Em 2010, em Denver, Colorado, diversos atores da cadeia produtiva da carne bovina do mundo todo reuniram se com o objetivo de debater os desafios da sustentabilidade nesse setor em nível global. O encontro daria origem à Global Roundtable for Sustainable Beef (GRSB).

É bom lembrar que no Brasil, o Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável, hoje Mesa Brasileira de Pecuária Sustentável, já se reunia desde 2008 e tinha sido formalizado em 2009.

Esta semana, em Punta del Este, no Uruguai, a GRSB realiza sua Conferência Global. Como parte da inspiração para o encontro, assistimos em primeira mão o documentário A World Without Cows (Um Mundo Sem Vacas), escrito e dirigido por dois jornalistas premiados, Michelle Michael e Brandon Whitworth, que debate os impactos e o papel da pecuária no mundo.

Embora estejamos lidando com realidades muito diferentes entre regiões produtoras como América do Sul, América do Norte, Europa, África e Oceania, está claro que uma mensagem une a todo o setor.

A pecuária pode ser nature-positive, ou seja, é parte da solução da crise climática ao mesmo tempo em que contribui para o desafio da segurança alimentar do planeta.

Como? Com genética, nutrição adequada, aumento de eficiência, recuperação e manejo de pastagens, sistemas integrados e outras técnicas capazes de reduzir emissões, capturar carbono e aumentar produtividade.

Está claro que o mundo precisa de maior ambição em suas metas em relação ao clima. Espera-se essa ambição de países, de empresas, de setores econômicos distintos. O Brasil tem tudo para liderar uma transformação positiva em sistemas alimentares e a pecuária é uma parte importante dessa transformação.

Como maior exportador mundial de carne bovina, o País deveria ter todo o interesse nessa transformação. Com um Código Florestal e uma agropecuária de baixo carbono, dificilmente alguma outra região produtora no mundo poderia rivalizar com o Brasil, em emissões por kg de proteína produzida.

Há três condicionantes básicas para que o país possa de fato fazer da pecuária nacional um contribuinte ativo da mitigação da crise climática.

A primeira é desvincular a produção do desmatamento, o que passa por controlar a ilegalidade e pela regularização ambiental e implementação do Código Florestal sobretudo.

A segunda é um processo de planejamento que pense em ações prioritárias voltadas ao financiamento, assistência técnica e inclusão de pequenos produtores.

A terceira passa pela construção de uma infraestrutura pública digital capaz de integrar as informações referentes a rastreabilidade, compliance e impacto da produção.

A Mesa Brasileira de Pecuária Sustentável deve ser o foro adequado para que soluções para esses desafios sejam propostas. Mas antes de tudo é preciso liderança, tanto no setor privado, como no setor público.

Aqui cabe uma crítica a como associações e entidades de classe representantes do setor produtivo têm encarado os desafios da pecuária. Há uma certa crença inconteste no laissez-faire do mercado. A demanda por sustentabilidade é vista como uma exigência do mercado, e portanto, deve ser uma decisão voluntária do produtor de aderir a quaisquer requisitos, sejam eles de rastreabilidade, de redução de emissões ou de compliance com desmatamento.

Embora parcialmente verdadeira - o produtor deve estar de fato no centro da decisão -, há riscos embutidos nessa visão de mundo. Hoje, a pecuária já tem um fosso cavado entre uma ponta da pirâmide eficiente e tecnológica (e que faz o preço do boi no mercado), e que é capaz de atender qualquer demanda, e uma base da pirâmide de produtores pequenos e médios sem acesso a investimentos, sem regularização e sem capacidade técnica, condenada à exclusão.

Assumir que não precisamos de políticas públicas abrangentes para o setor, e que incluam TODOS, significa ajudar a cavar ainda mais esse fosso. No fim, grandes frigoríficos irão cada vez mais se fechar em círculos dos poucos fornecedores capazes de oferecer o volume que precisam atendendo aos requisitos de sustentabilidade que o mercado impõe.

O outro risco é que deixar essa grande massa de produtores ao deus dará significa retardar a possibilidade de mitigação da crise climática, com efeitos negativos em toda a produção. Hoje, 76% da área de pastagens do país tem uma pecuária abaixo da média de produtividade.

As entidades que supostamente defendem a classe dos produtores no fim, ao tratar a sustentabilidade no setor como um “faz quem quer e se alguém pagar”, sem que se tenham políticas públicas adequadas e apoio para a inclusão, atuam para aprofundar a desigualdade e aumentar o impacto das mudanças climáticas na própria produção. É de uma miopia estarrecedora.

A falta de liderança no setor privado também encontra a falta de liderança no setor público. Não há um plano coeso que pense a pecuária no país em todas as suas dimensões. Não temos sequer dados coerentes e o debate sobre soluções para rastreabilidade, bem ou mal acelerado pela demanda europeia, ainda empaca em decisões políticas e resistências cegas.

Neste sentido. o Pará é uma exceção, que demonstra como uma liderança política é capaz de fazer a diferença. O governador Helder Barbalho esteve pessoalmente em Xinguara para iniciar o ambicioso projeto de rastrear o rebanho paraense, colocando o primeiro brinco oficial do estado no boi Pioneiro.

A rastreabilidade é um dos pilares de um plano mais abrangente, que traz a integridade ambiental, o apoio aos produtores, incentivos e a valorização da produção entre outros aspectos.

Produtores, indústrias, sociedade civil e governo atuam juntos na construção e execução do plano. Mas sem liderança política estariam ainda todos esses setores apontando dedos uns aos outros ao invés de atuarem juntos na busca de soluções.

Não, não podemos imaginar o Brasil sem vacas. A pecuária é parte da nossa história, cultura e de todo o processo de ocupação territorial do País. É parte essencial da nossa economia. E, sim, será parte essencial na solução da crise climática.

Melhor que imaginar o país sem vacas, é imaginar o país com uma pecuária eficiente, regenerativa, e que contribua positivamente para a natureza e a sociedade.

Fernando Sampaio é engenheiro agrônomo, diretor de Sustentabilidade na Abiec e cofacilitador da Coalizão Clima, Florestas e Agricultura.