Os franceses passam mais tempo à mesa do que qualquer outra nação do mundo. Sua gastronomia foi alçada pela Unesco como herança cultural intangível da humanidade.

Nada mais justo, assim, do que promover a arte de cozinhar e comer bem quando se trata de apresentar o país ao mundo durante o maior espetáculo do esporte mundial, as Olimpíadas.

Em Paris serão servidas mais de 13 milhões de refeições, sanduiches e snacks em 40 diferentes espaços para mais de 15 mil atletas, 26 mil profissionais de comunicação e 45 mil voluntários, além de dezenas de milhares de espectadores. Tudo isso em pouco mais de duas semanas.

Os números superlativos seguem com a presença de pessoas de 208 países e regiões do mundo sendo servidas 24 horas por dia em todos os dias do evento.

Uma verdadeira máquina de logística e preparação de alimentos com ambições ambientais e sociais: alimento de “baixo carbono”, baixo desperdício; ausência de embalagens plásticas e alimentos com “raízes locais”.

Está assegurado que 100% dos ovos, beefs, produtos lácteos, frutas e legumes da estação serão franceses. Cervejas, vinhos e cidras, 100% franceses, claro. Todos os alimentos responderão a uma dezena de certificações socioambientais.

Tudo certo. Um país mostrando ao mundo seus valores e alinhando-se à agenda da modernidade. E tudo isso deve ser prestigiado.

No entanto, são os franceses. E da França sempre vem um certo exagero. O país teve inquestionável influência global e importância histórica na formação das instituições, do pensamento e da cultura da civilização ocidental.

Desde o século XVII até a II Guerra Mundial foi ator fundamental para o estabelecimento da ordem europeia e mundial. Deixou suas marcas na formação do mundo.

Mas a Grande Nation que o General Charles De Gaulle buscou restaurar e reconstruir após a Guerra e a fundação da V República, em 1958, nunca mais foi a mesma.

Dentro do processo de integração europeia passou a depender da aliança com a Alemanha para manter seu prestígio continental. Uma espécie de hipocrisia se tornou marca registrada do país.

É conhecido o desdém que os franceses fazem dos norte-americanos, embora talvez se esqueçam de quem liderou a libertação de sua terra dos nazistas.

Quando De Gaulle decidiu se retirar da OTAN, em 1960, pediu ao Secretário de Estado do Presidente Kennedy, Dean Rusk, que retirasse todos os seus homens de território francês. Rusk perguntou: “Isso inclui aqueles que estão enterrados aqui?”.

É frequente, ainda atualmente, o desconforto dos franceses ao constatar que o idioma do direito, da literatura e da diplomacia. Eles insistem em exigir que seu idioma seja utilizado em encontros internacionais e entendido por visitantes de todo o mundo.

É interessante observar a resistência e até certa arrogância em aceitar que foi o inglês que se tornou o idioma internacional e que é o idioma de britânicos, norte-americanos, australianos, neozelandeses, indianos e muitos outros que também ajudaram a França a recuperar sua liberdade.

Mesmo os canadenses vivem a frequente incoerência de manter sua unidade justamente porque uma minoria franco-canadense reivindica a autonomia “québécois” de tempos em tempos.]

Os franceses gostam de se apresentar como nação multiétnica e multirracial. Mas desde a sangrenta guerra de independência da Argélia é difícil ignorar a maneira como tratam suas ex-colônias e o modo como vivem os imigrantes de várias colônias africanas, asiáticas e caribenhas de diferentes gerações dentro da sociedade francesa.

A miscigenação e integração das comunidades estrangeiras estão cada vez mais distantes da realidade. Verdadeiros guetos se constituíram ao redor das grandes cidades francesas e a distância entre a França tradicional das comunidades estrangeiras é cada vez maior.

As contas públicas da França estão em situação crítica há mais de duas décadas. Sua dívida pública já atingiu 110% do PIB e o déficit orçamentário foi de 5% do PIB em 2023.

Está entre as 4 nações mais endividadas do mundo, mas a que tem menos condição geral de se recuperar, considerando o baixo crescimento demográfico de 0,3% em 2023, e a queda sistemática da produtividade geral aliada a um aumento exponencial dos gastos sociais.

Seu rebaixamento nas agências de risco parece ser apenas questão de tempo, o que implica em aumento de juros, necessidade de mais empréstimos e aumento da dívida.

Maior produtor agrícola da Europa e um dos maiores do mundo, a França também perde competitividade no campo ano a ano.

Maior produtor agrícola da Europa e um dos maiores do mundo, a França também perde competitividade no campo ano a ano. Cada vez mais dependente dos subsídios europeus, boa parte concentrado em algumas centenas de grupos agrícolas.

A França depende da União Europeia, com destaque para o apoio frequente e paciente da Alemanha.

Todo esse quadro parece não afetar a elite francesa. A mesma que vai apresentar a França ao mundo durante as Olimpiadas. Se há uma decisão de “proteger” o alimento e culinária francesas, isso faz parte do jogo. Um protecionismo velado em função do grande evento.

Mas qual é o limite da arrogância ou da hipocrisia? Será que esse grupo dirigente bem-comportado e politicamente correto se perguntou quanto custa todo esse alimento? E quem vai pagar senão o contribuinte francês no final?

A quem serve essa agenda de promoção de alimentos veganos e esse discurso de agenda sustentável?

É um desprezo a realidade dos mais pobres mundo afora e dentro da própria França. A utopia da sustentabilidade a qualquer custo, que só os mais ricos podem pagar. Símbolo máximo da nova ideologia da agenda verde.

Imagino os atletas da elite do esporte mundial tendo que pensar que podem ter falta de proteína durante as competições. O elitismo de uma minoria acabou por cegar as ações da maioria.

Não é diferente a postura da França na agenda internacional. Foi tão exaustivo o neocolonialismo na África saariana que perderam a liderança na região para a Rússia nos últimos anos, seja no Niger e em parte do Mali.

Rugem como leão na defesa da Ucrânia e da Armênia, mas não têm condição militar para suportar o discurso.

Na voz do presidente Macron está a condenação da destruição da Amazônia brasileira pelos agricultores da soja, que ele sugere boicotar e produzir no próprio país. Sabe que é uma alegação impossível e demagógica.

Seu discurso comportado de defensor do meio ambiente, desde que não seja para recuperar as áreas originais da França, encontra eco no populismo ambientalista brasileiro e lhe dá a oportunidade de rasgar o acordo birregional de comércio entre Mercosul e União Europeia. Detalhe: foi negociado e aprovado em 2022 por negociadores também franceses.

Macron alega risco de descumprimento de cláusulas ambientais e, ao se colocar como protetor do “pulmão do mundo” (sic), afaga o eleitorado verde na tentativa de recuperar sua crônica baixa popularidade.

Um cinismo característico daqueles que querem mesmo é proteger seus próprios interesses nacionais, os privilégios da elite “olímpica” que não vive na mesma dimensão do resto dos mortais.

Na chamada “Guerra das Lagostas”, em 1962, quando navios pesqueiros franceses invadiam águas brasileiras, criou-se erradamente a frase não dita pelo então presidente francês Charles De Gaulle de que o Brasil não era um país sério.
“Le Brésil n’est pas un pays sérieux” foi dito pelo embaixador Carlos Alves de Souza ao jornalista Luís de Andrade na ocasião das negociações. Mas a frase pegou e tem servido aos brasileiros em momentos de autoflagelo.

Pois bem, em uma época em que o país produz e exporta alimentos para quase 1 bilhão de pessoas no mundo com padrões de produtividade e sustentabilidade difíceis de questionar se for utilizada a ciência como referência, fica mais difícil aceitar as lições de moral francesas.

É certo que a universidade, a academia militar e a burocracia brasileiras têm suas origens na França. Herança portuguesa, as elites brasileiras foram buscar na França suas referências civilizatórias.

Esse tempo acabou. Em um país americano, com uma cultura de consumo americana, uma agricultura americana e um humor e esperança americanos, a França deve temer se tornar apenas um bom livro do passado que deve ser colocado na estante.

O futuro, a combinação do desenvolvimento sustentável com a tecnologia e a incorporação de mais gente no mercado de consumo vão contra o modelo elitista e separatista que a França representa.

A gastronomia permanece uma especialidade francesa. Mas quem sabe mesmo produzir alimentos para os que precisam comer está nas Américas. Os tempos mudaram.

Christian Lohbauer é cientista político e já foi diretor-executivo de diversas entidades representativas do agro como no setor de exportação de frango (Abef), suco de laranja (CitrusBR) e CropLife Brasil