O etanol de trigo finalmente está saindo do papel no Rio Grande do Sul, mesmo com as enchentes que arrasaram boa parte do estado há pouco mais de três meses.

A primeira usina do País que vai produzir o biocombustível a partir de cereais de inverno, pertencente à empresa CB Bioenergia, deve começar a operar já em dezembro na cidade de Santiago, entre a região central do estado e a fronteira com a Argentina.

Outras companhias, como a Be8 (ex-BSBios) e a FZ Bioenergia, também começaram a botar de pé suas estruturas. Ao todo, estão previstos investimentos de pelo menos de R$ 1,9 bilhão.

A enchente não afetou os planos, segundo as empresas. A maioria dos projetos está situada em regiões que foram menos afetadas pelas chuvas.

A ideia das companhias gaúchas é repetir o modelo bem sucedido das usinas de etanol de milho no Centro-Oeste, aproveitando a produção local de trigo e outras culturas de inverno como triticale, sorgo e cevada para fabricar etanol no Rio Grande do Sul, que hoje não produz o biocombustível em escala comercial.

A única usina que fabricava etanol a partir da cana-de-açúcar encerrou suas atividades no ano passado, após dificuldades financeiras – e, mesmo quando estava operando, era responsável por apenas 2% de todo o etanol consumido no estado, segundo informações do jornal Zero Hora.

Praticamente todo o biocombustível consumido no Rio Grande do Sul é trazido dos grandes centros produtores como São Paulo e Mato Grosso do Sul, distantes do extremo sul do País.

E o custo da logística vai parar na bomba: sai caro encher o tanque com etanol nos postos gaúchos, onde os consumidores chegam a pagar valores 90% mais altos que a gasolina, segundo estimativas do Itaú BBA.

Como a cana-de-açúcar tem uma produção muito pequena no estado, as empresas gaúchas resolveram apostar suas fichas no trigo, um dos carros-chefes da agricultura local.

O que vem por aí

Usinas que prometem produzir biocombustíveis em nível regional não são exatamente uma novidade no Rio Grande do Sul, lembra o engenheiro agrônomo Valdir Zonin, incentivador de projetos do tipo há mais de uma década e sócio da FZ Bioenergia, uma das empresas que pretendem instalar plantas de biocombustível no estado.

“Eu acompanhei 12 usinas que tentaram fazer etanol no estado (ao longo do tempo) e, sem escala, todas quebraram, porque não tinham incentivo”, diz ele.

Há três anos, em 2021, veio o empurrãozinho que faltava, na sua avaliação: após um longo período de discussão, o governo do Rio Grande do Sul criou o programa Pró-Etanol, trazendo possibilidade de crédito presumido de ICMS para biocombustível produzido por empresas gaúchas.

Foi esse projeto que deu impulso à instalação das primeiras estruturas de etanol de trigo no estado.

De todas as plantas desenvolvidas até o momento, a maior é a usina da Be8, maior produtora de biodiesel do País, que começou a ser construída este mês em um terreno de 63 mil metros quadrados em Passo Fundo, no Norte gaúcho, a 289 quilômetros de Porto Alegre.

A planta terá capacidade de produção de 220 milhões de litros de etanol por ano e vai processar 525 mil toneladas de cereais como trigo, triticale e milho por ano.

A planta será flex, podendo fabricar tanto etanol anidro, que pode ser adicionado na gasolina, como também o hidratado, que vem diretamente da bomba.

A produção da unidade vai suprir cerca de 20% de todo o etanol consumido no Rio Grande do Sul. Mas a Be8 quer ir além do biocombustível, segundo Erasmo Carlos Battistella, o CEO da empresa.

“Eu tenho dito que não é uma fábrica e sim um parque fabril, que vai abrigar quatro fábricas e produzirá alimento humano (glúten vital), energia renovável (etanol) e alimento animal (farelo) com muita inovação, o que coloca Passo Fundo e o Rio Grande do Sul em destaque nessa área”, afirma.

Serão produzidas 155 mil toneladas/ano de farelo de trigo, o DDGS (distillers dried grains with solubles, em inglês), coproduto da fermentação do etanol que é rico em proteína e pode ser adicionado à alimentação de animais, além de 35 mil toneladas/ano de glúten vital, concentrado proteico extraído de cereais.

O investimento total para levantar toda a estrutura será de R$ 1 bilhão. Boa parte desse valor virá do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que vai financiar R$ 729,7 milhões. O restante do aporte será feito com recursos próprios da Be8.

Em Santiago, a CB Bioenergia preferiu adotar outra estratégia para sua usina, empreendimento que exigiu um investimento de R$ 100 milhões do empresário e produtor rural Cássio Bonotto, proprietário da empresa. O projeto está sendo construído desde 2022.

A unidade industrial não vai produzir o etanol anidro, e vai se concentrar na fabricação de etanol hidratado, visando o mercado de aviação agrícola, e de álcool neutro, para atender indústrias de bebidas e cosméticos.

“No Rio Grande do Sul, 50% da aviação agrícola consome etanol, que vem de fora do estado. Para mim, faz mais sentido vender direto para a aviação, agregando mais valor, do que vender o anidro por um preço mais baixo para ser misturado na gasolina”, afirma Bonotto.

A expectativa da empresa é de produzir cerca de 13 milhões de litros de etanol por ano. A CB também pretende fabricar em torno de 30 mil kg de DDG/dia e 20 mil metros cúbicos de CO2/dia. Está prevista ainda a produção de álcool 70% e em gel – e já existem pré-contratos firmados para esse tipo de produto, segundo Bonotto.

O produtor teve a ideia de levantar a estrutura há seis anos, em 2018, quando chegou a cogitar deixar de lado as plantações de trigo, após várias safras ruins consecutivas.

“Mas, pior que plantar o trigo, era não plantar, porque não dá para botar todos os custos da propriedade na conta da soja. Então, eu comecei a pesquisar alternativas. Comecei a visitar usinas de grãos no Centro-Oeste, onde eles tinham o mesmo problema com o milho safrinha antigamente, e me espelhei neles”, afirma.

Em Charqueadas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, a Vinema Biorefinarias do Sul, do engenheiro de produção Vilson Neumann Machado, promete erguer uma estrutura fabril com capacidade de produção de mais de 600 milhões de litros de etanol carburado por ano, a partir de matérias-primas como arroz, sorgo, triticale, batata doce, trigo, entre outras.

"Estamos fazendo um esforço para iniciar (as obras) ainda em 2024 ou início de 2025", afirma Machado.

O projeto da usina, no entanto, está no papel há anos e anteriormente estaria sediado em Guaíba, também nos arredores da capital gaúcha. Ao longo da década passada, a Vinema já havia tentado criar plantas de produção de etanol a partir de arroz e outros cereais, na região Sul do estado, mas o empreendimento jamais se concretizou.

Com as bênçãos de Alckmin

Além das usinas da Be8 e da CB Bioenergia, que estão sendo construídas, há um outro projeto de grande porte prestes a sair do papel.

Viadutos, pequena cidade de 4,7 mil habitantes no Norte gaúcho, perto da fronteira com Santa Catarina, recebeu, em janeiro, um visitante incomum: o vice-presidente Geraldo Alckmin – que, no entanto, não estava passeando de férias.

Alckmin foi ao município para inaugurar a pedra fundamental da usina de etanol da FZ Bioenergia – empresa que tem como um dos sócios o ex-prefeito de Porto Alegre José Fortunati. Meses antes, em agosto do ano passado, Alckmin também havia participado do anúncio da fábrica da Be8, em Passo Fundo.

Com começo de operações previsto para o segundo semestre de 2026, a unidade industrial da FZ terá capacidade prevista de 150 milhões de litros de etanol anidro por ano. Serão processadas 1 mil toneladas/dia de matérias-primas como trigo, triticale, cevada, sorgo e milho.

O investimento estimado para a instalação da fábrica está orçado em R$ 800 milhões. Os primeiros trabalhos físicos no terreno de 23 mil metros quadrados onde será instalada a unidade devem começar no início de setembro, com a criação de poços artesianos, segundo Valdir Zonin, um dos proprietários da FZ.

Em paralelo, a empresa está encomendando equipamentos para a futura usina. A FZ já firmou contratos com as empresas Gratt Indústria e Tecnologia Ambiental, de Capinzal (SC), e HPB Engenharia e Equipamentos, de Sertãozinho (SP), que vão fabricar caldeiras e secadores para a unidade industrial.

No mês passado, também foi assinado um acordo com a empresa indiana Praj Industries – que também fez o projeto da usina da Be8 – para o desenvolvimento tecnológico e de engenharia da planta.

Zonin ainda não arrisca cravar, porém, a definição de uma data para o começo das obras da estrutura da usina em si. “Os equipamentos maiores dependem de estarem construídos para serem deslocados até aqui. A previsão é que isso aconteça no primeiro semestre do ano que vem”, afirma.

As áreas ociosas do trigo

Para obter matéria-prima, as empresas querem incentivar que os produtores ocupem áreas ociosas em suas propriedades.

No estado, muitos produtores plantam soja no verão, mas ficam com receio de cultivar o trigo no inverno pelas dificuldades de comercialização e vulnerabilidade às oscilações climáticas – o cereal é colhido a partir de setembro, na primavera, estação do ano em que chove muito no estado.

“A cultura de inverno é de risco e, mesmo nos anos bons, às vezes não dá tudo o que o produtor gostaria de ter de retorno financeiro, por mais que o trigo ajude a diluir os custos fixos da propriedade ao longo do ano”, afirma Hamilton Jardim, presidente da Comissão do Trigo da Federação de Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul).

Somente na safra 2023/24, por exemplo, o estado deve ter alcançado uma produção de 4,19 milhões de toneladas de trigo, salto de 44,5% em relação ao ciclo anterior, segundo a Conab.

Mas mesmo com um volume relevante, a área ocupada pelo trigo recuou 10,6% no mesmo período, chegando a 1,34 milhão de hectares.

Para efeito de comparação, a área ocupada pela soja no Rio Grande do Sul na mesma safra foi quase seis vezes maior: 6,7 milhões de hectares, também de acordo com a Conab.

Um novo mercado

Para Jardim, a demanda de matéria-prima por parte das usinas deve representar, no futuro, mais uma possibilidade de comercialização dos cereais de inverno para o produtor.

Como ainda não há nenhuma usina em atividade, ele atenta para as dúvidas no ar sobre a rentabilidade que os produtores poderão ter ao apostar nas cultivares de trigo específicas para o etanol.

“As usinas vão ter de convencer o produtor que o custo de produção será parecido com o da produção de trigo para panificação e de que vai haver um diferencial financeiro (na produção específica para o biocombustível). Por enquanto, tudo isso ainda está muito incerto”, afirma Jardim.

Valdir Zonin, da FZ Bioenergia, diz que a recepção dos produtores tem sido “ótima” nas tratativas iniciais.

“A grande maioria do nosso trigo é de má qualidade para panificação. Quando a gente fala que nós temos condições de pagar R$ 10 a mais por cada saco desse trigo, isso interessa aos produtores. Vamos dar mercado até mesmo para cultivos como o do sorgo, que hoje não tem mercado”, afirma.

A julgar pelas estratégias, cada empresa deve conviver com uma realidade de mercado própria na hora de obter suas matérias-primas.

A FZ, por exemplo, pretende trabalhar exclusivamente com 10 mil agricultores familiares dos 42 municípios da região-sede da usina, incentivando diferentes cultivos para que sempre haja disponibilidade de matéria-prima, segundo Zonin.

“Vamos fomentar mais milho no verão, vamos fomentar o sorgo safrinha que vem logo após, queremos também organizar duas safras de inverno, uma é a cevadinha precoce, plantada em fevereiro e colhe no fim do junho, e depois entra com mais uma safra de trigo, triticale, cevada e centeio, o que já se conhece”, diz ele.

Já a Be8, mais consolidada no mercado, pretende mesclar diferentes tipos de produtores para obter os grãos.

“Uma parte vamos conseguir por meio de integração com produtores, outra parte com cooperativas e cerealistas, e outra fatia com grandes empresas que já são nossas clientes”, disse Erasmo Carlos Battistella, CEO da companhia, em entrevista ao AgFeed em março.

A companhia fechou também um acordo de cooperação técnica com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) para o desenvolvimento de novas cultivares de triticale via melhoramento genético.

Há dois anos, a Be8 já havia fechado um acordo de cooperação técnica comercial com a Cooperativa Agrícola Mista General Osório (Cotribá), de Ibirubá (RS), para fomentar a produção do cereal a partir de variedades comerciais de trigo específicas para etanol e DDGS, em parceria com a empresa Biotrigo Genética.

A CB Bioenergia, por sua vez, deve aproveitar o trigo vindo das propriedades de seu proprietário, Cássio Bonotto, em um primeiro momento.

“Mas não necessariamente só virá das minhas propriedades, podemos comprar de outros produtores também. Em alguns momentos, a usina poderá rodar [a partir do] trigo que eu produzo. Em outros momentos, ela poderá produzir com milho, que eu não produzo, e aí terei de comprar”, afirma ele.