Em 1977 Milionário e José Rico lançaram o que seria o maior sucesso da carreira da dupla. “Nessa Longa Estrada da Vida” bebia da fonte da música caipira mas trazia elementos novos inspirados na rancheira mexicana.

Era o nascimento do gênero sertanejo, desprezado pelas elites intelectuais, mas popularíssimo no interior do centro-sul do Brasil.
Nelson Pereira dos Santos, um expoente do cinema novo brasileiro, transformou a história da dupla em filme, lançado em 1981 com o mesmo título da música mais conhecida deles. Na época, nosso governo militar reatava laços com países do bloco comunista.

O filme foi exibido na Rússia e também na China, em 1983, onde fez um sucesso estrondoso. O governo chinês ofereceria em seguida ao Brasil um intercâmbio cultural.

A China enviaria para cá a Orquestra Sinfônica de Pequim e o Brasil mandaria para lá seus artistas mais conhecidos na China. Para grande surpresa dos diplomatas e do ministro da Cultura Celso Furtado (já no governo Sarney), os artistas que os chineses queriam eram José Rico e Milionário. Conhecidos lá, mas completamente desconhecidos na nossa elite.

A gravadora Continental acabou levando a dupla em uma turnê de imenso sucesso na China por conta própria, já que o governo brasileiro ainda via com muito preconceito o sertanejo como uma expressão cultural e nunca levou para a frente a proposta de Pequim.

Essa história está contada pelo pesquisador Gustavo Alonso no livro “Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira”. E de forma mais resumida no ensaio “O rodeio e a roça: o mistério da música sertaneja”.

Eu me lembrei disso lá em Shangai, onde a Abiec e suas indústrias associadas participaram agora em maio de uma grande feira de alimentação, e onde a gente ouvia... Milionário & José Rico... nas horas vagas.

Acho essa história extraordinária não só porque muito pouca gente a conhece, mas pelas várias dimensões interpretativas que ela traz em paralelo.

Na longa estrada dos anos 80 para cá, a China modernizou-se assim como o campo brasileiro. Saímos da roça caipira para o sertanejo como expressão da potência rural do nosso agronegócio.

Na esperança de sermos campeões, alcançamos o primeiro lugar nas exportações mundiais, com a China como nosso principal mercado.

E me dói saber que desperdiçamos uma chance de ouro de construir um soft power cultural na China ao deixarmos de investir nesse inesperado gosto musical chinês. Imagino que se o tivéssemos feito, construir uma imagem positiva de nossos produtos agrícolas hoje naquele mercado seria tarefa bem mais fácil.

O fato é que no início da década de 80, pouca gente previa que a China estaria onde está, que o Brasil seria o exportador que é, e muito menos que o sertanejo seria a música mais popular do país.

A visão que nos faltou lá atrás é a que precisamos construir hoje. Como serão as relações entre Brasil e China em 20, 30 ou 40 anos?

Não tenho como aqui dissertar sobre todas as possíveis facetas dessa relação, mas para mim está claro que existem duas agendas indissociáveis que nos destinam a essa cooperação com a China: a agenda da segurança alimentar e a da segurança climática.

O mercado chinês hoje ainda padece dos efeitos da pandemia e dos impactos de uma inflação global de preços. Mas no longo prazo é a China que continuará puxando a demanda por carne bovina.

E é inegável que a China tem e terá cada vez mais um papel fundamental no enfrentamento da crise climática. Eles sabem disso. E nós sabemos também.

É com base nisso que precisamos construir uma visão conjunta de como os dois países irão tratar a agenda de clima em conexão com a agenda do comércio de commodities.

E temos a oportunidade de construir essa agenda não no modelo europeu, que determina: “essa é minha régua, se você chegar lá eu te deixo entrar, talvez...” É o modelo restritivo, excludente e impositivo ao qual fomos acostumados.

Acho que é possível conseguir avanços significativos na agenda do clima atendendo interesses mútuos. Temos uma singela prova disso na nossa cadeia da carne.

A simples exigência chinesa de que os animais destinados àquele mercado devem até 30 meses de idade gerou um gigantesco impacto positivo na cadeia, ajudando a encurtar o ciclo do boi e portanto a reduzir emissões.

É possível conseguir avanços significativos na agenda do clima atendendo interesses mútuos. Temos uma singela prova disso na nossa cadeia da carne.

Segundo o SEEG, nossas emissões de CO2e (por fermentação entérica) por quilo de carne produzida em 2019 foram um quinto do que eram em 1997... A China acelerou uma eficiência que já era crescente na pecuária.

A exigência dos 30 meses não teve motivação ambiental, mas é a prova de que uma agenda que aumente o comercio e que traga impacto positivo é possível. Difícil achar redução parecida em outros setores.

O Brasil tem, acredito, a oportunidade de construir conjuntamente caminhos que levem tanto à segurança climática como a segurança alimentar e desenvolvimento em uma nova cooperação sul-sul, começando pela China e estendendo-se por essa nova estrada da seda que nos une ao mundo em desenvolvimento. É essa a visão que devemos construir hoje.

Fernando Sampaio é diretor de Sustentabilidade da Abiec (Associação Brasileira da Indústria Exportadora de Carnes Industrializadas)