No início dos anos 80, meu pai enfiou os cinco filhos numa Belina e saiu do interior de São Paulo para chegar no sul do Pará três dias depois. Agrônomo, tinha sido procurado para trabalhar em projetos de heveicultura naquela fronteira agrícola que se abria.

Em Conceição do Araguaia, eu e meus irmãos passamos uma infância de sonho estudando em uma escola modelo da Fundação Bradesco e aproveitando as praias paradisíacas do grande rio.

Ainda não tínhamos idade para entender as notícias das conversas dos adultos envolvendo conflitos entre fazendeiros, posseiros, indígenas, garimpeiros e todo o faroeste caboclo que marcou esse avanço da fronteira ali no chamado Bico do Papagaio.

Voltei ao sul do Pará no mês passado. Quarenta anos separam os dois Parás que conheci. O da infância onde a ordem era ocupar e desmatar. E o de hoje, que debate seu futuro e o futuro da Amazônia em uma Cúpula em Belém.

O boi acelerou sua entrada na Amazônia durante esses quarenta anos – e os frigoríficos foram atrás do boi. Estamos todos, inclusive a indústria da carne, nessa crucial encruzilhada do desenvolvimento, para pensar onde queremos chegar e como.

Tenho a convicção de que o futuro do nosso setor e a própria importância geopolítica do Brasil no mundo estão intimamente ligados ao futuro da Amazônia. A indústria da carne e do couro sente na pele a pressão.

Hoje, a produção dos estados da região é penalizada pelo mercado, que tende a fugir do risco. Quando, não por acaso, é ali também que mais se avança nos controles da cadeia, pelo menos desde 2009.

Precisamos construir essa visão de futuro para o sistema agroindustrial da carne e do couro na Amazônia. E isso começa no Pará.

No estudo intitulado “As 5 Amazônias: Bases para o Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal”, os pesquisadores associados da iniciativa Amazônia 2030 agrupam a Amazônia Legal em cinco macrozonas com base na cobertura vegetal remanescente, propondo um plano que promova o desenvolvimento em cada uma delas.

Na Amazônia desmatada, essa que sai do sul do Pará e se estende por toda a parte oriental do Estado, é onde está a indústria frigorífica. Entre as recomendações para esta zona estão priorizar a regularização fundiária, melhorar a infraestrutura e promover a intensificação da pecuária.

Acredito que daí parte a visão de futuro que podemos construir. Existe hoje uma infraestrutura industrial instalada nessa Amazônia.

Precisamos avançar na ideia de clusters, ou paisagens, no entorno dessas plantas, onde tenhamos fornecedores diretos e indiretos regularizados e com capacidade de atender a demanda instalada com uma pecuária eficiente e regenerativa.

Conseguir isso significa também reduzir a demanda pelo boi que avança na floresta, tornando-o menos necessário.

Para isso é preciso também que o Estado avance no fechamento da fronteira, com a fiscalização do desmatamento ilegal, a implementação do Código Florestal e a destinação de áreas públicas não destinadas, além da proteção aos territórios indígenas.

É preciso, no entanto, pensar cuidadosamente nas estratégias de comando e controle que se adotam no fechamento de fronteira na Amazônia que está sob pressão.

Em uma entrevista bastante interessante ao podcast Ilustríssima Conversa, o filósofo Paulo Arantes em certo ponto alerta para o risco dessa luta contra o desmatamento na Amazônia transformar-se em uma espécie de guerra as drogas, fazendo a arraia miúda de garimpeiros, madeireiros e posseiros encherem as deploráveis penitenciárias da região Norte (a exemplo dos aviõezinhos do tráfico), enquanto nenhuma mudança estrutural acontece. É enxugar gelo.

Rastreabilidade é a espinha dorsal de uma cadeia agropecuária que se queira sustentável

Há um outro elemento importante a ser considerado nessa visão de futuro. É a rastreabilidade. O governador Helder Barbalho já sinalizou, durante a cúpula em Belém, a intenção de avançar com o assunto em seu Estado, de olho num futuro onde a cadeia esteja sob controle total. Estamos com ele nisso.

Rastreabilidade é a espinha dorsal de uma cadeia agropecuária que se queira sustentável. É só a rastreabilidade – individual, diga-se de passagem – que irá permitir distinguir o boi legal do ilegal e fazer com que a Amazônia deixe de ser penalizada pelo mercado.

Assim como permitirá também criar valor a atributos ambientais da produção pecuária, como redução de emissões ou desmatamento zero.

Mas a rastreabilidade não pode também se tornar um sistema excludente. Precisamos apontar caminhos jurídicos e administrativos para a reinserção de uma grande massa de produtores com não conformidades, mas passíveis de serem regularizados.

Começa a nascer assim a visão desse futuro para a nossa indústria na Amazônia. E todos que puderem colaborar serão bem-vindos.

O espírito de Paolinelli

Sempre serão insuficientes as palavras para honrar a memória do grande brasileiro que foi Alysson Paolinelli. Sempre será uma inspiração para todos aqueles, no agro ou não, que queiram pensar em futuro.

Aliás foi ele quem levou seu Instituto Fórum do Futuro a promover um debate sobre ESG em Xinguara com a Aliança Paraense pela Carne. Que continue nos inspirando sempre.

Roberto Paolinelli, produtor e dono de frigorífico em Rio Maria, com certeza herdou algo do pioneirismo do primo. É ali que nasce o primeiro projeto de rastreabilidade individual de ponta a ponta, do bezerro à carne, com garantias socioambientais certificadas.

Agradeço a ele e sua família pela hospitalidade, assim como a Daniel Freire, da Mercúrio Alimentos e da FIEPA pela liderança que tem exercido no Estado.

Fernando Sampaio é Engenheiro Agrônomo e Diretor de Sustentabilidade da Abiec.