Um grupo de mais de uma dezena de entidades e associações dos setores público e privado, encabeçado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), assina uma carta aberta de apelo ao governo federal pela recomposição de recursos financeiros para evitar o colapso das redes de monitoramento climático e hidrológico no Brasil.

O documento, obtido pelo AgFeed, já tem mais de uma dezena de signatários. Além de criticar diretamente o governo, o texto aponta que uma rede de 6 mil pontos de monitoramento da ANA, em todos os rios do País, pode ser desativada a partir de 2025 e seus dados, perdidos.

O apelo ocorre após promessas feitas depois de eventos climáticos extremos no Brasil neste ano, em meio à Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP29), no Azerbaijão, e na semana em que o governo federal anuncia novo corte de gastos do setor público.

“Muito se fala e se constata sobre o efeito das mudanças climáticas na disponibilidade hídrica, com cada vez mais efeitos extremos acontecendo. Mas há um descasamento e o discurso dos atores relevantes não tem se transformado em ações e a realidade é outra”, disse ao AgFeed a presidente da ANA, Verônica Sánchez.

No documento, os signatários citam que nos últimos cinco anos o orçamento disponível para redes de observação recua em valores absolutos, “o que limita mais drasticamente a produção de dados e o investimento necessário para a manutenção e modernização de equipamentos e sistemas”.

E alertam: “Perder os registros de eventos de secas e cheias, por exemplo, impede o entendimento dos fenômenos extremos em curto, médio e longo prazo e compromete o desenvolvimento econômico e a segurança hídrica, alimentar, energética e das pessoas”.

Segundo a presidente da ANA, os dados obtidos pela rede são fundamentais para todos os setores da economia, mas alguns, especialmente, são mais afetados pelo risco de colapso.

“Para a agricultura e a pecuária, as redes fornecem as informações que permitem o adequado planejamento dos cultivos, dão os elementos para os modelos numéricos de previsão do tempo, incluindo geadas e níveis de precipitação que afetam as culturas, bem como o monitoramento dos períodos de seca e seus efeitos econômicos para fins de financiamento de safras, seguros agrícolas, entre outros”, informa o documento.

O texto tem críticas diretas aos acordos propostos e firmados pelo governo federal pelo País em fóruns internacionais.

“O esvaziamento da capacidade nacional de monitorar adequadamente o clima e a água vai contra os compromissos internacionais assumidos pelo País no que se refere à adaptação à mudança do clima e ao desenvolvimento sustentável, e aumenta a vulnerabilidade das cidades, da agricultura e dos sistemas produtivos”.

Mais exemplos

Verônica cita como exemplo o orçamento da agência estatal, que recuou 55% desde 2014, já descontada a inflação no período. “São R$ 40 milhões, mas precisamos de R$ 67 milhões para manter essa rede de monitoramento”, explicou.

De acordo com a presidente da ANA, a capacidade de se manter uma vistoria anual em cada equipamento vem sendo perdida, bem como o custeio e recursos para recomposição de estações afetadas.

De acordo com ela, as enchentes no Rio Grande do Sul destruíram 19 das cerca de 160 estações de monitoramento naquele estado, mas todas foram recompostas em menos de um mês a partir de um estoque da ANA em Brasília.

“Durante esse período, no auge das enchentes e da calamidade, tivemos de instalar estações de emergência, ou mesmo medir níveis de rios na mão, com réguas”, disse.

“Além das enchentes, monitoramos secas severas e históricas no Pantanal, que, se ocorrerem novamente ou em outras regiões, temos medo de não conseguir manter esse monitoramento”, concluiu.

O Ministério da Fazenda informou que a demanda sobre o tema cabe ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, que, procurado pelo AgFeed, afirmou que não se manifestaria.

Veja abaixo a íntegra da carta.

Carta Aberta Pelo Fortalecimento do Monitoramento Meteorológico e Hidrológico no Brasil

As instituições aqui relacionadas manifestam sua preocupação sobre a operação adequada e permanente da Rede Meteorológica e da Rede Hidrometeorológica Nacional, prejudicada pela contínua redução de recursos e capacidades dedicadas a essas atividades fundamentais à segurança das pessoas e a todas as atividades econômicas no Brasil.

Essas redes são responsáveis pelo: I. monitoramento climático, medindo variáveis como temperatura, precipitação, umidade, pressão atmosférica, evaporação etc.; II. acompanhamento de fenômenos climáticos; III. elaboração da previsão do tempo; IV. medição dos níveis de rios; V. monitoramento dos níveis dos reservatórios; VI. acompanhamento das vazões dos rios; VII. monitoramento dos aquíferos subterrâneos; VIII. monitoramento da qualidade da água.

Os dados obtidos por essas redes nacionais permitem a realização de estudos e modelagens indispensáveis ao planejamento de todas as atividades econômicas, à gestão da água, à proteção das pessoas e propriedades diante de secas, inundações e eventos extremos, bem como ao sucesso de todas as atividades econômicas que dependem da água e do clima, principalmente em setores chaves para o Brasil, como a agricultura e a energia.

Somente a partir dos dados medidos é possível gerar as condições iniciais para a realização de previsões numéricas de tempo, clima e ambientais, de maneira a antecipar principalmente os eventos extremos. Somente a partir do monitoramento das variáveis medidas por essas redes ao longo do tempo é possível avaliar a mudança do clima em curso, o que é fundamental para o estabelecimento de iniciativas de adaptação e mitigação, bem como no auxílio a gestores públicos e privados em tomadas de decisões em um mundo em transformação.

No que diz respeito à proteção das pessoas e propriedades, são as redes meteorológica e hidrológica que subsidiam a emissão de alertas meteorológicos e geo-hidrológicos sobre condições climáticas severas, a sua evolução e o alcance de seus impactos, além do entendimento sobre esses fenômenos para que haja preparação e ações preventivas, salvando vidas e preservando patrimônio.

A Defesa Civil Nacional e o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sinpdec), que reúne todas as defesas civis estaduais e municipais, usam os dados das redes para orientar suas ações de prevenção e resposta. Além disso, essas informações são base para a implementação de programas públicos de auxílio emergencial aos afetados por enchentes e, principalmente, por secas, como a Operação Carro-Pipa e o Bolsa Estiagem.

Para a agricultura e pecuária, as redes fornecem as informações que permitem o adequado planejamento dos cultivos, dão os elementos para os modelos numéricos de previsão do tempo, incluindo geadas e níveis de precipitação que afetam as culturas, bem como o monitoramento dos períodos de seca e seus efeitos econômicos para fins de financiamento de safras, seguros agrícolas, entre outros.

Na geração de energia hidrelétrica, responsável por 54% da matriz elétrica nacional, os dados permitem a elaboração dos estudos de aproveitamentos hidrelétricos bem como a operação adequada dos reservatórios. Na operação do sistema elétrico como um todo, são utilizados para a estimativa de consumo de energia – por ondas de calor, por exemplo -, o planejamento do uso de fontes alternativas de energia, o monitoramento dos riscos ao sistema de distribuição – por ventos e temperaturas elevadas -, entre outros. A disponibilidade de séries climáticas e hidrológicas longas e consistentes é fundamental à garantia da segurança energética brasileira e ao fornecimento de energia a custos acessíveis para a sociedade.

Para a indústria a água é insumo no processo produtivo, em sistemas de utilidades (resfriamento, caldeiras etc.) e para fins sanitários. A falta de água e sua baixa qualidade afetam o dia a dia da indústria e inibe investimentos. Por isso, o risco hídrico é cada vez mais relevante na estratégia de negócios de diversos setores industriais.

Para a logística, as redes hidrometeorológicas permitem monitorar os níveis de navegabilidade, gravemente afetados pela seca sem precedentes nas regiões do Pantanal e bacia Amazônica em 2024, além de prever e avaliar as condições do tráfego rodoviário e garantir a segurança da aviação.

No saneamento básico, são as redes de monitoramento de clima e recursos hídricos que fornecem os dados para os projetos de captação de água para abastecimento das cidades, sobre sua quantidade e qualidade, bem como indica a necessidade de investimentos em esgotamento sanitário que permitam alcançar o acesso seguro à água tratada para todos de forma sustentável.

Na saúde das pessoas, os dados desse monitoramento permitem a preparação para eventos como ondas de calor, incidência de doenças de veiculação hídrica e propagação de doenças ligadas a agentes afetados pelo clima, como mosquitos. Ainda, é preciso haver observação constante dos aspectos climáticos e hidrológicos para que seja possível controlar a poluição hídrica e monitorar a conservação de ecossistemas aquáticos.

Apesar da incontestável relevância dos dados fornecidos pelas Redes, há muitos anos os serviços de monitoramento do clima e dos recursos hídricos no Brasil sofrem com a redução de orçamento, contingenciamentos e falta de pessoal. Essa diminuição continuada da capacidade institucional compromete a produção de dados e a formação de séries históricas sem as quais não se concretizam todos os usos já citados, com efeitos nefastos para o país.

Hoje, o Instituto Nacional de Meteorologia – INMET e a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA gerem cerca de 6.000 estações hidrometeorológicas em todo o país, várias com mais de 100 anos de funcionamento, as quais correm o risco de serem desativadas já no próximo ano, pela falta de recursos para custeio das redes. O Serviço Geológico do Brasil – SGB opera a maior parte da rede hidrológica nacional e é responsável pelo monitoramento das águas subterrâneas, recurso estratégico para a segurança hídrica. Também nesse caso, os recursos financeiros e de pessoal são insuficientes para a continuidade das atividades de maneira adequada.

Dadas as dimensões continentais do Brasil, o número de estações é insuficiente para atender os múltiplos usos a que servem. Nos últimos cinco anos, o orçamento disponível para a operação das redes de observação vem continuamente decaindo em volume tal que não apenas não cobre as perdas pela inflação, mas também o reduz em valor absoluto, o que limita mais drasticamente a produção de dados e o investimento necessário para a manutenção e modernização de equipamentos e sistemas.

Perder os registros de eventos de secas e cheias, por exemplo, impede o entendimento dos fenômenos extremos em curto, médio e longo prazo e compromete o desenvolvimento econômico e a segurança hídrica, alimentar, energética e das pessoas.

Enquanto o Brasil é afetado por eventos hidroclimáticos extremos mais intensos e mais frequentes, com mais pessoas e atividades expostas a seus efeitos, os recursos insuficientes destinados à manutenção, qualificação e ampliação dessas redes de monitoramento representam um risco ainda maior e um grave descompasso entre a relevância política demonstrada pelo centro de governo às questões de mudança climática e seus impactos.

O esvaziamento da capacidade nacional de monitorar adequadamente o clima e a água vai contra os compromissos internacionais assumidos pelo país no que se refere à adaptação à mudança do clima e ao desenvolvimento sustentável, e aumenta a vulnerabilidade das cidades, da agricultura e dos sistemas produtivos.

Reiteramos, portanto, a importância de garantir o devido aporte de recursos financeiros e estruturais para que o Instituto Nacional de Meteorologia – INMET, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA e o Serviço Geológico do Brasil – SGB possam cumprir plenamente suas competências legais. Somente assim poderemos contar com informações meteorológicas e hidrológicas confiáveis, que subsidiem políticas públicas e atividades produtivas atuais e futuras de maneira consistente.

Subscrevem esta carta:
Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA
Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL
Agência Pernambucana de Águas e Clima – APAC
Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base – ABDIB
Associação Brasileira de recursos Hídricos – ABRHidro
Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos – COGERH
Fundação Amazônia Sustentável – FAS
Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos – Funceme
Instituto Nacional de Meteorologia – INMET
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE
Secretaria dos Recursos Hídricos do Ceará
Serviço Geológico do Brasil – SGB