Vaca, soja, aveia, amêndoas. Esses são os caminhos (uns mais tradicionais, outros mais recentes) já conhecidos para a produção de leite – animal ou vegetal.
Uma startup paulista, a Future Cow, decidiu seguir por uma rota completamente diferente nos últimos anos ao produzir um leite que não vem de animais e nem de plantas e, ainda assim, tem a mesma proteína do produto tradicional.
É que o processo produtivo da agtech envolve a fermentação de precisão, diferente do método plant based, que faz um simulacro de produtos animais à base de vegetais e grãos, e também do cell based, que envolve a reprodução células animais.
Na fermentação de precisão, a Future Cow utiliza o sequenciamento genético do DNA da proteína do leite em hospedeiros como leveduras, fungos ou bactérias.
Na sequência, esses hospedeiros se reproduzem e são inseridos em tanques de fermentação semelhantes ao utilizado na produção de cervejas e vinhos e, dali, a startup consegue extrair a proteína seca do leite.
“A gente não encosta no animal e também não tentamos fazer uma mímica do produto animal. Ele é um produto animal feito sem o animal”, resume Leonardo Vieira, cofundador e CEO da Future Cow.
A ideia, no entanto, não é vender o produto ao consumidor final. A startup trabalha no modelo B2B, fornecendo a proteína para que indústrias de laticínios possam fabricar produtos como queijos e sorvetes.
“Uma indústria tem que mover todos os dias milhares de litros de leite da fazenda, de cooperativas, para dentro da fábrica deles. É praticamente uma operação de guerra, a parte mais difícil do negócio deles”, diz Vieira.
A startup almeja montar suas estruturas dentro das plantas dos laticínios. “Quando a indústria vê a oportunidade de a gente colocar o nosso tanque de fermentação dentro da fábrica e ajudar a cortar ou reduzir uma etapa da cadeia de supply chain, os olhos deles brilham”, afirma Vieira.
Para transformar em realidade todo esse processo, a startup abriu, no fim de 2024, uma rodada de investimentos na plataforma de equity crowdfunding Captable, com o objetivo de captar até R$ 1,5 milhão.
Em paralelo, a startup também recebeu apoios de instituições públicas de pesquisa no ano passado.
A Future Cow foi aprovada em edital de pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), do governo paulista, de R$ 1,2 millhão, e também em um programa de aceleração de deeptechs do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), organização vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, do governo federal, recebendo outro R$ 1,2 milhão.
A agtech paulista é declaradamente inspirada na startup norte-americana Perfect Day, que tem a mesma proposta de replicar a proteína do leite sem a utilização de animais e já conseguiu abocanhar US$ 750 milhões em diferentes rodadas de investimento desde sua criação, em 2014.
Empreendedor carioca, com passagem pelo setor financeiro e imobiliário, Vieira conheceu a história da Perfect Day quando morava nos Estados Unidos.
Ao retornar para o Brasil, em 2021, resolveu replicar o modelo por aqui por entender que a agropecuária tradicional não conseguirá acompanhar a demanda por alimentos no futuro.
“Com o aumento da população, hoje temos oito bilhões de pessoas no planeta, não vamos conseguir aumentar o número de animais para alimentar toda essa gente. E, com o aumento da temperatura, as práticas agrícolas vão sofrer mais ainda, você levanta mais pressão no desenvolvimento da agricultura tradicional”, argumenta Vieira.
Vieira se juntou, então, à engenheira de alimentos Rosana Goldbec e criou a Future Cow em 2023.
Já na largada, a startup recebeu um aporte pré-seed de 150 mil dólares da gestora de venture capital Antler, de Singapura, que passou a investir em startups brasileiras há três anos e já entrou em mais de 1 mil pequenas empresas ao redor do mundo.
Na sequência, a empresa obteve investimento de outra firma de Singapura, a Big Idea Ventures, com mais de US$ 100 milhões em ativos e que aplicou mais 200 mil dólares na Future Cow, sua primeira investida no Brasil.
A Future Cow passou a se dedicar, então, ao desenvolvimento tecnológico de sua produção, fazendo prova de conceito em laboratório, em tanques de fermentação de 15 litros.
“A gente passou o ano de 2024 focado em melhorar o processo, tanto melhorar as células geneticamente, quanto o processo de fermentação, que aumenta o rendimento do nosso processo”, afirma Vieira.
Em abril do ano passado, a startup deu passo a mais para alavancar sua tecnologia, ao ser selecionada no programa de aceleração do CNPEM.
“Nos próximos 24 meses, através do CNPEM, a Future Cow sai do ambiente do laboratório e passa a testar a nossa tecnologia em uma planta de fermentação em escala industrial dentro da planta do CNPEM”, explica Vieira.
Esse é o último passo antes de a startup começar a fabricar sua proteína em escala industrial, segundo Vieira.
“2025 será o ano da otimização da tecnologia. A gente pretende chegar até o final de 2025 com a tecnologia pronta para virar viável comercialmente”, planeja o empresário.
Do ponto de vista legal, a produção é amparada por uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), nº 839, de dezembro de 2023, que estabelece normas de aprovação de carne cultivada em laboratório e produtos via fermentação no Brasil.
Ainda assim, o projeto de lei nº 1999/24 corre na Câmara dos Deputados para proibir a fabricação e comercialização de leite sintético no Brasil.
A proposta, apresentada pela deputada Ana Paula Leão (PP-MG), define como leite sintético produtos “que não envolva a ordenha direta de animais, obtido por meio de processos químicos, biotecnológicos ou qualquer outra forma de engenharia molecular e que busque reproduzir as características físico-químicas e as propriedades nutricionais do leite de origem animal.”
Em novembro passado, o projeto foi aprovado pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, e ainda será avaliado pelas comissões de Indústria, Comércio e Serviços; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.
O texto não chega a citar a Future Cow e seu produto. Para Vieira, que tomou conhecimento do projeto ao ser entrevistado pelo AgFeed, o leite da startup não pode ser chamado de “sintético”.
“O nosso produto não tem nada de sintético. O processo de fermentação de precisão é um processo natural, igual ao que você faz com cerveja e vinho. Não existe nada sintético no processo”, afirma.