Los Banos (Califórnia, EUA) - Quando a Califórnia sequer existia como um estado, em 1850, um imigrante alemão, Henry Muller, plantava a semente do que viraria, mais de 170 anos depois, uma fazenda modelo em práticas de agricultura regenerativa nos Estados Unidos.

No começo o foco foi pecuária. Ele chegou a ter um açougue em San Francisco, em uma época em que a California crescia muito em função da corrida pelo ouro.

Ao longo dos anos, foi comprando terras e migrando para a agricultura. Atualmente, a Bowles Farming tem 11 mil acres de lavouras, o que equivale a 4,5 mil hectares, uma área pequena para os padrões do Cerrado brasileiro, por exemplo, mas muito extensa se considerado o perfil de pequenas propriedades na Califórnia.

O AgFeed visitou a principal fazenda do grupo que fica em Los Banos, a cerca de 130km de San Jose. O objetivo foi ver o robô agrícola da Aigen em operação nas plantações de algodão orgânico, uma forma de eliminar plantas daninhas sem usar agroquímicos.

O uso da tecnologia é uma das marcas da fazenda, que possui diversas certificações ligadas a padrões ESG.

“Sou a sexta geração da família envolvida no negócio. Sempre tivemos interesse em tecnologia e agricultura de precisão, são diversas aplicações que nos tornaram mais competitivos. Levamos muito a sério nosso papel como produtores de fibras e alimentos. E também como guardiões da terra”, disse Cannon Michael, CEO da Bowles Farming, em entrevista exclusiva ao AgFeed.

A principal cultura para o grupo é o tomate, são 150 mil toneladas por ano. Há destaque também para a produção de melões e de algodão, além outros cultivos de hortifruti como alho, cenoura e cebola.

Michael contou que o caminho de práticas mais sustentáveis foi adotado bem antes de o termo “agricultura regenerativa” ficar mais conhecido.

“A Califórnia é um lugar interessante neste sentido, porque as leis são bastante avançadas. O governo exige muita proteção aos trabalhadores e ao meio ambiente. Temos regras específicas sobre qualidade do ar, exposição ao calor, entre outros, diferentes de outros lugares. Ao longo do tempo sempre buscamos isso. Acredito que uma fazenda que não está em constante evolução não sobrevive por muito tempo. Cuidar do solo é essencial, é a base para tudo”, defendeu ele.

Do total de áreas cultivadas pela Bowles, considerando terras próprias e arrendadas, 9% são plantações orgânicas (especialmente algodão) e o restante está no sistema convencional, porém com fortes investimentos em ações para conservação da água e no uso de energia solar. Logo na entrada da fazenda já é possível ver uma área extensa de painéis solares.

“Nossa fazenda está cercada por uma área muito especial, temos terras alagadas e reservas naturais, importantes para as aves migratórias. É um ambiente único ao nosso redor”, ressaltou.

Em diversos momentos na entrevista, Michael também ressaltou que um ponto crucial da agricultura regenerativa é o foco no cuidado com as pessoas que fazem o trabalho.

“A agricultura é uma atividade muito dura, com dias longos, muito esforço para levar os alimentos até as pessoas. Fazemos muito para apoiar nossos funcionários e também seus filhos. Temos um programa de bolsas de estudo, distribuímos materiais escolares para todas as crianças. E também temos um programa para ajudar nossos funcionários a progredirem na carreira. Muitos dos líderes atuais da empresa começaram como funcionários operacionais e foram promovidos, isso é algo mais recente e muito positivo”.

O desafio para obter um diferencial de preço

Na agricultura americana, assim como no Brasil, os produtores consideram que ainda estão longe de receber uma justa valorização pelas práticas mais sustentáveis.

Quando consideradas as áreas próprias da Bowles, entre 20% e 25% da produção são orgânicos. O CEO do grupo disse que é mais difícil implementar uma certificação em área arrendada.

Ele contou ao AgFeed que, no começo, era possível ter uma margem melhor para os orgânicos porque “o prêmio de preço era significativamente mais alto”.

Com o passar do tempo, porém, ele diz que os preços caíram, enquanto os custos ficaram entre 40% e 50% mais altos. “Em sistemas orgânicos é mais difícil controlar certos problemas. As ferramentas que temos para lidar com pragas e doenças orgânicas nem sempre são tão eficazes”.

“Se antes tínhamos um prêmio de quase o dobro sobre o convencional, hoje esse prêmio caiu para cerca de 15% a 20% acima”, afirma. “Então temos que avaliar com cuidado se vale a pena continuar, porque há mais risco, mais custo, e se os preços continuarem caindo pode não ser sustentável”.

Ainda assim, ele admite que o preço do orgânico segue superando o produto tradicional, em função de uma fatia entre 7% e 10% da população que busca esses alimentos.

Já no caso das demais certificações obtidas pela fazenda, especialmente em agricultura regenerativa, Michael diz que ainda não viu “o consumidor dizer: ‘eu quero isso e estou disposto a pagar 20% a mais’, ainda não chegamos nesse ponto”.

A Bowles tem constatado o interesse de marcas em comprar de fazendas com essas certificações em função do que chama de “risco reputacional” relacionado à sustentabilidade, porém ainda sem sinais claros do que o mercado estaria disposto a pagar.

Foco nas novas tecnologias

Enquanto a remuneração não é ideal, o CEO da Bowles diz que o caminho é seguir buscando eficiência, o que passa por novas tecnologias. O executivo se mostrou animado com os testes que vem sendo feitos com o robô da Aigen, que faz uma “capina” automatizada, porém ainda sem resultados que possam ser divulgados. Outras plataformas semelhantes também estão sendo testadas.

“Estamos animados por haver empresas interessadas em investir para ajudar a resolver esses desafios, mas ainda não vimos uma solução perfeita”, ponderou. “Por isso temos várias colaborações diretas com empresas na fazenda, queremos contribuir para o desenvolvimento das tecnologias”.

Para monitorar pragas e doenças e o desenvolvimento das lavouras, a Bowles já usa também drones, imagens de satélite e índices de vegetação NDVI, além de inteligência artificial em processos administrativos.

No clima da California, a irrigação é uma necessidade, por isso a fazenda também usa sensores para medir a umidade do solo. O sistema mais amplamente adotado é a irrigação por gotejamento. “Tivemos retorno direto em economia e aumento de produtividade e qualidade”.

“Também monitoramos o uso de energia elétrica e o desempenho dos equipamentos, usando machine learning para acompanhar o consumo de cada bomba e poço. Mas primeiro testamos com cautela, não investimos em coisas que não dão retorno, porque as margens na agricultura são apertadas e investimentos errados podem ser perigosos”, disse o CEO.

Ao lado de Derek Azevedo, que é vice-presidente da Bowles, o executivo reforçou que a tecnologia hoje em está em todas as frentes, desde o GPS dos tratores até a IA no escritório, o que tem sido importante na hora de atestar as práticas adotadas junto às auditorias que concedem as certificações.

A demonstração do robô da Aigen, por exemplo, fez parte de um programa de incentivo da AWS (Amazon Web Service) que dá suporte a startups que esteja apresentando soluções em relação às mudanças climáticas.

“A AWS serve como infraestrutura para várias soluções que estamos experimentando. Eles têm ferramentas muito úteis para soluções com drones, da Aigen, etc. Funciona como um alicerce tecnológico”.

Expandir práticas de agricultura regenerativa está entre as prioridades. Assim como já vem ocorrendo no Brasil, a Bowles planeja testar o uso de pó de rocha e de biochar.

”Temos um centro de compostagem na fazenda, que tem sido um sucesso. Ao transformar em composto, reduzimos emissões de metano e ainda melhoramos a qualidade do solo, a capacidade de retenção de água e podemos reduzir o uso de fertilizantes”, destacou Michael.

Derek Azevedo contou que querem continuar explorando o uso de microrganismos, novas estratégias de nutrição e resiliência e aprimorar o sistema de coleta de dados da fazenda.

“Tecnologias como drones de pulverização e novas formas de controle de plantas daninhas também estão no radar. Quando surgir algo eficiente, vamos adotar. A fazenda está aí há 165 anos porque estamos sempre melhorando e mantendo o que funciona”, disse ele.

O plantio direto ainda não é adotado em todas as culturas. No caso do algodão o controle da lagarta rosada (pink bollworm) obriga os agricultores por lei a não deixar resíduos no solo.

“Para culturas com exigências rigorosas de segurança alimentar, como algumas hortaliças, é difícil adotar o plantio direto. Mas reduzimos a profundidade do preparo e fazemos práticas mais conservadoras, principalmente porque temos irrigação por gotejamento, que não exige grandes movimentações do solo”.

Os executivos da Bowles reclamam que estão sendo muito abordados por diferentes empresas, quando o tema é o uso de biológicos. "Queremos que digam: pode testar, se funcionar, no ano que vem você compra mais. Buscamos esse tipo de parceria. Acreditamos que explorar essa parte biológica do solo é a próxima grande fronteira de ganhos, mas ainda há muita incerteza, porque tem gente demais oferecendo soluções demais” afirmou Michael.

Tarifaço de Donald Trump

Um assunto recorrente entre agricultores dos Estados Unidos é a escassez de mão de obra. A Bowles diz ter optado por pagar “bons salários, com ótimos benefícios, e por isso manter um grupo de 60 funcionários o ano todo, que está muito satisfeito”.

Cannon Michael admitiu, porém, que está preocupado com as mudanças regulatórias do governo Trump que poderão trazer problema futuros. O trabalho de colheita em culturas como o alho, por exemplo, demanda muita mão de obra e é feito por meio de parcerias, sazonalmente.

Sempre que possível, o grupo tem buscado automatizar operações. Na colheita de algodão da fazenda, diz ter reduzido de 25 para 5 o número de pessoas envolvidas.

“Gostamos de empregar pessoas, mas também precisamos ser realistas. A mão de obra na Califórnia é muito cara, por causa dos salários e encargos. Então estamos sempre buscando soluções mais eficientes”.

Michael conta que, embora não tenha sentido um impacto direto da política de Trump, tem amigos fazendeiros do Sul do estado que estão enfrentando dificuldades. “Trabalhadores que não querem mais ir para o campo, por exemplo. Se isso acontecer conosco, será um desastre”.

Ele diz que houve aviso nas escolas de que poderia haver fiscalizações do sistema de imigração.

“Mesmo que isso ainda não tenha afetado a nossa operação diretamente, causa muito medo e insegurança. E isso atrapalha o desempenho no trabalho. Ninguém trabalha bem com medo. E estamos falando de pessoas honestas, trabalhadoras, fazendo um trabalho que muita gente não quer fazer. Ninguém colhe alface por 12 horas por dia e depois vai chefiar um cartel. É lamentável que essa seja a imagem que tentam passar”.

Considerando todos os funcionários envolvidos ao longo do ano nas atividades sazonais, a Bowles calcula que gera empregos para um numero entre 350 e 450 pessoas. A grande maioria é de imigrantes que, segundo Michael, estão todos contratados com a documentação exigida por lei, até mesmo por meio de programas que permitem a vinda de trabalhadores temporários com visto específico.

“Eu diria que a maioria das pessoas que trabalham conosco é de origem hispânica — seja diretamente do México, seja da América Central. A América é, afinal, um país de imigrantes. Nossa fazenda foi fundada por imigrantes. E ao nosso redor há famílias italianas, bascas, portuguesas… o vale é muito diverso. Acho que quase todas as pessoas que conheço são descendentes de imigrantes”, ressalta o CEO. O COO Derek Azevedo, por exemplo, é português.

Para 2025, a Bowles espera um faturamento semelhante ao ano passado, com boa lucratividade, mas abaixo de anos anteriores. A empresa não divulga dados de receita.

Cannon Michael diz que há planos de ampliar a produção em novas áreas. “Compramos algumas terras nos últimos anos e seguimos ativamente em busca de oportunidades para expandir. Nosso objetivo é crescer de forma razoável nos próximos anos”.

A Bowles já chegou a ter terras de cultivo no Uruguai. “Aprendemos bastante com essa experiência. Mas nosso foco principal, por enquanto, continua sendo a Califórnia”. Produtos como amêndoas e algodão têm como foco a exportação, assim como a melancia, vendida especialmente para o Canadá.

Os dois executivos da empresa nunca estiveram no Brasil, mas dizem estar acompanhando de perto as notícias que envolvem as tarifas americanos sobre os produtos agrícolas brasileiros.

“Sei que muitos estão de olho no Brasil. É um país com muito potencial, embora ainda haja desafios — como a questão da infraestrutura e também questões ambientais que têm sido mais monitoradas”, disse Michael.

Ele não vê os brasileiros como concorrentes, afinal a Bowles não produz soja e, no caso do algodão, cultiva um tipo específico, o Pima, para tecidos diferenciados.

Em relação às tarifas, considerou uma medida do governo americano inadequada.

“Não gostamos de barreiras como tarifas e subsídios que distorcem o comércio. Queremos competir com base em qualidade, produtividade e consistência. E não com intervenções de mercado.”

Michael defende um comércio “justo e aberto” com os vizinhos e com os demais países.

“Entendemos que o presidente está tentando redefinir algumas relações internacionais, mas o ideal é manter essas parcerias. Claro que também precisamos evitar distorções, produtos que entram com vantagens injustas. É uma situação delicada e complexa. Nosso objetivo final é ter acesso aos mercados, poder vender e comprar produtos com preços justos. Prefiro mercados abertos, sem interferência governamental, funciona melhor assim”.

Ele diz ter parentes que cultivam laranjas nos EUA, mas entende que mesmo que o suco brasileira seguisse tarifado, isso não mudaria a intenção de plantio.

“Quando se impõe uma tarifa, ela pode ser removida depois. E os agricultores precisam de estabilidade. A gente quer vender de forma justa. Sempre avaliamos novas culturas e novas oportunidades. Mas o café, por exemplo, talvez não se adapte tão bem à nossa região. Mesmo assim, seguimos sempre atentos”.

Resumo

  • Com mais de 165 anos, a californiana Bowles Farming é referência em agricultura regenerativa e uso de tecnologias nos EUA
  • CEO da empresa, Cannon Michael, afirma que prêmios de preço caíram e o mercado ainda não valoriza essas práticas de forma justa
  • Ele critica política de imigração e de tarifas do governo americano e afirma perferir "mercados abertos, sem interferência governamental"

Placa próxima à entrada de uma ds fazendas do grupo na Califórnia

Paineis solares instalados logo na entdada da fazenda: investimento em práticas sustentáveis

Robô agrícola em lavoura do grupo: tecnologia para combater escassez de mão de obra