Na polêmica que envolve a “moratória da soja”, que coloca, de um lado, as grandes tradings compradoras e processadoras de grãos, e de outro, os produtores rurais e o governo de Mato Grosso, houve uma "vitória" importante nesta semana, mas os agricultores locais mostraram disposição para ir além.
Na segunda-feira, 28 de abril, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu que o governo de Mato Grosso pode aplicar a lei estadual que retira incentivos fiscais de empresas que estejam aplicando as regras do acordo antidesmatamento firmado em 2006.
Pelo acordo, as grandes empresas do setor deixaram de comprar soja de produtores que tivessem realizado algum tipo de desmatamento a partir de 2008.
O argumento da lei de Mato Grosso é que não podem receber incentivos companhias que participem de acordos nacionais ou internacionais que imponham restrições à expansão da atividade agropecuária em áreas não protegidas por legislação ambiental específica,
Pelo Código Florestal brasileiro, uma propriedade rural no bioma Amazônia deve preservar 80% da área, mas pode transformar em lavoura os outros 20%. A moratória da soja, no entanto, barra a compra de soja das propriedades que estejam fazendo este “desmatamento legal”.
A decisão do STF anunciada na segunda ainda precisa ser submetida ao plenário da corte.
Um dia depois, na terça-feira, dia 29 de abril, começou mais uma disputa: a Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja-MT) resolveu entrar com uma ação civil pública na Vara Especializada em Ações Coletivas de Cuiabá questionando a legalidade da moratória da soja.
A entidade pede que os réus se abstenham ou deixem de praticar imediatamente “todo e qualquer ato que exija dos sojicultores brasileiros o cumprimento de requisitos que superem aqueles previstos na legislação brasileira, sobretudo em matéria ambiental” e “sua atuação conjunta anticoncorrencial, ilegal e inconstitucional em prejuízo dos sojicultores brasileiros”, além de “todo e qualquer ato que tenha como objeto exigir dos produtores rurais brasileiros regras contidas no acordo denominado Moratória da Soja e/ou de qualquer outro acordo superlegal que venha a substituí-lo.“
O valor da causa é de R$ 100 mil, mas a Aprosoja solicita uma indenização por parte das tradings aos “sojicultores prejudicados pelos danos sofridos, sejam eles emergentes, de lucros cessantes e/ou de perda de uma chance”, a serem “devidamente liquidados em momento oportuno”.
A Aprosoja-MT elencou 33 réus na ação, incluindo grandes tradings como Bunge, Amaggi, Cargill, ADM, LDC e Cofco. Todas essas tradings assinam a moratória.
Também estão na lista quatro dirigentes das associações que representam essas empresas: André Nassar, presidente da Associação Brasileira de Óleos Vegetais (Abiove), e Bernardo Pires, diretor de sustentabilidade da Abiove, além de Sérgio Castanho Teixeira Mendes, presidente Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), e Pedro Bernt Eymael, diretor de sustentabilidade da Anec.
Na petição de 49 páginas entregue à Justiça e obtida pelo AgFeed, as palavras são duras.
A Aprosoja diz que a moratória traz restrição “anticoncorrencial, ilegal, abusiva e inconstitucional para os sojicultores brasileiros”, trazendo “severos prejuízos por se tratar de uma restrição indevida ao direito de propriedade e à livre iniciativa” e que se trata de “conduta ilícita com efeitos anticompetitivos.”
A associação diz também que a moratória traz um “prejuízo imensurável” aos produtores de soja brasileiros, sobretudo pequenos e médios produtores, “pela conduta colusiva e claramente ilegal e abusiva adotada pelas tradings, que controlam e dominam o mercado de soja, diante dessa severa e indevida limitação e obstrução no direito de produção e comercialização da soja, em nítida violação a princípios e valores constitucionais e normas infraconstitucionais.”
A postura das tradings, segundo a Aprosoja-MT, “reside em uma atuação coordenada e sincronizada para impor aos sojicultores brasileiros a obrigatoriedade de provar/demonstrar que a soja a ser comercializada advém de área sem qualquer supressão ambiental, ainda que realizada licitamente à luz do Código Florestal brasileiro, sob pena de recusa injustificada na compra do produto”
A associação dos produtores alega ainda que a criação de “listas de restrição” para os agricultores que não cumprem a moratória é um processo feito de forma “totalmente obscura” e se configura como um “indevido, ilegal e inconstitucional boicote coletivo”.
“A situação se agrava porque há a informação por parte de produtores rurais de que essas listas de restrição vêm sendo compartilhadas pelas tradings e aplicadas também por outros atores da cadeia do agronegócio, como financiadores, distribuidores, fornecedores e revendedores locais de produtos e insumos agrícolas. Isso significa dizer que, estando o produtor incluído na lista, não haverá sequer condições de plantio.”
A Aprosoja-MT também cita a soberania para defender sua tese, citando nominalmente a Cofco, dizendo que a empresa é controlada pelo governo chinês, e a Louis-Dreyfus Company (LDC), que tem 45% de seu capital controlado pelo fundo soberano de Abu-Dhabi.
“[A moratória] abre brecha para que nações estrangeiras influenciem substancialmente nas políticas inerentes a setores sensíveis e relevantes que se consubstanciam em verdadeiros propulsores da economia brasileira.”
Dino voltou atrás
Desde o ano passado, produtores de soja de diversos estados onde há propriedades no bioma Amazônia, buscaram apoio dos governos locais que pudessem desencorajar as tradings de aplicar as listas de restrição de fornecedores.
Em Mato Grosso, o lobby dos produtores chegou primeiro à Assembleia Legislativa do estado e virou um projeto de lei, que acabou sendo aprovado e sancionado pelo governador Mauro Mendes em outubro do ano passado.
No fim de 2024, quatro partidos políticos - PC do B, PSOL, Partido Verde e Rede Sustentabilidade – entraram com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 7.774), pedindo a suspensão dos dispositivos da lei estadual.
O Supremo decidiu, então, suspender temporariamente a lei com uma liminar, em decisão de Flávio Dino no dia 26 de dezembro do ano passado.
Na última segunda-feira, houve uma reconsideração após um pedido feito pelo governo de Mato Grosso, a Assembleia Legislativa local e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
No texto, Dino reconheceu que a Moratória da Soja trouxe "inequívocos benefícios ao país", mas que isso não significava que o acordo não pudesse ser "eventualmente debatido e repactuado" após quase duas décadas de existência.
"A Moratória da Soja, apesar de sua indiscutível relevância para a preservação ambiental, não tem força vinculante sobre a atuação do poder público, que pode fundamentar sua política de incentivos fiscais, em critérios distintos em relação a um acordo privado, desde que conforme a legislação nacional", escreveu Dino.
O ministro também disse entender que parece "razoável" que o governo de Mato Grosso "não seja obrigado a conceder incentivos fiscais ou terrenos públicos a empresas que atuem em desconformidade com a visão de ajustamento aos marcos legais que entraram em vigor após a celebração da Moratória da Soja."
Dino acrescentou que o poder público deve respeitar a iniciativa privada, mas que "não é obrigado a conceder novos benefícios a empresas que resolvam exigir o que a lei não exige."
Finalizando o texto, Dino determinou que a legislação passe a valer apenas a partir de 1º de janeiro de 2026, "para que as partes privadas e os agentes públicos possam dialogar nos termos que considerarem cabíveis."
O ministro do STF também informou que "a aplicação da lei matogrossense deve respeitar os direitos adquiridos e os atos jurídicos perfeitos, bem como o contraditório e a ampla defesa."
O governador de Mato Grosso, Mauro Mendes, comemorou publicamente a decisão em um vídeo publicado na rede social Instagram e prometeu cumprir a determinação de Dino.
"Nós iremos penalizar as empresas que não estejam respeitando o Código Florestal Brasileiro, fazendo exigências absurdas, muito além daquelas que está prevista em lei", disse.
Na legenda da postagem, Mendes complementou dizendo que "nossos produtores merecem respeito, pois já cumprem a lei ambiental mais restritiva do mundo e não podem ser prejudicados por empresas com exigências absurdas."
Direitos adquiridos
Frederico Favacho, sócio de agronegócios do escritório Santos Neto Advogados, que atende grandes grupos do setor de óleo vegetal, se atenta à necessidade de se cumprir os direitos adquiridos. Na avaliação de Favacho, as empresas teriam seus benefícios preservados.
"Embora a decisão do ministro Flávio Dino não seja explícita na forma como devem ser preservados os direitos adquiridos, fica claro, pela leitura, pelo contexto inclusive da decisão, que o ministro entende que aquelas empresas que já estão gozando de um benefício fiscal, que já tenham feito investimentos com base nesses benefícios nos acordos celebrados com o estado de Mato Grosso antes, que elas não podem ser pegas de surpresa", disse Favacho ao AgFeed.
Nessa situação, prossegue o advogado, os direitos devem ser mantidos. "Para que o Estado retire esses benefícios fiscais ou retome, por exemplo, um terreno que foi cedido para a construção de uma fábrica, por exemplo, de uma esmagadora, isso terá que ser objeto de um processo administrativo e, nesse processo administrativo, tem que ser dada a chance da ampla defesa, do contraditório", afirma.
Dessa forma, ainda na avaliação de Favacho, a empresa poderá demonstrar que, a partir dos benefícios fiscais ou em contrapartida, fez investimentos que trouxeram vantagem para o estado.
"Seja na forma de empregos, na forma de ICMS, na forma de ISS, enfim, do que seja", resume o advogado.
"Se a alegação é que a moratória da soja traz algum tipo de prejuízo, a empresa poderá demonstrar que o que ela trouxe de benefícios para o Estado, como eu já disse, na forma de empregos, na forma de impostos que ela paga, diretos e indiretos, é muito maior, por exemplo", acrescenta.
A Aprosoja-MT, em nota divulgada à imprensa antes da ação civil se tornar conhecida do público, disse que a decisão de Dino representa uma "importante vitória" ao reconhecer a decisão do governo local "de coibir conluios privados como a Moratória da Soja, que impõem barreiras injustas e discriminatórias a quem cumpre rigorosamente a lei."
"Vamos continuar trabalhando para garantir que a Constituição Federal e o Código Florestal sejam respeitados. A produção rural legal e sustentável precisa de segurança jurídica para se desenvolver. Não aceitaremos que produtores sejam subjugados por acordos que tentam transformar conluios privados em normas públicas," afirmou o presidente da Aprosoja MT, em nota.
A associação dos produtores finalizou dizendo que permanece "irredutível" ao lado dos produtores e que "reforça seu compromisso com a defesa da produção agrícola responsável, da soberania nacional e do desenvolvimento sustentável dos municípios de Mato Grosso."
Já a Abiove disse que não iria comentar a ação da Aprosoja-MT, mas emitiu uma nota sobre a decisão de Flávio Dino.
A associação das indústrias de óleo disse "vai buscar interlocuções com o Governo de Mato Grosso para a regulamentação da Lei, uma vez que o próprio ministro afirmou que disponibilizou tempo para os agentes privados e públicos dialogarem” e mencionou a possibilidade de preservação do direito adquirido citada por Favacho.
A entidade destacou ainda que Dino reconheceu a "legalidade" da moratória da soja, "reafirmando sua conformidade com os princípios constitucionais".
"A Abiove reforça que seguirá acompanhando atentamente os desdobramentos do processo e continuará cumprindo rigorosamente todas as decisões judiciais, mantendo seu compromisso com a sustentabilidade, o desenvolvimento socioeconômico responsável e o fortalecimento da imagem positiva da produção agrícola brasileira", concluiu a associação.
A Anec foi procurada pela reportagem, mas disse que não iria se posicionar sobre o assunto.