O uso do etanol brasileiro como nova rota de produção do combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês) daria um destino mais nobre ao etanol de cana ou de milho, com a perspectiva de um vasto mercado consumidor para o produto transformado.

O etanol nunca se tornou commodity global porque apenas Brasil e Estados Unidos produzem o biocombustível em larga escala e os mercados consumidores temem ficar dependentes de apenas dois produtores.

No caso do SAF, a produção seria pulverizada com várias matérias-primas e o mercado de combustível de aviação já é global.

Na avaliação de líderes empresariais do setor de etanol reunidos no AgroForum, promovido pelo BTG Pactual, nesta segunda-feira, a infraestrutura brasileira utilizada para transporte e exportação do etanol seria a mesma a ser utilizada para o SAF.

As refinarias da Petrobras no caminho entre as usinas e o Porto de Santos seriam os hubs de producão do novo combustível menos poluente em comparação ao querosene derivado do petróleo hoje utilizado nas aeronaves.

A avaliação é de Ricardo Mussa, que acaba de deixar o posto de CEO da Raízen, onde estava há quatro anos, e assumiu um novo cargo dentro do grupo de Rubens Ometto, como presidente da Cosan Investimentos, responsável pela alocação de capital do grupo.

Ele participou do painel “Transformando o setor energético: papel do SAF e do etanol”, que parte da programação do AgroForum.

"O SAF virá com o mandato, vai ser colocado no preço e o consumidor vai pagar a conta", resumiu Mussa.

De acordo com o executivo da Cosan, governos ao redor do mundo têm percebido que o setor aéreo não vai conseguir eletrificar suas frotas – um exemplo de solução para descarbonizar a malha – no curto prazo.

"O avião tem a vida útil de 30 anos, então mesmo que comece hoje, demora muito tempo", afirmou Mussa.

Dessa forma, os custos da transação devem ser repassados ao passageiro que, em sua avaliação, tem poder aquisitivo mais alto.

A Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata) estima que, para se descarbonizar todo o setor aéreo, serão necessários US$ 128 bilhões.

Ao redor do mundo, o SAF começa a ser adotado na Europa e nos Estados Unidos e deve ser uma importante ferramenta para a redução de emissões de gases do efeito estufa,

No continente europeu, países como Noruega, Suécia e França criaram mandatos de mistura de SAF ao combustível fóssil.

Já nos Estados Unidos, a ideia é que a utilização do SAF alcance ao menos 3 bilhões de litros por ano até 2030.

Por enquanto, o Brasil ainda não produz SAF comercialmente, mas é tido como um importante player no futuro pela diversidade de matérias-primas que tem e know-how na produção de biocombustível.

Recentemente, o próprio CEO da Airbus, Gilberto Peralta, afirmou que o Brasil poderá ser "a Arábia Saudita" do SAF.

Um impulso para a exploração comercial do biocombustível foi a recente aprovação do projeto Combustível do Futuro, sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Operadores aéreos terão de reduzir as emissões de gases do efeito estufa geradas nos voos domésticos utilizando SAF.

A redução começa em 1% em 2027 e, ao longo de uma década, vai subindo gradativamente até alcançar 10% em 2037.

Mussa aposta que o País produza SAF para exportação, de olho na demanda externa. "Europa, principalmente Estados Unidos, e Ásia, vão ter demanda suficiente de SAF para o Brasil exportar", afirmou ele.

Ele também acredita que a produtora de SAF no Brasil deve ser Paulínia, município do interior de São Paulo, a 119 quilômetros da capital paulista.

"É o melhor lugar do Brasil, é onde tem um hub de etanol, porque lá você tem todo o etanolduto da Logan chegando e você tem conexão com Santos”, diz ele.

Os projetos anunciados até o momento envolvendo a produção de SAF estão localizados em outras cidades.

A Petrobras pretende instalar plantas de produção na Refinaria Presidente Bernardes, em Cubatão (SP), e no polo Gaslub, em Itaboraí (RJ).

Em junho, a Copersucar, líder mundial na venda de açúcar e etanol, fechou uma parceria com a Geo biogas&carbon para produzir SAF a partir de biogás. Ainda não estava definido o local onde a usina seria instalada, mas a ideia é que fosse junto a uma das 37 usinas da Copersucar, que tem predominância em São Paulo.

A Acelen quer produzir SAF na Bahia, na refinaria de Mataripe, na cidade de São Francisco do Conde.

Mussa criticou também o modelo atual de produção do combustível sustentável existente hoje, em que o etanol brasileiro é enviado para países, como os Estados Unidos, onde é transformado em SAF.

"O nosso etanol sai do Brasil, vai de Piracicaba para Santos, se põe em um navio, vai lá para Flórida, aí põe em um outro navio, vai para a Geórgia, transforma em SAF e aí vai para a Europa. É uma idiotice, do ponto de vista de logística, você fazer toda essa rota", afirma.

"O Brasil tem uma super condição (de exportar SAF), porque a cada 1,7 litro de etanol, você faz 1 litro de SAF. É uma idiotice você exportar etanol para fazer SAF na Europa.”

Para Rafael Abud, CEO da FS, que também participou do painel, o grande desafio do SAF é equacionar o preço.

"Se você comparar o biocombustível de aviação, seja na rota de óleos e gorduras, ou na rota mais nova, que está começando a se desenvolver agora, que é a partir do etanol, você tem ainda um gap de preço muito relevante entre o combustível fóssil e o renovável", afirma.

Dessa forma, segundo ele, diferentes formas vão sendo encontradas ao redor do mundo para viabilizar a transição energética.

No caso americano, Abud cita mecanismos criados pela Inflation Reduction Act, lei criada pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em 2022, que prevê uma série de ações de incentivo, totalizando US$ 391 bilhões em investimentos em energia limpa, e a possibilidade de uso de créditos de carbono em mercados voluntários.

"Você vai empilhando uma série de benefícios e, com isso, consegue fechar essa conta", resume ele.

A Summit Agricultural Group, sócia da FS, possui projeto de uma planta em Houston, no Texas, que deve começar a operar em 2026 e utiliza incentivos do governo americano.

Ele lembrou também que a Europa optou por uma outra rota, criando mandatos obrigatórios de utilização de SAF por parte das companhias aéreas.

"Lá você tem o sistema de comercialização de trading de emissões, que vai ajudar a pagar um pedaço dessa conta, mas são mandatos.

Mussa disse que é difícil fazer investimentos com base apenas em mandatos. “Mas esse investimento virá, você terá de sentar na mesa”, afirma.

Etanol não será commodity global

O Brasil é o segundo maior produtor de etanol feito a partir de cana-de-açúcar do mundo, só ficando atrás dos Estados Unidos, com 35,6 bilhões de litros por ano.

Mas os painelistas não acreditam que, apesar dos volumes de produção expressivos, o etanol brasileiro necessariamente se transforme em uma commodity global no futuro – ao contrário do que pode acontecer com o SAF.

Para Mussa, a adoção do biocombustível brasileiro em outros países criaria uma dependência que as demais nações não estão dispostas a aceitar.

O executivo da Cosan lembrou que, em uma conversa com o ministro de Minas e Energia do Japão, perguntou por que os japoneses não adotavam o etanol como combustível e ouviu que o país não queria depender do Brasil para abastecer sua frota.

“É mais fácil (o Japão) depender do petróleo. A OPEP tem 15 países, do que depender de um único país ou de depois países (como no caso do etanol)”, afirmou.

Abud, da FS, também disse acreditar que o etanol não tenha capacidade de ser uma commodity a ser exportada para o mundo todo, mas lembrou das vantagens que o biocombustível traz para os planos de descarbonização dos países. “É um mercado mais speciality do que um mercado de commodity”, afirma ele.

“A gente vê que os mercados de exportação estão crescendo, estão demandando, e cada um demanda uma particularidade. É até difícil de você comoditizar o produto pelas especificações técnicas diferentes e necessidades de certificação diferentes, e diversas metodologias – que talvez sejam harmonizadas talvez não – de como você vai contabilizar a pegada de carbono desse combustível.”

Tomas Manzano, CEO da Copersucar, que também participou do painel, avalia que o papel do etanol é servir como matéria-prima de produtos nobres e com alto valor agregado.

“Um aspecto interessante do etanol, que tem uma valorização especialmente nos mercados de importação, é a baixíssima intensidade de carbono. Quando a gente olha os combustíveis líquidos hoje em dia, gasolina com 85 gramas de CO2 por megajoule, óleo diesel com 80, o etanol de cana-de-açúcar tem 22, 25 gramas”, afirmou.