A safra de 2025/2026 será marcada, para muitos agricultores, como a primeira não semeada ou pela perda de parte relevante de seu patrimônio.
Após uma sequência de quebras de safras causadas por secas, estiagens e enchentes, entre entre 2020 e 2024, produtores de diferentes Estados acumulam prejuízos e, descapitalizados, não têm conseguido arcar com os financiamentos feitos para custeio da lavoura e investimentos.
As parcelas não pagas se tornaram dívidas, inadimplência e restrição para obter novas linhas de crédito. E, agora, para vários deles, se transformaram em drama, com casos de confisco de máquinas agrícolas e até leilões de terras dadas como garantia se proliferando em diferentes Estados.
Junto com eles, os tribunais de municípios em várias regiões produtoras do Brasil assistem a embates jurídicos em torno da legalidade das ações dos credores, com diferentes teses sendo defendidas de forma isolada ou coletiva pelos defensores dos devedores.
No início de setembro, por exemplo, a 1ª Vara Cível de Cornélio Procópio, no interior do Paraná, determinou que fossem devolvidas a um produtor rural 18 maquinários agrícolas apreendidos em uma fazenda pelo Banco John Deere por falta de pagamentos.
As colheitadeiras, plantadeiras e tratores - que somam próximo de R$ 50 milhões - voltaram ao produtor no dia 9 de setembro, três dias depois do confisco.
No interior do Rio Grande do Sul, onde secas, estiagens e enxurradas levaram a cinco anos de perdas consecutivas em algumas regiões, a crise e o número de produtores em crise atemorizam cada vez mais produtores.
Produtor de soja em Tupanciretã, Ricardo Lopes de Castro tenta impedir que a fazenda de 100 hectares, onde mora, vá a leilão, previsto para ocorrer no dia 20 de outubro.
Acumulando perdas de até 40% do plantio entre 2021 e 2024, nos últimos anos Lopes não conseguiu mais arcar com os pagamentos. A dívida de R$ 2 milhões é fruto de financiamentos feitos e refeitos para custeio da lavoura e, de acordo com agricultor, inflados por juros abusivos.
Correndo contra o tempo para impedir o leilão da propriedade, com valor estimado em R$ 8 milhões, o produtor de 58 anos, pela primeira vez, não irá plantar nada. Com restrições de crédito e tremendo novas perdas, deixará o campo vazio.
Entre a notificação e a data marcada para o leilão, o produtor relata que teve apenas apenas 15 dias para tentar impedir a ação - o que até esta quinta-feira, dia 15 de outubro, não havia conseguido.
“O banco me ofereceu, em 2022, uma linha de crédito com alienação fiduciária, tendo as terras como garantia. Além das perdas daquele ano, vieram mais duas, em 2023 e 2024, com as enchentes. Desde 2021, tive um prejuízo médio anual de mais de R$ 900 mil”, calcula Lopes.
Também com risco de perder em um leilão 6 hectares de um total de 10 hectares na região noroeste do Rio Grande do Sul, Gilmar Kappes não comemora uma safra cheia desde 2020.
Neste tempo, viu a produtividade cair de 60 sacas por hectare para 12, em 2024, quando as enxurradas assolaram metade do Estado.
A última safra cheia que ele contabilizou foi no ciclo 2019/2020. Em 2020, recorda, o que ajudou a equilibrar as contas, apesar da estiagem, foi a cotação da soja, em cerca de R$ 200.
Ainda assim, diz o produtor, o resultado ao final de 4 anos de prejuízos foi uma dívida de R$ 390 mil, originada de um financiamento inicial de R$ 200 mil.
“Depois foi perda em cima de perda. Neste ano, pela primeira vez, não plantei um grão de trigo na safra de inverno. Meu nome foi para o Serasa e não consegui crédito. Coloquei só uma forrageira para proteger um pouco o solo”, explica Kappes, que vem conseguindo manter as contas básicas em dia graças à produção de leite.
Em Crissiumal, cidade onde mora, o cenário é desolador. A crise e as perdas afetaram a todos, de forma generalizada, e à economia local.
“Estamos além do fundo do poço, estamos no porão do poço. Parece um deserto, sem quase ninguém nas ruas, nas lojas. O dinheiro só circula no início do mês e quando os aposentados recebem”, relata Kappes.
Manual de crédito rural
Além de as perdas dos agricultores não trazerem retorno da produção, com o acúmulo de dívidas generalizada, em movimento comum de mercado, os bancos passaram a reduzir a oferta de crédito e restringir recursos para novos plantios.
Assim, os produtores passaram a entrar em um ciclo vicioso e danoso. Com menos renda, os investimentos na lavoura seguiram caminho opostos e foram minguando. Com menos tecnologia sendo semeada e economizado em insumos, como fertilizantes, a produção das safras caiu - reduzindo as toneladas colhidas e o dinheiro que entra no caixa.
“Os recursos e medidas anunciados pelo governo federal para apoiar os produtores demoram e não são suficientes”, afirma Arlei Romeiro, presidente da Associação dos Produtores e Empresários Rurais (Aper).
“Agora, com o confisco de máquinas, se retira do produtor qualquer possibilidade de que ele volte a produzir. E sem produzir, como pagará o que deve?”.
Criada em 2024, a associação tem como bandeira fazer valer uma regra prevista desde 1995, no Manual de Crédito Rural – uma espécie de guia para o segmento elaborado pelo Banco Central –, que prevê o direito de prorrogação e alongamento de dívidas geradas por quebras de safras geradas por eventos climáticos.
Para solicitar esse prazo extra, mantendo os mesmos juros iniciais, Romeiro sinaliza que seria necessário apenas formalizar o pedido juntamente com um laudo assinado por um engenheiro agrônomo ou profissional habilitado a aferir o volume de quebra da safra e as causas.
“Esse regramento se equipara a um modelo de securitização coletiva para estimular o plantio, mas quem busca esse direito é ignorado pelos bancos”, diz Romeiro.
“Alguns inclusive se recusam a aceitar pedido e oferecem linhas de crédito ainda piores para pagar o débito, o que inclusive é ilegal”.
Nos raros casos de sucesso em que o débito é alongado, ele é obtido na Justiça. Mas já sem capital, nem todos têm recursos para isso. Outros temem sofrer retaliação do sistema, especialmente em pequenas cidades onde não há mais do que um ou dois bancos.
Romeiro narra que os agricultores temem ser prejudicados posteriormente, quando voltam a pedir crédito.
Já o caminho do judiciário tende a se ampliar como forma, ao menos, de impedir perda de patrimônio e confisco de máquinas. No escritório do advogado Raphael Condado, paranaense que obteve na 1ª Vara Cível de Cornélio Procópio a devolução das máquinas confiscadas pelo Banco John Deere, a procura pelo serviço pode ser um termômetro do que virá pela frente.
Entre 2020 e 2024, as consultas ao advogado sobre temas semelhantes somavam cerca de 40 casos e aumentaram mais de 100% desde então.
“Com as crises climáticas recorrentes, a busca de produtores por mais informações sobre a securitização e a negociação de dívidas bancárias chegou a cerca de 50 apenas no último ano”, destaca Condado.
“Em menos de uma semana, chegaram sete demandas ao escritório, depois da decisão da Justiça que devolveu as máquinas ao produtor paranaense”.
O advogado explica que a securitização prevista no Manual de Crédito Rural ainda foi reforçada, especialmente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), partir de 1998, culminando com a edição da Súmula 298, em 2004. Então, a prorrogação passou a ser comumente chamada de alongamento de crédito rural.
Procurado pelo reportagem do AgFeed, o Banco John Deere não se posicionou sobre a decisão da 1ª Vara Cível de Cornélio Procópio e nem sobre o caso em questão, afirmando que “trata com confidencialidade todas as informações relativas a clientes, contratos e processos judiciais, reportando, quando cabível, aos órgãos reguladores e fiscalizadores competentes”.
Assim como os produtores, a instituição alega seguir “rigorosamente as normas do Manual de Crédito Rural e demais regulamentações aplicáveis ao setor” e que cada solicitação de renegociação é analisada individualmente, considerando critérios técnicos, financeiros e regulatórios.
Também acionada pelo a AgFeed, a Febraban informou que não comentaria decisões judiciais envolvendo os bancos associados e defende que as instituições financeiras têm autonomia para conceder crédito de acordo com suas políticas internas de risco e as normas estipuladas pelo Banco Central.
A entidade também ponderou que cada instituição é responsável “por zelar pela integridade de suas carteiras de crédito, utilizando os meios legais para manter a saúde das carteiras”.
Protesto
“Aqui estão em jogo não apenas dinheiro e máquinas, mas vidas. Pelo Interior do Estado se multiplicam casos de suicídios por produtores desesperados, que tiveram suas máquinas confiscadas e sem recursos em crédito para plantar a safra 2025/2026”, alerta o presidente da entidade.
Realizada em setembro deste ano em Esteio (RS), a Expointer, uma das maiores feiras de agronegócios do Brasil, foi o local escolhido por produtores para chamar a atenção ao reflexo da crise sobre a vida do produtor rural.
A entidade levou ao centro do desfile dos animais grandes campeões da feira 23 coroas de flores representando suicídios que teriam sido cometidos por agricultores gaúchos devido ao grande volume de dívidas acumuladas desde o ano de 2020.
Romeiro alerta que, a cada dia que se aproxima de um novo período de plantio, esses casos irão aumentar quando produtores começarem a se deparar com a realidade de que, neste ano, deixarão de semear.
Resumo
- Cresce o número de confiscos e leilões de terras por inadimplência de produtores após anos de perdas climáticas e dívidas acumuladas
- Agricultores buscam na Justiça a aplicação da regra de alongamento de crédito rural prevista no Manual de Crédito Rural do BC
- Entidades do setor alertam para o risco social e emocional da crise, que já levou a casos de paralisação de plantios e até de suici]ídios