Uma semana antes do Natal, no dia 18 de dezembro, o empresário Luiz Biagi completa 80 anos não só de idade, mas (principalmente) de história. No seu caso, empresário não serve só como um título genérico. Fundador e executivo em várias companhias, ele assentou vários tijolos na construção do legado dos Biagi à região de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, e ao País.

Assim como para outros membros do clã, a história de Luiz Biagi começa antes mesmo do seu nascimento, com a chegada de seu avô, Natale, a Santos no ano de 1888, vindo da Itália. Seu pai, Maurilio Biagi, foi quem imprimiu a marca da família no mundo sucroenergético, com criar a Usina Santa Elisa, uma das mais importantes empresas brasileiras do setor sucroalcooleiro no século 20.

Por conta dessa forte ligação com a cana de açúcar, o jovem Luiz Biagi foi um dos idealizadores do Proálcool, programa que pretendia, há quase 50 anos, tornar o etanol um substituto da gasolina como combustível automotivo. Na defesa do projeto, teve contato direto com presidentes da República entre o final da década de 1970 e o começo dos anos 1980, e se projetou como uma liderança do setor.

Hoje, mantém elos mais distantes com o universo sucroenergético. Em sua fazenda, no município de Cravinhos, ainda produz cana, vendida para a usina de um dos primos. E atua como conselheiro de algumas empresas ligadas ao setor, como a fabricante de máquinas Zanini, fundada pelo seu pai juntamente com Ettore Zanini em 1950.

No dia anterior à entrevista com o AgFeed, na semana passada, o laço com a Zanini também ficou um pouco menos apertado. De forma discreta, como vive agora, Biagi transferiu as ações que detinha da companhia para a quinta geração da família.

Atualmente, o foco de Luiz Biagi está na Fazenda Cravinhos, que tem quase 200 anos de história – foi comprada no século 19 pelo Coronel Pereira Barreto e posteriormente deu nome ao município que fica a cerca de 20 quilômetros de Ribeirão Preto.

Ali, em uma área de 20 hectares “roubada” da cana, Biagi plantou uma improvável vinícola. As uvas já são colhidas, mas ainda está em construção a estrutura onde será feita a produção de vinhos e espumantes de “alta qualidade”, como descreve, que deve ficar pronta em 2024. Foram R$ 15 milhões investidos em toda a estrutura.

Dono de uma história ica e dinâmica, bem-sucedido, conhecido e respeitado até mesmo fora da “bolha” do agronegócio, Luiz Biagi poderia ser difícil de acessar e de lidar. ao contrário disso, é afável e aberto a conversas.

Biagi recebeu a reportagem do AgFeed na osteria que montou para receber visitantes e turistas dentro da Fazenda Cravinhos. Tem orgulho dos livros que tratam da sua história, da história da família.

Mas a maior empolgação aparece na hora de contar sobre a Fundação Primeiro Mundo, que há quase 30 anos auxilia financeiramente jovens a terem acesso à educação superior.

O senhor Luiz, como é chamado por todos, faz questão de cumprimentar a todos com um abraço, inclusive seus funcionários. Ao chegar, o gerente da Cravinhos, Anísio Rodrigues, foi muito bem recebido pelo patrão.

Para resumir o grande empresário com quem trabalha há cerca de 30 anos, Rodrigues, que toca toda a transformação pela qual a Cravinhos passa no momento, diz que Biagi é “muito humano”.

Na entrevista a seguir, Luiz Biagi fala de sua trajetória e dos planos que mantém ainda bastate ativos. Confira os principais trechos:

Gostaria de iniciar a conversa falando do seu momento atual. Como surgiu a ideia da vinícola e como ela está agora?
A ideia surgiu junto com a pandemia. Você ligava a TV e o que se ouvia era que nós morreríamos, especialmente os idosos. Então, pensei em fazer alguma coisa antes de morrer. Tive a inspiração de dois amigos. Um foi o Paulo Brito (o empresário Paulo Castro de Brito, conselheiro da Aura MInerals e proprietário da vinícola Guaspari, também do interior paulista). O outro foi o Beto Lorenzato (Luis Roberto Lorenzato, advogado e político ítalo-brasileiro que já foi também apresentador de TV).

Em que estágio está o projeto, como estão os investimentos?
Eu adquiri as mudas do Beto, são três variedades. Nós plantamos em 2020, começou praticamente ontem. Até 2035 temos um cronograma anual de trabalho. Claro, o planejamento depende do que vai acontecendo. Mas como dizia John Lennon, a gente planeja e o tempo passa. Se não planejar, o tempo passa do mesmo jeito. Estamos construindo uma fábrica com uma adega e um bar, com o objetivo de receber as pessoas. A ideia é que elas tenham toda a experiência da vinícola, com passeios a cavalo, de bicicleta.

E quando a fábrica fica pronta?
Fica pronta na próxima vinificação, em agosto de 2024. Aí conseguiremos produzir vinhos aqui. Hoje, produzimos em Caldas, Minas Gerais, com a nossa enóloga.

São Paulo não tem tradição na fabricação de vinhos. Como foi o desenvolvimento técnico para viabilizar uma vinícola em Ribeirão Preto?
É uma tecnologia que foi primeiramente desenvolvida pela Epamig (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais), chamada de dupla poda. Podamos duas vezes ao ano, no começo e no meio do ano, logo após a colheita, que é feita no inverno. Todas as videiras do mundo têm sua colheita no verão. Essa tecnologia é um divisor de águas. Permite a colheita de uvas muito sadias, monitorando o grau de maturação.

"Como dizia John Lennon, a gente planeja e o tempo passa. Se não planejar, o tempo passa do mesmo jeito"

A enóloga consegue colher a uva com o grau de açúcar que ela deseja. Isso resulta em um vinho nobre, que tem mais de 14% de grau alcoólico. Geralmente, as vinícolas não conseguem fazer esse tipo de vinho, e quando conseguem, é um verdadeiro alvoroço, fica caríssimo. Agora, nessa nova fronteira do vinho, que inclui também Minas Gerais e Goiás, temos essa qualidade garantida. Isso porque as uvas colhidas no verão, com muita chuva, têm problemas de maturação.

Essa tecnologia já é utilizada em outras vinícolas?
Algumas fazendas aqui de São Paulo e de Minas são pioneiras no uso dessa nova tecnologia. Algumas já ganharam medalha de ouro no Decanter Wine World Awards (prêmio que reconhece os melhores vinhos do mundo a cada ano). A Guaspari já ganhou esse prêmio. Até pouco tempo atrás, nenhum vinho brasileiro tinha conseguido esse reconhecimento. O estado de São Paulo, que começou muito recentemente, já ganhou duas medalhas de ouro. Você encontra esses vinhos em lojas de Londres. Em São Paulo, temos 25 vinícolas em construção, fora as que já estão operando.

Por que o senhor resolveu partir para o vinho? Quando se fala de Ribeirão Preto, de família Biagi, se pensa logo em cana de açúcar…
A motivação inicial foi homenagear meus antepassados. Aqui na vinícola, as vias têm os nomes deles (na entrada principal, a primeira placa visível tem o nome de Maurilio Biagi). Ainda na Itália, eles trabalharam em vinícolas, e quando chegaram ao Brasil, foram 11 anos como funcionários de fazendas de café.

É um investimento com carga emotiva, então?
É uma obra de gratidão. E o vinho simboliza união entre as pessoas. Além disso, só tem duas coisas em que os pequenos podem se equiparar aos grandes. Uma é o vinho, como o senhor Ferreira, que também ganhou o Decanter de Ouro (produtor de vinhos da Serra da Mantiqueira).

E qual é a outra?
A outra coisa é o cinema. Não é preciso ser de um grande estúdio para se fazer um grande filme. Com um pequeno orçamento, você pode ganhar um Oscar. É o contrário do que vivi no mundo corporativo, de muita competição. O vinho é uma luz. Mas eu não sabia disso, eu só queria homenagear a minha família. E é também um ato de humildade, porque depende de fatores que não dependem de nós.

"O vinho é uma luz. E é também um ato de humildade, porque depende de fatores que não estão no nosso controle"

E qual a sua expectativa para a produção de vinho?
Pensamos em algo em torno de 150 mil garrafas por safra. Temos uma área de 20 hectares na fazenda. E uma recomendação que recebi do meu amigo Paulo Brito é não fazer algo muito grande. Tiraria muito dessa parte contemplativa de produzir vinho. Voltaria para a rotina corporativa, industrial. Quero atender esse conselho e ficar nesse tamanho médio, sem prejuízo, para não transferir um ônus aos meus filhos.

Seus filhos abraçam a ideia da vinícola?
Sim, e eles contribuem muito. Um deles ajudou muito aqui na decoração da fazenda.

O senhor acabou de passar sua participação na Zanini. Mas como é a sua atividade empresarial? E na produção de cana?
Eu ainda forneço cana para meus primos, que têm uma usina bem consolidada próxima da fazenda. Sou ainda do conselho de algumas empresas. Eu fico mais aqui na fazenda, que é administrada pelo Anísio. Temos um family office e outras empresas que são tocadas pelos meus filhos.

E como foi a sua participação nos negócios da família antes de ficar mais concentrado aqui na vinícola?
Meu pai direcionou cada filho para uma atividade diferente. E eu fui colocado na Zanini. Durante muitos anos, trabalhei lá. Após o falecimento do meu pai, houve algumas divergências familiares sobre a continuidade dos negócios. Eu então saí da empresa e comecei uma carreira solo.

Em que área?
Adquirimos algumas franquias de varejo de moda e minha esposa cuidava de lojas de marcas como Triton, Benetton, Fórum, SideWalk. Eu montei concessionárias de automóveis. Viemos morar aqui em Cravinhos e saímos de todos os negócios da família. Estou nessa carreira solo há 40 anos. Ainda como acionista das empresas da família, mas totalmente fora das decisões.

E como foi sua chegada aqui na fazenda?
Era uma área abandonada. Tinha uma senhora morando aqui, herdeira da família. Tinha muitas áreas arrendadas para várias culturas diferentes. Foram anos difíceis, porque tive que negociar com as pessoas, sem criar problemas. Tive que fazer um trabalho grande de reconstrução e recuperação, construir escolas para as crianças das famílias dos funcionários. Trouxe um parceiro japonês e começamos produzindo frutas. Também tinha uma produção de frangos, um pouco de cana.

"No Brasil, não temos um programa sério de preservação, especialmente na Amazônia. Então, dependemos da atuação do cidadão mesmo"

O senhor também foi um dos idealizadores do Proálcool, certo?
Sim. Na época nós, um grupo de empresários e produtores de cana, inclusive a família Ometto, entregamos ao presidente Geisel (Ernesto Geisel, presidente da República entre 1974 e 1979) um trabalho chamado Fotossíntese como Fonte Energética. Eu fui entregar em Brasília juntamente com o Lamartine Navarro (empresário que foi um dos líderes do Proálcool no setor privado). Na época, lutamos muito pelo etanol.

Como vê o momento do etanol, depois de tantos anos? Ainda tem interesse pelo setor?
Agora, eu estou envolvido muito fortemente em uma empresa, a Sebigas Cótica, para implementação de plantas de biogás e biometano. A ideia é que os caminhões que transportam etanol sejam movidos a biometano. O caminhão a etanol não deu certo, os motores não se adaptaram. Com o biometano, os motores são compatíveis. Eu faço parte do conselho desta empresa.

Como avalia a nova tendência de agricultura regenerativa e a preocupação com a sustentabilidade das propriedades rurais?
O Brasil é o terceiro produtor agrícola do mundo. E os produtores são muito abertos a novas tecnologias. Por exemplo, nós estamos testando aqui na fazenda produtos para substituir insumos químicos, porque a ideia é fazer, no futuro, vinhos orgânicos. Vem muita gente ver, querendo saber o que é. O Brasil será líder mundial em tecnologia agrícola, em pouco tempo. A nova geração é muito ágil, muito aberta. Os brasileiros estão dispostos a viajar para saber das novidades.

E como atua aqui na fazenda em relação à preservação do meio ambiente em volta?
Temos uma área de preservação maior que a exigida aqui no estado de São Paulo. Aqui nós temos muitas mudas nativas e doamos para várias áreas aqui da região. No Brasil, infelizmente, ainda não temos um programa sério de preservação, especialmente na Amazônia. Então, dependemos da atuação do cidadão mesmo. Aqui, nós temos mais ou menos 30% de área preservada e uma bióloga que trabalha somente com isso. Ela planta as mudas, retira as sementes para doar mudas.

Qual a área total da propriedade?
São pouco mais de 700 hectares. Não é uma propriedade grande. Ainda estamos restaurando áreas desmatadas. E temos um trabalho para restaurar as espécies nativas, e a fauna está voltando também. Já vi aqui na propriedade jaguatirica, bicho-preguiça…

Gostaria que o senhor falasse um pouco da Fundação Primeiro Mundo, já que muito do que estamos falando envolve educação.
A fundação tem vários níveis de atuação. Para as crianças, temos uma creche tocada por freiras franciscanas. Aí temos a escolinha para as crianças, à tarde. Os maiores podem fazer a lição de casa com a professora. Temos dentista. Tudo gratuito para os funcionários. E para os jovens de fora, temos um programa para quem está no ensino médio e não tem recursos para fazer faculdade. Temos um processo seletivo, que inclui entrevista com os pais, da qual eu participo pessoalmente, e financiamos uma parte dos custos.

Quantas pessoas já foram ajudadas pela fundação?
Não temos um balanço exato assim, mas é na casa de milhares. A Fundação tem mais de 30 anos. Eu não sei ao certo o número de pessoas, porque muitos que não conseguem passar nos parâmetros da Fundação, eu ajudo pessoalmente.

Como é a reação das pessoas que visitam a Fazenda Cravinhos?
Elas ficam surpresas, no primeiro momento. Quem vem aqui sente um pouco do que senti quando fui em uma vinícola na Itália. Eu não esperava nada, fui pensando em aprender coisas novas. Uma moça nos recepcionou e mostrou toda a metodologia que usam. Uma casa só para classificar insetos. Eu fiquei fascinado e um pouco envergonhado. Acho que quem vem, fica um pouco assim. Com a sensação de que pode fazer mais.

Às vezes é um fazendeiro. E da minha parte, como produtor de vinho, eu fico até inseguro, para saber se as pessoas gostam do vinho, do ambiente. Estou colocando ar condicionado, para tornar mais confortável em dias de muito calor. Mas, ao mesmo tempo, muita gente vem aqui para fugir do ar condicionado. Mas tenho gostado muito.