees Association).

Do lado vendedor, a maior vencedora dos concursos de qualidade promovidas pela entidade, a Orfeu Cafés Especiais, marca criada em 2005 pelo empresário Roberto Irineu Marinho, vice-presidente do Conselho de Administração e acionista do Grupo Globo, e sua mulher, Karen.

Pode-se dizer, sem risco de exagerar, que foi um negócio único. Os japoneses levaram apenas uma saca da variedade Geisha, de um total de três levadas pela Orfeu ao leilão.

Era exigência mínima para os produtores que desejavam participar do evento, cujos arremates conferem uma espécie de selo de qualidade superior aos vendedores. E o máximo que a Orfeu está disposta a comercializar sem ter ela mesmo torrado, moído e embalado.

“A marca Orfeu nasceu com o propósito de contribuir com aumento de patamar de excelência do café brasileiro e manter no País o nosso melhor café”, explicou ao AgFeed o CEO da empresa, Ricardo Madureira.

Diante dessa missão, o impacto que a venda de uma única saca em um país que produz mais de 55 milhões, parece ínfimo, quase simbólico. No mundo dos cafés especiais – cuja produção é estimada em menos de 20% desse total –, porém, símbolos têm poder de desencadear uma cadeia de eventos que geram valor e reverberam além daqueles 60 quilos de grãos.

Nas últimas décadas, os produtores e as empresas que vendem os melhores cafés do mundo passaram a ter como referência declarada o universo dos vinhos, que criou uma cultura de consumo que valoriza combinações específicas de variedades de uvas, os ambientes em que são produzidas (os chamados terroirs), os processos utilizados nessa produção e, posteriormente, na vinificação.

Tudo isso está presente no emergente mercado de cafés especiais. Assim, ao atingir um preço recorde, toda esse conjunto se valoriza: o produtor, seus processos e seus terroirs.

Em seus 18 anos de vida, a Orfeu foi pródiga em aproveitar os impulsos desses concursos para consolidar seus diferentes cafés entre os mais valiosos e cobiçados do Brasil. Criou uma marca verticalizada, obcecada por detalhes que vão bem além dos cafezais.

“Nascemos na fazenda e produzimos da semente à xícara”, diz Madureira. Do plantio à torrefação, dos cuidados agronômicos ao design das embalagens, tudo é feito dentro de casa e busca tirar valor de tudo o que envolve a produção.

A história e a paisagem das fazendas do grupo, por exemplo, é parte desse conjunto. Um imponente jequitibá encravado em meio ao cafezal da fazenda Sertãozinho, por exemplo, foi escolhido para figurar no logotipo da marca, simbolizando tradição e solidez.

Sob a sombra dessa árvore milenar, a Orfeu desenvolveu uma linha clássica de cafés vendidos atualmente em pontos selecionados – supermercados e cafeterias premium, além de seu próprio e-commerce – com variedades de alta qualidade de café Bourbon amarelo. No ano passado, iniciou a comercialização de uma linha de varietais de Arábica (japy, arara e acauã) que se adaptaram bem às condições específicas de suas fazendas.

Agora, um novo passo calculado indica o caminho do futuro da Orfeu para além dos terroirs próprios da histórica região cafeeira do Sul de Minas. O ano de 2024 deve trazer ao mercado os primeiros cafés resultantes de um trabalho de formação de uma rede de cafeicultores parceiros, identificados através de um criterioso trabalho de identificação e certificação

“Na hora que começamos a pensar em planejamento estratégico de expansão, mas sempre pensando em nos mantermos fieis ao propósito, discutimos se seria o caso de expandir para fora das fronteiras das fazendas”, conta Madureira.

Ricardo Madureira, CEO da Orfeu Cafés

A solução encontrada foi o desenvolvimento do Programa de Certificação Orfeu. Durante mais de um ano, a empresa debruçou-se sobre indicadores em quatro áreas de gestão -- qualidade, práticas agrícolas, ambiente e pessoas. E chegou a uma lista com mais de 70 itens a serem verificados nos potenciais fornecedores eternos.

Em 2022, o protocolo de certificação foi testado em propriedades vizinhas às do grupo Orfeu. No ano passado, o programa começou efetivamente a funcionar. “Temos 11 produtores certificados”, afirma Madureira.

O começo do projeto no Sul de Minas deve-se, segundo o executivo, a uma questão de segurança de que tudo está de acordo com o planejado antes de avançar.

“É tudo muito criterioso, o programa está funcionando, mas é um processo muito sensível para a marca e queremos criar laços de cooperação e alianças de longo prazo. Não queremos ser vistos como simples compradores de café verde. Somos também produtores, queremos ter uma conversa de igual para igual com esses parceiros”.

Neste ano que se inicia, porém, a marca deve anunciar as primeiras certificações feitas e terroirs mais distantes. Enquanto os cafés provenientes de fornecedores da mesma região das suas fazendas têm sido incorporados aos produtos regulares da marca, as variedades vindas mais de longe devem ser comercializados em microlotes especiais.

Para apresentar cada um dos novos terroirs participantes, a Orfeu deve trazer pequenas mudanças nas embalagens, com citação ao novo momento da empresa, de forma a valorizar os produtores e, ao mesmo tempo, trazer transparência ao consumidor.

Ciclo virtuoso

Os critérios utilizados na certificação buscam levar os fornecedores a um “padrão Orfeu de qualidade”. “Temos a pretensão de oferecer a eles uma evolução técnica, mas sem nos arvorar a dizer que somos melhores”, diz Madureira.

Durante o desenvolvimento do programa, a Orfeu contratou um auditor profissional que, além de contribuir na elaboração do processo de certificação, participou de treinamentos de um time da empresa que faz visitas periódicas às fazendas candidatas.

Segundo Madureira, entre os 76 critério verificados, há alguns qualificatórios, que definem se a fazenda está apta ou não à certificação. Outros, sobretudo relacionados a boas práticas, não são desclassificatórios, mas indicam caminhos.

“O produtor sai do processo com um plano de ação, que não é compulsório. Nosso objetivo é que seja um processo engrandecedor, para os dois lados. Por menor que o produtor seja, nossa equipe sempre volta com uma coisa legal. Sempre temos também a aprender nesse ciclo virtuoso”.

O modelo de negócios entre a Orfeu e os fornecedores prevê, segundo o CEO, uma política de preço baseados na qualidade dos grãos. “Queremos criar vínculo, que envolva um preço justo, com prêmio acima da pontuação obtida pelos lotes”, afirma.

A avaliação é feita por uma equipe de estão oito Q-Graders, especialistas internacionais na análise sensorial de café, seguindo os padrões estabelecidos pela BSCA.

Madureira se considera um novato no mundo do café, no qual ingressou em 2021, quando assumiu o posto na Orfeu. Sua experiência no agronegócio vinha de uma passagem pelo setor sucroenergético, em uma empresa voltada para o desenvolvimento de variedades de cana.

“Ainda estou engatinhando, com dois anos e meio no setor, mas entrei com boa visão como consumidor”, afirma E como um inconformado com o fato de que mais de 90% dos cafés especiais produzidos no Brasil ainda sejam levados para o exterior.

“Aqui de dentro a gente percebe o caminho enorme que ainda tem a traçar como indústria”, diz. Madureira conta que, antes do leilão histórico de dezembro passado, dizia que “se chegarmos a R$ 50 mil vai ser um sucesso incrível”. Com quase 70% acima desse valor, ele afirma ter reforçado suas convicções.

“Esse preço tem muito a ver com o ambiente dos cafés especiais lá fora, mas também com algo que o Brasil ainda pode alcançar também aqui dentro”.

“O brasileiro, como consumidor, tem aumentado a busca por cafés que tenham experiência diferentes e que tenha uma base de produção que respeite o ambiente e as pessoas, que tenha rastreabilidade. Jornada de aumentar valor agregado é uma jornada longa, mas estamos no caminho certo”.