O Rei do Gado, personagem vivido pelo ator Antonio Fagundes em novela de sucesso nos anos 1990, foi um grande sucesso nas telas da Rede Globo. Para mais de 30 mil investidores brasileiros, porém, a trama ainda não acabou.

Iludidos por campanhas publicitárias protagonizadas pelo ator Antonio Fagundes, o mesmo que fazia o papel título no folhetim, eles embarcaram no que até hoje é o maior esquema de fraude financeira do agronegócio brasileiro.

Eles são vítimas dos proprietários da companhia Fazendas Reunidas Boi Gordo, que há quase três décadas trava uma guerra com investidores, após a descoberta de que seu modelo de negócios de aparente sucesso escondia uma verdadeira pirâmide financeira.

O esquema ruiu em 2001 e os cotistas que investiram recursos na Boi Gordo perderam valores que, conforme a estimativa, variam entre R$ 3,9 bilhões e R$ 6 bilhões.

Porém somente em 2019 foram autorizados a realizar um cadastro no site da Massa Falida de Fazendas Reunidas Boi Gordo S.A. e Coligadas para receberem de volta pelo menos uma parte do montante investido.

O último relatório divulgado no site pelo escritório de advocacia Tapxure & Severino, de São Paulo, responsável pelo cadastramento e validação dos credores, informou que 23.057 investidores fizeram pedidos na plataforma.

Mas somente 11 mil foram pagos, declara o administrador judicial da Boi Gordo, Gustavo Henrique Sauer de Arruda Pinto, no mesmo site.

O volume de processos e a demora na tramitação faz do caso um prato cheio para o desenrolar de novas tramas e tentativas de golpe.

Logo na página inicial do site da Massa Falida consta um alerta, em letras maiúsculas, sobre correspondências enviadas por email para credores com tentativas de cobrança de custas por terceiros. “A Massa Falida não encaminha correspondências ou notificações aos credores”, destaca.

Diversas entidades foram criadas sob o pretexto de auxiliar os cotistas da companhia a reaverem os valores investidos. Uma delas, a Associação dos Lesados pela Fazenda Reunidas Boi Gordo (ALBG), de 28 de agosto de 2020, afirma, em seu endereço eletrônico, já ter pago mais de 5,6 mil clientes e ter outros de 6 mil clientes aptos a receber o valor perdido com o investimento. Logo de início, aponta: as anuidades de 2023 já foram enviadas aos associados.

“O nosso associado credor receberá, nesta primeira fase, algo em torno de 48% daquilo que investiu inicialmente, sem correção monetária, descontados sobre este valor os honorários dos advogados (em torno de 7%) e as anuidades eventualmente atrasadas”, declara a Associação.

Arruda Pinto é o único responsável pelo pagamento dos investidores, segundo o Ministério Público do Estado de São Paulo. O AgFeed entrou em contato com o advogado, que preferiu, no entanto, não se manifestar sobre o assunto.

Também os representantes do escritório Taxpure & Severino não quiseram dar entrevistas. Uma pessoa que trabalha no coworking onde está localizada a firma de advocacia disse apenas que “a cada dia chegam mais pedidos de investidores, não dá para saber quantos boletins de cadastramento serão feitos”.

O último publicado, em janeiro passado, é o 78º lote de cadastro – esses boletins deveriam, segundo diz o site, ser feitos quinzenalmente.

Desfalques em série

O montante usado para pagar os investidores é fruto da venda, via leilões, de ‘ativos’ da Boi Gordo. A companhia era composta por 14 fazendas distribuídas pelos estados de Mato Grosso e São Paulo. O site da empresa informa que, até o momento, somente algumas propriedades foram vendidas.

A venda das fazendas começou por volta de 2014. Na ocasião, o promotor de Justiça de Falências, Eronides dos Santos, do Ministério Público de SP, comemorou o início dos leilões.

Em nota, porém, declara que “crimes falimentares - aqueles caracterizados por fraudes a credores - dificilmente chegam a ressarcir os investidores prejudicados”.

Na longa jornada desde a quebra da Boi Gordo os credores enfrentaram uma série de frustrações. Uma delas foi a perspectiva de recuperação da empresa quando, após a descoberta do golpe, ela foi adquirida em 2003, já concordatária, a dois grupos do Sul do país, Golin e Sperafico. A falência da Boi Gordo foi decretada pouco tempo depois, em 2004.

Revelou-se, então, que havia nomeado como gerente um funcionário fantasma e que parte dos bens sob sua gestão havia sido vendida, com os recursos desviados para o patrimônio pessoal de seus sócios, em um esquema de lavagem de dinheiro. Recuperados na Justiça, esses bens têm sido, nos últimos anos, liquidados em leilões.

O rei do gado

Enquanto brilhava na novela ‘Rei do Gado’, em 1996, o ator Antônio Fagundes convidava os telespectadores, em propaganda para aBoi Gordo, a conhecer o negócio da empresa. “Há dois anos, investi em gado e realizei um sonho, me tornar fazendeiro. Obtenho uma das maiores rentabilidades do mercado”, dizia no comercial.

O negócio, em teoria, consistia na venda de contratos de investimento coletivo (CICs), no qual o dinheiro recebido era usado na criação de bezerros e engorda dos bois. Aos investidores, o criador da Boi Gordo, Paulo Roberto de Andrade, prometia um rendimento de aproximadamente 4,25% ao mês - no mesmo período, a poupança rendia 1,25%, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

O retorno da companhia vinha com uma parcela da venda dos animais. Então, atraídos pela oportunidade de rendimento alto e aparentemente seguro, vários brasileiros realizaram investimentos. Entre eles, o autor de telenovelas Benedito Ruy Barbosa e a atriz Marisa Orth - o AgFeed não conseguiu contato com os artistas para saber se já foram ressarcidos.

Na prática, os investidores eram pagos com recursos de novos participantes no esquema e não da venda dos bois. “A fraude também consistia em desviar recursos dos investidores para a compra de fazendas e o enriquecimento do controlador da empresa”, apontam Thomaz Wood e Ana Paula Paulino da Costa, pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Após a pirâmide ser descoberta, a Boi Gordo entrou com pedido de concordata em 2001. “A empresa protagonizou um dos maiores casos de falência do País, envolvendo esquema de pirâmide financeira”, declara o Ministério Público de São Paulo, em nota.

Paulo Roberto de Andrade, criador do esquema, não foi punido criminalmente. Isso porque o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou a ação penal contra ele e reconheceu a prescrição do processo. Para ele, a novela acabou. Para seus credores, ainda não.