Considerado um “antibiótico” e cultivado para quebrar o ciclo de doenças nas lavouras de soja, o trigo plantado no Cerrado é apontado como a solução para a autossuficiência brasileira no setor.
Com variedades de alta qualidade e produtividade, a cultura tem crescido em área e atraído investimentos para a região.
O potencial da região é estimado em 3,5 milhões de hectares aptos para o cultivo de trigo - 3 milhões de hectares de sequeiro e 500 mil hectares para irrigado - mais que o dobro da área cultivada atualmente no Brasil.
A produtividade potencial do trigo no Cerrado fica entre 6 toneladas a 7 toneladas por hectare. É o dobro da média do Sul do País, onde está concentrada quase 90% da produção atual. .
Referência no estudo e desenvolvimento de variedades adaptadas à região, Julio Cesar Albrecht, pesquisador e especialista em melhoramento genético da unidade Cerrados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), projeta uma área de até 1 milhão de hectares com trigo entre São Paulo, Minas Gerais, estados do Centro-Oeste, Distrito Federal e Bahia no curto e médio prazo.
Só essa área e o aumento da produtividade conseguiriam cobrir o déficit entre 4 milhões e 6 milhões de toneladas para atender a demanda brasileira anual, que hoje está em 12 milhões de toneladas de trigo.
Quando chegou ao Cerrado, há 40 anos, Albrecht encontrou apenas 1,5 mil hectares com a cultura de variedades adaptadas à região Sul. Com o desenvolvimento de novas cultivares pela Embrapa, principalmente a BRS 264, a cultura avançou por lá.
“Inicialmente, eram variedades do Sul, depois variedades que trouxemos do Centro Internacional de Melhoramento de Milho e Trigo, no México. Aí, começamos a cruzar e criar novas cultivares”, lembrou o pesquisador. As variedades desenvolvidas são cada vez mais resistentes às pragas como Brusone, à seca e ao calor e não precisam tanto do frio como as do Sul.
Hoje são cerca de 350 mil hectares do trigo sequeiro, cultivado entre março e julho no período da safrinha após a colheita das culturas de verão, e entre 60 mil e 70 mil hectares do trigo irrigado, cultivado entre maio e setembro no Cerrado.
“O produtor precisa plantar porque o trigo quebra o ciclo de doenças da soja, principalmente fusarium, reduz infestação de nematoides, de plantas daninhas, e diminui aplicações de herbicidas, além de manter o solo saudável na rotação de culturas”, explicou Albrecht.
Segundo ele, quando o produtor viu as vantagens do trigo, começou a expandir áreas e moinhos foram atraídos para a região. Entre essas processadoras está a da Cooperativa Agropecuária da Região do Distrito Federal (COOPA-DF).
Com 200 cooperados, 30 deles triticultores, a cooperativa localizada em Paranoá (DF) foi pioneira na região e trabalha há 35 anos com a cultura, de acordo com Claudio Malinski, consultor e associado. O moinho de trigo da COOPA-DF tem 31 anos e capacidade anual de processamento de 18 mil toneladas já ocupada.
Segundo Malinski, a cooperativa tem projeto já pronto para a construção de um novo moinho, com capacidade de processamento de 180 toneladas por dia, ou mais de 60 mil toneladas por ano, e da infraestrutura de recepção e armazenamento, com custo estimado de R$ 85 milhões
Mas, na atual conjuntura, com taxa básica de juros em 15% ao ano, o investimento é inviável, de acordo com o consultor.
“Estamos aguardando baixar o custo financeiro, a taxa de juros, para poder implantar o projeto que além do moinho novo, inclui silos, toda a infraestrutura necessária para receber, armazenar e depois industrializar”, disse.
A COOPA-DF produz a marca de farinha Buriti, comercializada para panificação, atacado e varejo em Brasília e no entorno da capital federal, e Malinski elogia a matéria-prima desenvolvida e fornecida pela Embrapa para o cultivo.
“Os trigos que a Embrapa desenvolveu têm características industriais boas. Além disso, o ambiente favorece muito e o trigo tem uma sanidade muito boa se comparada à do Sul, principalmente no quesito de toxinas”
A excelente qualidade do trigo do Cerrado é destacada pela Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo).
“A produtividade não deixa nada a desejar nas grandes regiões agrícolas do Brasil e com uma vantagem: o trigo está dentre os melhores já cultivados no Brasil”, resumiu Eduardo Assêncio, superintendente da entidade que reúne as processadoras do cereal.
Em junho, uma comitiva de mais de 40 pessoas liderada pela Abitrigo visitou fazendas e processadoras de trigo na região. Assêncio voltou com um veredito. “A dúvida que eles tinham era se o trigo tinha qualidade para atender ao mercado. E a gente experimentou o trigo e é muito bom”.
O recado de volta da Abitrigo aos produtores é que o mercado é comprador e que a região é estratégica na oferta. “A região central do Brasil é logisticamente muito interessante. Dali, abastece o Brasil inteiro, diferentemente de um trigo, por exemplo, do Rio Grande do Sul, que tem dificuldade enorme de sair de lá para ir para outras regiões”, afirmou o executivo da Abitrigo.
De olho na expansão do trigo, a gigante SLC tem planos ousados para a cultura nas suas lavouras no Cerrado. Em julho, quando o AgFeed visitou a fazenda Pamplona, em Cristalina (GO), famosa pelo algodão, diversos talhões com trigo chamaram a atenção da reportagem.
Técnicos da companhia e dados da empresa mostraram que o cultivo quase experimental de 30 hectares em 2019/2020 saltou para mais de 3 mil hectares de trigo em 2023/2024 na SLC. A expectativa era atingir 5 mil hectares no curto prazo, de acordo com relatos locais.
Desde então, o AgFeed procurou a empresa para detalhar a expansão das lavouras de trigo. Mas, até a publicação desta reportagem, nenhum porta-voz foi disponibilizado pela SLC para falar sobre o avanço da cultura no Cerrado.
Resumo
- Trigo no Cerrado pode garantir autossuficiência brasileira, com alta produtividade e novas cultivares da Embrapa.
- Cultura melhora o solo, combate doenças da soja e tem qualidade reconhecida pela indústria e pela Abitrigo.
- Investimentos avançam com planos de novos moinhos e expansão rápida de áreas por cooperativas e grandes grupos.