As perspectivas atuais indicam retração na oferta de crédito setorial, impulsionada, entre outros fatores, pela escalada na inadimplência das carteiras rurais dos bancos. Diante desse cenário, essas instituições têm adotado critérios mais rigorosos na concessão de novas linhas, exigindo garantias mais hígidas.
Enquanto o apetite de risco dos financiadores mingua, os produtores rurais batalham por custeio em um ambiente de negócios permeado por insegurança, custos elevados de produção e alta taxa de juros.
Com uma parcela desses produtores rurais altamente endividada, a recuperação judicial passou a ocupar um lugar central nas discussões do setor nos últimos anos.
O tema preocupa especialmente os financiadores, que veem nessa tendência uma ameaça crescente à concessão de crédito, impactando diretamente o acesso dos próprios produtores a novas linhas de financiamento.
Cientes do complexo ciclo atravessado pelo agronegócio, órgãos judiciários e organizações setoriais têm indicado movimentos para ampliar a segurança jurídica na aplicação da legislação de insolvência aos processos judiciais propostos por produtores rurais endividados.
Exemplo disso é a criação de comissões e grupos especializados voltados ao tema, como a Comissão Técnica do Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências (FONAREF), relacionada aos processos de recuperação judicial e falência de produtores rurais, criada pela Portaria nº 30/2025, do Conselho Nacional de Justiça.
Nessa mesma toada, a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR), comissão permanente da Câmara dos Deputados, convocou recentemente entidades representativas no setor, dentre associações, empresas e Ministério da Agricultura e Banco Central, a discutirem os impactos do instituto da recuperação judicial no agronegócio.
Nos termos da convocação da audiência, há “preocupações crescentes”, diante da alegada utilização por produtores rurais que, “em muitos casos”, “ocorre sem critérios técnicos adequados, gerando insegurança jurídica, ampliação da percepção de risco pelos financiadores, elevação dos custos financeiros e restrição ao crédito rural”.
A intenção principal da audiência pública, conforme os exatos termos de sua convocação, mirou em identificar gargalos e propor eventuais medidas de aperfeiçoamento legal e institucional. A preocupação com os impactos das recuperações judiciais no setor foi o mote da convocação.
Durante a audiência, cuja íntegra está disponível para acesso no site do legislativo, representantes das entidades convidadas falaram sobre suas principais preocupações, como a insegurança gerada por decisões judiciais conflitantes nos casos de produtores rurais, em relação à essencialidade de bens dados em garantia; a importância do crédito privado ao setor, dada a insuficiência do financiamento público setorial; e alternativas a serem adotadas pelo produtor que enfrenta cenário de crise.
Não há dúvidas que se trata de temática espinhosa, não raramente capturada por embates puramente dogmáticos, sendo comemorável qualquer iniciativa que busque pautar o problema a partir de dados, econômicos e judiciários, bem como de mecanismos práticos de combate à crise no campo.
Nesse contexto, destaca-se a importância de ir além da simples defesa de opiniões, buscando aprofundar a análise de alternativas e medidas concretas que podem ser adotadas pelos agentes econômicos em situação de crise. Esse enfoque, aliás, foi bem explorado na audiência pública pelo Departamento de Regulação, Supervisão e Controle das Operações do Crédito Rural (BACEN), apontando caminhos mais promissores ao setor.
Ato aparentemente anacrônico nos dias de hoje, o diálogo tende a contribuir para o aperfeiçoamento da aplicação prática da lei. Especialmente quando conduzido por entidades e profissionais com conhecimento não apenas jurídico, mas também com entendimento das dinâmicas comerciais que caracterizam a cadeia agroindustrial.
Há de se comemorar, ainda, o aparente consenso vigente com relação à inconveniência de se propor nova alteração a já reformada Lei de Falências, lembrando que as previsões específicas ao produtor rural foram inseridas no corpo legal em 2020.
Ou seja, parece claro que, atualmente, os requisitos legais para acesso à recuperação judicial, os tipos de crédito envolvidos e outros aspectos específicos da produção rural e do agronegócio ainda geram dúvidas e decisões conflitantes. Diante dessa falta de clareza, promover novas alterações em normas cujo funcionamento sequer está consolidado seria, no mínimo, precipitado.
Sem projeto de lei em perspectiva – ignoremos iniciativas sofridas como o PL 3/2024 – a atitude da Câmara dos Deputados em contribuir ao debate público sobre o tema é digna de nota, sendo esperado, ao que se apura, o breve agendamento de uma nova audiência pública direcionada à crise setorial.
O grande ponto de atenção, como adiantado na introdução deste artigo, é que o tempo da produção rural e do mercado não aguardará o arrastado caminhar dos debates legislativos e da jurisprudência. Ou seja, é fundamental uma sinalização de segurança aos agentes do crédito privado, estimulando um movimento voltado ao aumento do acesso ao crédito pela produção rural.
Como dito, há entidades engajadas nesse sentido, em busca de aproximação com o setor de produção, sendo também imperiosa a conscientização dos agentes econômicos em crise.
A recuperação judicial - cunhada por muitos, com destacada falta de criatividade, de ‘remédio amargo’ -, é tão somente um dos caminhos à resolução da crise aguda, de modo que há, seja no campo da governança ou da assessoria financeira, medidas diversas que podem ser mais bem propagadas e implementadas preventivamente por produtores rurais, como o manejo agronômico adequado, o uso estratégico de tecnologia e monitoramento, o investimento em gestão financeira e logística, sendo meros exemplos mencionados na citada audiência pública.
Quando a crise já está instalada, além da recuperação judicial, a prática especializada em reestruturação e insolvência oferece diversas alternativas, especialmente para devedores com patrimônio, como os proprietários rurais. Isso permite a adoção de medidas prévias e menos onerosas, reservando os caminhos mais drásticos – ou “amargos” - apenas para os casos realmente complexos.
José Afonso Leirião Filho é mestre em Direito Comercial pela PUC/SP, professor do Instituto Brasileiro de Direito do Agronegócio (IBDA) e sócio do VBSO Advogados.