Nenhum cientista foi contratado para trabalhar na pesquisa agropecuária do Estado de São Paulo desde 2003. A Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo tem 746 cargos vagos e apenas 448 preenchidos. Ao considerar as cinco carreiras de apoio à pesquisa, o número de postos vagos salta para 4.539 enquanto 1.069 estão preenchidos.
Os dados fornecidos ao AgFeed são da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC). A entidade classifica a situação como um desmonte no setor e o impacto desse déficit é direto nas pesquisas.
Referência internacional em pesquisa para a produção de alimentos, o Instituto Agronômico (IAC) interrompeu estudos em áreas por falta de pesquisadores e servidores.
Segundo a APqC, linhas para o melhoramento de hortaliças, triticale, grão-de-bico, manga, cacau, trigo, aveia, cevada, mamona, girassol, amendoim e até arroz estão paralisadas. O laboratório de análise da qualidade de fibra de algodão e outras espécies também foi afetado.
"Além de interromper estudos em áreas essenciais para a segurança alimentar, o que é gravíssimo, há um outro prejuízo difícil de mensurar. Quando um pesquisador se aposenta sem ter para quem passar o conhecimento adquirido, há um apagão da ciência, porque perde-se décadas de experiência", afirma Helena Dutra Lutgens, presidente da APqC.
Com sede em Campinas (SP), o IAC foi criado por Dom Pedro II, ainda no Império, em 1887, e passou para a administração do governo paulista em 1892. Por 137 anos é polo de pesquisa que tornou São Paulo potência cafeeira, citrícola e sucroenergética, por exemplo.
“Os prejuízos provocados por este desmonte da estrutura de pesquisa fragiliza o tempo de resposta, além de colocar em risco a liderança do Estado em diferentes áreas”, comenta Lutgens.
Em nota ao AgFeed, a diretoria-geral do instituto informou que “realmente, o quadro de funcionários do IAC e de recursos financeiros é bastante crítico. O Instituto vem sofrendo essa situação há muito tempo, mas o governo atual tem sinalizado para nós que vai tomar medidas para resolvê-la, não só mirando salários, mas também contratando gente. E nós não temos elementos para duvidar que o governo vai fazer isso.”
O subsecretário de Agricultura do Estado de São Paulo, Orlando Melo de Castro, admitiu, em entrevista ao AgFeed, a interrupção dos programas e a falta de pesquisadores na pasta.
Castro admitiu que há um déficit no quadro de servidores, fruto, segundo ele, “de um período de 15, 20 anos com baixíssimo investimento em RH, questão salarial e concurso”.
A prioridade, segundo o subsecretário, é o reajuste salarial e, em seguida, concursos para “áreas e programas realmente prioritários”. No ano passado um concurso foi realizado para a contratação de 37 novos pesquisadores, mas nenhum foi convocado.
Sobre os cortes nas pesquisas, Castro deu duas justificativas, segundo ele, “conjunturais”: a falta de interesse em algumas culturas no Estado e o fato de empresas privadas terem assumido os estudos por interesse próprio.
“Por que o Instituto Agronômico vai continuar pesquisando algodão se hoje não se plantam nem 10 mil hectares de algodão no Estado de São Paulo? A prioridade de nossa pesquisa é o Estado de São Paulo”, disse.
“Outra coisa, você teve uma entrada de empresas multinacionais na área de genética com algodão, soja e milho. As instituições públicas oficiais, que pesquisavam genética nessas áreas, redirecionaram seus trabalhos”, completou o subsecretário.
Por outro lado, na avaliação dele, em culturas como feijão, amendoim e batata doce, a pesquisa pública continua atuante. “Você não tem setor privado interessado em fazer pesquisa nessas áreas, especialmente melhoramento.”
Desmonte completo
Além do desmonte no quadro funcional e de interromper estudos científicos, o governo paulista quer se desfazer de 20 mil hectares de áreas de centros de pesquisas ligados à Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA).
Como mostrou o AgFeed, essa área pode gerar receita de R$ 1,16 bilhão, se considerada a venda de todo o patrimônio no preço do mercado.
Cálculos do AgFeed para o valor da terra consideraram um valor médio de R$ 58,2 mil por hectare apontado pela Scot Consultoria em julho deste ano e que a venda será integral.
Por outro lado, os dados do legado anual da pesquisa agropecuária, de 2022, da APTA, apontaram um retorno social de R$ 19,90 bilhões entre 2018 e 2021, ou seja, em torno de R$ 5 bilhões por ano.
Mas o valor arrecadado com a polêmica venda poderá ser menor, já que o próprio governo também admite que não conseguirá vender todas as propriedades e nem a área total avaliada. Algumas têm trechos de reserva legal e de preservação permanentes sem valor comercial que devem ser desmembradas.
Entre as áreas prioritárias está a Fazenda Santa Elisa, em Campinas (SP), centro estadual de pesquisas de culturas como café e macaúba. Essa propriedade está no mesmo IAC cujas pesquisas foram interrompidas. Castro deixou claro à reportagem que ao menos parte da fazenda, “um apêndice”, segundo ele, entrará no feirão de imóveis rurais do governo.
“A Santa Elisa tem uma área lá que é um apêndice que nunca foi usado. É uma área de capim”, afirmou Castro, que foi diretor do IAC de 2004 a 2008, entre os governos de Geraldo Alckmin e José Serra.
“Aí tem uma outra área que tem café e o pessoal alega que aquilo lá é uma coleção. Mas que não consta dos mapas de coleções. Se é uma coleção importante para o melhoramento de café do IAC, será preservada. Mas se não for, por que manter como uma área de café, sem uso?”, completou.
A APqC rebateu Castro sobre a importância da coleção e o “sem uso” sobre a área da Santa Elisa. De acordo com a APqC, o banco de germoplasma de café tem acessos considerados raros ou extintos de seu habitat e os estudos com macaúba despontam como alternativa para a fabricação de biocombustíveis.
Cerca de 90% das pesquisas cafeeiras realizadas pelo IAC na Santa Elisa são financiadas pelo Fundo de Defesa da Economia Cafeeira (Funcafé), do Ministério da Agricultura e, por meio de convênios com o Consórcio Pesquisa Café, coordenado pela Embrapa, relata a associação.
Dados do Instituto de Economia Agrícola (IEA), outro órgão do governo paulista, estimam um valor máximo de R$ 93,4 mil para o hectare em Campinas. Na ponta do lápis, os 15 hectares citados por Castro estariam avaliados em R$ 1,4 milhão, um valor ínfimo pela localização privilegiada do imóvel rural.
Com reportagem de Italo Bertão Filho.