Quem usa cremes ou óleos naturais já está acostumado com produtos à base de castanha e outras sementes da Amazônia, mas talvez nem imagine que o início da jornada de cuidado pessoal começa em uma lavoura de soja.

Apesar de não ser um ingrediente tão óbvio, a soja está presente em subprodutos como glicerina, lecitina e tocoferol, componentes utilizados na fabricação de diferentes itens da indústria de cosméticos, que acaba consumindo a commodity de forma indireta.

Dessa forma, a Natura, companhia do setor referência em sustentabilidade e que só no primeiro semestre deste ano teve uma receita líquida de R$ 10,8 bilhões, está de olho em ter mais visibilidade e rastrear a origem de itens produzidos a partir da cadeia da soja.

A companhia está trabalhando para cumprir o compromisso de ter 100% da produção vinda de cadeias que classifica como “críticas” – palma, álcool, algodão, mica, soja e papel – livre de desmatamento até 2030.

A soja, em especial, chama a atenção da companhia por estar mais “invisível” em relação às demais cadeias, explica Ronaldo Santos de Freitas, gerente de cadeias sustentáveis da Natura, em entrevista ao AgFeed.

"Queremos ter uma visibilidade maior dessa cadeia, a exemplo do que conseguimos ter com a cadeia de ativos de biodiversidade da Amazônia”, explica Freitas, que conversou com a reportagem nos bastidores da Conferência Internacional da RTRS (siga em inglês para Mesa Redonda da Soja Responsável), evento realizado na semana passada em São Paulo.

Desde o lançamento da linha Natura Ekos, em 2000, a Natura vem utilizando os ativos da Amazônia em seus produtos.

Há cinco anos, a companhia contabilizava trabalhar com 25 ativos da biodiversidade, adquiridos de 81 cadeias de fornecimento, somando 37 comunidades fornecedoras, que abrangem 5.600 famílias, sendo que 4,3 mil estão na Amazônia.

O mesmo nível de detalhamento, contudo, ainda não é possível de ser feito em relação aos derivados de soja utilizados pela empresa.

Por isso, para ter visibilidade parecida em cadeias como a da soja, a Natura impôs algumas linhas de corte aos seus fornecedores.

Uma dessas linhas já se encerra em 31 de dezembro deste ano. Nessa data, todos os fornecedores de ingredientes ou produtos finais que contenham soja ou derivados – e que sejam responsáveis diretos pela produção dos grãos – terão de informar dados da localização das áreas de cultivo até a planta de processamento, refinarias e fábricas.

Caso o cultivo aconteça em países considerados de “alto risco” pela empresa - Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia - o fornecedor terá de apresentar também uma certificação validada por terceira parte, demonstrando que a produção de soja está livre de desmatamento e conversão. Entre as certificações aceitas, estão Regenerative Organic Certified, ProTerra e RTRS.

Nos casos de fornecedores que não sejam responsáveis pelo cultivo da soja, mas que vendem produtos feitos a partir do grãos, eles terão de informar, até o fim do ano, dados dos países de origem das áreas de cultivo da matéria-prima, além de apresentar certificação de terceira parte.

A ideia da Natura é que, até 2030, os dois tipos de fornecedores estejam apresentando dados de rastreabilidade total e uma certificação ou verificação que indique que o cultivo da matéria-prima não foi feito em áreas que passaram por processo de desmatamento ou conversão de terras.

O desafio é grande porque, ao contrário das espécies nativas da Amazônia, as quais a Natura tem uma rede de pequenos produtores que fornecem os insumos diretamente para a empresa, os derivados de soja já vêm prontos dos fornecedores da companhia, como as indústrias químicas.

"Não temos contato com o produtor de soja e nem com o trader, mas sim com um fornecedor que vai pegar um derivado de soja e vai misturar a outros ingredientes e produzir, por exemplo, uma vela ou um creme", explica Freitas.

Além disso, 95% dos produtos da companhia têm base vegetal – e não animal – o que também dificulta uma eventual substituição de um produto com traços de soja produzida em área desmatada por gordura animal, por exemplo.

Como a Natura não é responsável diretamente pela fabricação desses componentes, a companhia está trabalhando em um esquema de parceria com os produtores.

"Estamos trabalhando com nossos fornecedores para que eles iniciem esse interesse de buscar soja sustentável para o abastecimento”, afirma Freitas.

Até o fim de 2026, a Natura vai aceitar, por exemplo, que os produtores de soja utilizem créditos RTRS – em que 1 tonelada de soja certificada equivale a 1 crédito – como parte do processo de certificação para comprovar que sua soja é sustentável.

Ainda não há um número fechado de quantos créditos a empresa vai comprar, explica. “Como este é o primeiro ano em que estamos fazendo isso, a gente só consegue ter os valores finais no fechamento do ano”, explica Freitas. “A ideia é calcular quantas toneladas de soja você precisa para produzir uma tonelada de glicerina, converter em créditos e comprar esses créditos.”

A utilização dos créditos RTRS é apenas provisória, no entanto. A partir de 2027, os fornecedores terão de adotar sistemas de balanço de massa para comprovar que sua soja está livre de desmatamento. “Os fornecedores terão de ter cadeias de custódia para a gente garantir rastreabilidade”, diz.

O balanço de massa é uma metodologia de rastreabilidade, que permite misturar soja de diferentes origens (com e sem risco de desmatamento), mas garante que a proporção de soja "sustentável" vendida ao mercado não ultrapasse a proporção que entrou no sistema.

Além das exigências, a Natura também está estimulando que seus fornecedores adotem pelo menos duas práticas de agricultura regenerativa em um universo de mais de 20 métodos, como utilização de insumos, cobertura do solo, fixação biológica de nitrogênio, entre outros.

“Queremos que os produtores tenham uma produção o mais sustentável possível, até pensando na perenidade de suas lavouras”, avalia Freitas.

Bebendo na ideia de “agricultura regenerativa”, a Natura assumiu, em julho passado, o compromisso de, mais do que ser uma empresa sustentável, ser conhecida também como uma companhia regenerativa.

Ao estilo filosófico da empresa, guiada pelo slogan-mantra “Bem estar bem”, lançado em 2000, a Natura avalia que “a vida está no centro” e que a natureza “é todo”.

“Entre uma e outra, estão todas as relações que estabelecemos para conduzir nossas operações – tanto as relações com os clientes, expressas em nossas marcas, produtos e serviços, quanto as relações com tudo que nos cerca, que nos permitem atuar”, descreve a empresa.

Para a Natura, o compromisso de ser uma empresa “totalmente regenerativa” significa que “nossa existência precisa alimentar, ao mesmo tempo, todos os capitais, gerando impacto positivo em cada um deles, simultaneamente.”

Filosofias à parte, o compromisso foi firmado dentro do que a Natura chamou de Visão 2050, conjunto de metas socioambientais para os próximos 25 anos.

São vários os compromissos firmados. No campo das matérias-primas, por exemplo, a companhia projeta que, até 2030, 30% de seus ingredientes-chave sejam fornecidos por pequenos produtores rurais que adotem práticas regenerativas certificadas ou verificadas com terceira parte e que, até 2050, a companhia consiga ter em mãos a rastreabilidade de todos seus produtos.

O histórico da companhia em estipular metas socioambientais e cumpri-los é positivo. Resta aguardar para ver se a companhia terá o mesmo sucesso com a soja.

Resumo

  • A Natura quer ampliar a rastreabilidade da soja usada em seus produtos de forma indireta
  • Companhia de cosméticos vai exigir de seus fornecedores informações de origem e certificações para eliminar, até 2030, possível utilização de soja produzida em áreas desmatadas
  • A empresa lançou posicionamento recente em que busca ser “companhia regenerativa”, filosofia com similaridades ao conceito de agricultura regenerativa