Na agricultura e nas revendas de insumos, o movimento já vem acontecendo há alguns meses. A preocupação, agora, começa a rondar a pecuária, mais especificamente o segmento de confinamentos, que atuam na ponta final de engorda do rebanho bovino de corte para entrega aos frigoríficos.

Documentos a que o AgFeed teve acesso mostram que dificuldades financeiras têm levado empresas do setor a buscarem proteção judicial para evitar a execução de dívidas. Nos últimos meses, juízes emitiram pelo menos duas cautelares (sendo que uma acabou se tornando um pedido de RJ), deferindo pedidos feitos por grupos do ramo.

O primeiro foi a Green Farming, que atua com recria e engorda de gado em Monte Alegre de Minas (MG), que entrou com um pedido de tutela cautelar.

Além dela, o Grupo LFPEC, do Mato Grosso, que pertence aos empresários Francisco Camacho, Adel Camacho e Ricardo Barbosa, conseguiu, em julho deste ano, suspender todas as ações de cobrança de uma dívida de R$ 180 milhões.

O grupo, que atua nos estados de Mato Grosso, Bahia e São Paulo teve a suspensão determinada pela juíza da 1ª Vara Especializada em Falências de Cuiabá, Anglizey Solivan de Oliveira.

No caso da Green Farming, que ainda não pediu recuperação judicial, o passivo é estimado em R$ 300 milhões. Segundo o documento de tutela cautelar a que o AgFeed teve acesso, a empresa enfrentou no último ano e meio uma série de desafios que resultaram na crise financeira. A cautelar é pedida para tentar evitar uma RJ.

De 2022 para cá, a empresa se alavancou e iniciou uma série de investimentos. No mercado financeiro, foi em busca de CRAs para adquirir bois e alongar o perfil de sua dívida. Entre os players, atraiu a Guide Investimentos, numa emissão de R$ 55 milhões, e a Hurst Capital, com mais R$ 100 milhões.

A questão é que, ao mesmo tempo, uma tempestade perfeita atingiu a Green Farming. A companhia – que segundo documento encaminhado à Justiça, produz cerca de 100 mil toneladas de volumoso anuais, com capacidade de engorda de 60 mil bovinos por ano e processamento de 300 toneladas de insumos diariamente – viu o preço da arroba do boi recuar 50% entre julho de 2022 e janeiro deste ano.

“Desde a emissão dos CRAs, houve a queda substancial dos preços dos bovinos adquiridos com o capital levantado, gerando uma perda relevante do valor do estoque”, diz o pedido de cautelar. Isso, continua o documento, “fez com que a empresa amargasse um alto prejuízo”.

A companhia estima que os animais comprados a R$ 330 por arroba em 2022 foram comercializados, em 2023, com uma cotação de R$ 195 por arroba.

Ao longo desse tempo, a empresa ainda sofreu com os efeitos da alta da taxa Selic, a imposição de prazos mais curtos para pagamento de fornecedores por conta do cenário de RJs no agro, o aumento no preço dos insumos e até a interrupção temporária das exportações para a China no ano passado, por conta dos casos de vaca louca.

“Diante deste conjunto de fatores que se acumularam ao longo dos últimos 18 meses, a Green Farming se encontra em uma situação de insolvência iminente”, diz a petição, assinada pela Leite, Tosto e Barros Advogados.

O escritório jurídico conclui que a combinação desses eventos deteriorou a posição financeira da empresa e causou uma perda significativa no estoque de bovinos e matérias primas agrícolas (volumoso, milho, sorgo e farelos).

“Isso culminou em um cenário que torna inevitável a busca da mediação como meio de reestruturação e proteção das suas operações”, argumenta.

Nos últimos meses, de acordo com o documento, a empresa tem conseguido diálogo com pelo menos parte dos credores. Detentores de 65% do seu passivo estariam dispostos a readequar as dívidas e até injetar capital na Green Farming.

Existem, segundo os advogados, até alguns interessados em converter a dívida em uma participação societária. A venda de ativos, como fazendas e máquinas, também estaria no pipeline para ajudar na situação.

Entretanto, por conta de inadimplementos por parte da empresa, o Banco Ribeirão Preto (BRP) ajuizou uma ação de busca e apreensão de R$ 832 mil e ainda obteve a apreensão de tratores e máquinas das propriedades da Green Farming.

O fundo Berilo FIDC, gerido pela Polígono Capital, bloqueou as contas correntes da Green Farming e arrestou suas aplicações financeiras e imóveis de sua propriedade.

O arresto é uma medida judicial de apreensão de vários bens de um devedor para garantir um futuro pagamento da dívida.

O documento ainda afirma que “a agressividade dos credores pode ser percebida pelas atitudes da Cargill”, que segundo o escrito, arrestou e tentou remover um pivô central de irrigação dos efluentes líquidos bovinos de propriedade da Green Farming.

“A sua conduta, caso tivesse ocorrido, o que só não ocorreu pela interferência pontual da Requerente, traria sérios danos financeiros e materiais à Requerente, sem prejuízo dos danos ambientais que seriam efetivados”, afirma o documento.

A petição ainda diz que há em trâmite mais de 25 ações judiciais de credores como o Itaú, Banco Volkswagen, Cooperativa de Crédito do Alto do Paraíba e Berillo FIDC, que buscam a penhora online dos ativos financeiros, bem como o arresto e apreensão dos seus bens.

O AgFeed procurou a Polígono Capital e o Banco Ribeirão Preto, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.

Em nota enviada à redação, a Cargill afirmou que "o processo contra a Green Farming corre em segredo de justiça e, por isso, não podemos comentar detalhes".

"Reforçamos que nossa atuação, em quase 60 anos operando no Brasil, sempre tem sido pautada pelo respeito às leis, ética e transparência, compromisso que seguimos neste caso e em todas as nossas atividades no País", completou.

Na Green Farming, a empresa está atuando junto com a EXM Partners, empresa que atua na resolução de conflitos empresariais, com reestruturação na gestão e renegociação de dívidas.

Eduardo Scarpellini, sócio da EXM Partners, disse ao AgFeed que tem visto casos de confinamentos de 20 mil a 50 mil cabeças de gado demonstrando problemas e que novos pedidos de cautelares devem surgir no futuro.

“Esse é um setor que sofreu bastante e que tem como financiadores fundos para fazer investimento em bois, que ficam com o animal em garantia. Estou vendo vencer algumas operações e empresas sem caixa”.

A EXM afirma ter em seu histórico mais de 400 projetos bem-sucedidos de recuperação de empresas de diversos setores. Fundada há 20 anos, em Ribeirão Preto, por Scarpellini e Angelo Guerra Netto, a empresa já conseguiu recuperar algumas usinas sucroalcooleiras.

Grupo Macedo

Um caso recente, que teve seu pedido de recuperação judicial aceito em Goiás, foi do Grupo Macedo – que primeiro obteve uma cautelar e posteriormente recorreu à RJ.

Na semana passada, o juiz Guilherme Bonato Campos Caramês, da comarca de Montividiu, concedeu a recuperação judicial ao grupo.

A empresa, que tem como sócios José Cruvinel de Macedo, José Cruvinel de Macedo Filho e Ivana Lima Gonçalves de Macedo, cria gado e produz soja. Essa é a quinta geração da família no ramo, que atua na atividade agropecuária na região desde o final do século 19.

De acordo com um documento a que o AgFeed teve acesso, as cautelares traziam um valor de R$ 42 milhões em julho e, segundo os advogados que a representam, são dívidas de “curtíssimo prazo”. Após o desdobramento da ação, a RJ levantou um dívida de 240 milhões.

A defesa da empresa argumenta que a decisão de recorrer à RJ se deu por conta de sua situação financeira. Ao longo dos últimos anos, para sustentar as operações, o grupo investiu em compra de gado, insumos, tecnologia e maquinário, financiados por meio de dívidas.

“Em contrapartida, a incapacidade de gerar fluxo de caixa suficiente para cobrir os custos operacionais, além dos pagamentos de juros e amortizações, colocou o Grupo em uma situação de risco real de insolvência”, afirma o documento.

Além disso, a empresa também viveu o cenário de queda da arroba do boi, assim como a Green Farming.

No pedido de RJ, é pontuado que a expectativa é que o Grupo Macedo fature R$ 80,5 milhões na safra 2024/2025, com um custo de R$ 65 milhões, cerca de 80% da receita.

A empresa entrou com o pedido, de acordo com o documento do escritório de advocacia, para se proteger dos credores. Entre eles, são citados a Caixa Econômica Federal e o Sicoob, que não receberam pagamentos de dois contratos de cédulas de crédito bancário.

Indústria das RJs?

Apesar de dados do Serasa Experian mostrarem avanço nas RJs de produtores e a crise do Agrogalaxy ter trazido uma suposta “crise do agro” nos holofotes, o setor evita falar em risco sistêmico.

Octaciano Neto, ex-diretor de agronegócio da Suno e especialista no mercado de capitais, afirmou ao AgFeed, em entrevista recente, que o setor não vive uma hecatombe generalizada.

"Não existe crise estrutural no agronegócio. Existem problemas pontuais em algumas regiões do Brasil, em algumas culturas", afirmou. No caso dos produtores pessoa física, ele relembra que são apenas 250 RJs num universo de 450 mil produtores rurais brasileiros.

Um executivo com larga experiência no setor de confinamentos compartilha dessa visão. Ele afirmou ao AgFeed que não vê um problema estrutural também na pecuária e que os casos citados na reportagem são isolados. Segundo ele, o mercado tem escutado mais barulho entre agricultores.

“Até porque o boi é uma moeda forte e só no último mês teve uma reversão de ciclo significativo. Não ouvi de mais nenhum outro caso na pecuária”, disse.

Segundo dados da Esalq, o preço da arroba do boi gordo estava cotado a R$ 350 no início de 2022, passou por uma grande desvalorização nos anos seguintes e atingiu R$ 212 em setembro de 2023. Em recuperação nas últimas semanas, a arroba hoje está cotada em torno dos R$ 285.

Para alguns analistas, a atual elevação dos números de RJs é alimentada por um movimento de alguns escritórios de advocacia, que tem defendido, junto aos produtores, o uso desse instrumento como uma alternativa para reestruturar dívidas, e não como um último recurso antes da insolvência.

Nos últimos meses, vários desses advogados têm feito circular nos grupos do setor materiais promocionais tratando do tema, prática considerada irregular pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Em fevereiro passado, por exemplo, uma apresentação em PDF foi compartilhada entre produtores, empresas e entidades ligadas ao agronegócio. O documento, assinado por um escritório de advocacia de Goiânia, mostrava, num tom comercial, supostos benefícios de se entrar em um processo de recuperação judicial.

As 10 páginas do folder eletrônico trazem uma lista de motivos para tentar convencer produtores endividados a adotarem a medida. No texto, é dito, por exemplo, que "a recuperação judicial é a melhor ferramenta para que o produtor rural, que deve mais de R$ 15 milhões, consiga pagar todas suas dívidas".

Mensagens como essa têm alarmado algumas entidades do setor, que vêem nesse tipo de iniciativa um indício de que uma espécie de indústria da recuperação judicial pode estar se instalando no ambiente rural brasileiro, aproveitando-se de um período de maior dificuldade financeira no campo. Na época, Anda, Andav e Anec repudiaram esse tipo de ação.

O escritório responsável pelo pedido de RJ do Grupo Macedo, João Domingos Advogados Associados, é um dos que têm reforçado sua atuação no tema nos últimos meses. No instagram da empresa, é possível ver postagens citando casos de RJs no agro em que atuou, com dívidas variadas.

No final de setembro, Leandro Marmo, um dos sócios do escritório chegou a divulgar, na mesma conta, um vídeo em que afirma que, depois do grupo de revendas de insumos Agrogalaxy – que teve sua RJ deferida recentemente –, outra rede de distribuição, a Lavoro seria a próxima a recorrer ao instrumento.

No vídeo, que viralizou entre produtores e depois foi retirado do ar, Marmo diz que “não era uma questão de se, e sim de quando” para que a rede, controlada pela gestora Patria Investimentos, seguisse o caminho da concorrente.

No mesmo dia a Lavoro, emitiu nota para desmentir a situação posicionada pelo escritório e por outros profissionais com opiniões parecidas no Linkedin.