Chocolate, café, leite em pó, ração e até “baby food” de baixo carbono. O desafio da gigante mundial de alimentos Nestlé para atingir metas de redução nas emissões de gases causadores do efeito estufa está acelerando uma proximidade cada vez maior da empresa com os produtores rurais.
Em entrevista exclusiva ao AgFeed, a gerente executiva de agricultura sustentável da Nestlé Brasil, Bárbara Sollero, explicou que a empresa acaba de criar uma área específica que tem como principal objetivo incentivar a integração com produtores rurais e garantir que a companhia passe a adquirir cada vez mais as matérias-primas de “baixo carbono”.
Zootecnista por formação, Bárbara tem 14 anos de Nestlé e uma longa experiência na implementação de programas junto a produtores de leite. Até pouco tempo, a prioridade era melhorar qualidade do produto e garantir a segurança alimentar.
São temas que continuam importantes, mas que agora demandam muito mais das grandes empresas de alimentos. É preciso fazer a rastreabilidade dos produtos, garantir que não há inconformidades pelos padrões ESG e, mais que isso, buscar nas fazendas formas de produção que reduzam as emissões de carbono, para dar conta das metas que companhias como a Nestlé precisam atingir, globalmente.
A multinacional assumiu o compromisso de reduzir 20% das emissões de CO2 na atmosfera até 2025, avançar para 50% até 2030 e ser uma empresa Net Zero em 2050.
Sollero explica que 70% das emissões da Nestlé no Brasil estão relacionadas aos ingredientes usados na produção de alimentos, ou seja, naquilo que vem do campo.
Em função disso, há uma meta para o Brasil, que é chegar em 2025 já comprando 30% da matéria-prima de produtores rurais que adotam práticas regenerativas.
Atualmente, Sollero está envolvida nos projetos de parceria não apenas com produtores de leite, mas também no café e no cacau. A empresa garante que está avançando em ritmo satisfatório no País e somente nos programas de cacau e leite está investindo R$ 260 milhões. Já no café a Nestlé menciona R$ 1 bilhão em investimentos para as diferentes etapas, incluindo o processo industrial e a sustentabilidade como um todo.
A Nestlé Brasil é a maior compradora e fornecedora de café verde para o grupo no mundo, com uma produção entre 200 mil e 250 mil toneladas de cafés.
A cada ano a empresa adquire 1 bilhão de litros de leite fresco – neste produto a operação brasileira também é a maior do mundo para a companhia. Ainda compra, anualmente, 80 mil toneladas de cacau.
A estimativa é de 24% do leite adquirido já seja proveniente de fazendas que adotam práticas de agricultura de baixo carbono. O trabalho de assistência técnica incentiva não apenas o aperfeiçoamento da pecuária em si, mas também uma transformação no cultivo dos grãos que viram alimentação para o gado leiteiro.
Bárbara Sollero diz que o foco são ações de mitigação. “Eu não consigo zerar, por exemplo, a vaca. Ela vai sempre emitir metano, é fisiológico dela. Então para neutralizar a minha operação precisamos ter uma fonte de compensação, que é o trabalho que estamos fazendo com agricultura regenerativa”.
É possível sequestrar carbono no solo ao adotar plantio direto e cultivos de cobertura, além de reduzir emissões por meio de uma substituição gradual de químicos por biológicos, por exemplo. Por isso a expectativa é elevar o número de produtores no programa para 30%, já em 2025.
No café o índice de agricultura regenerativa já está em 90%, segundo a executiva. Isso porque é uma cultura perene, que não tem revolvimento anual do solo. A renovação do café conilon vai de 8 a 12 anos e do arábica, acima de 20 anos.
Já no cacau 60% dos fornecedores estão alinhados com o baixo carbono. A expectativa também é otimista pelo fato de ser outra cultura perene, que só “mexe” no solo no intervalo de 20 anos. A meta é seguir avançando para chegar em 100% em 2025.
“O objetivo global era de 30% nessas cadeias, por isso quando se olha para café e cacau, já estamos muito avançados, são culturas que já vinham implementando práticas regenerativas e que nos ajudam a chegar nestes números quando se usa nossa ferramenta de avaliação”, explica Sollero.
Enquanto isso, a Nestlé diz o desafio segue crescendo porque a produção e a demanda, principalmente por café e cacau estão aumentando. No leite o consumo é considerado estável mas a oportunidade de avançar em novas práticas é maior se comparada a outras cadeias.
Recompensa aos produtores rurais
A Nestlé cita três programas principais que visam dar suporte aos produtores rurais na chamada “transição dos sistemas alimentares”.
No caso do café, a empresa diz que já tem 100% do volume “certificado e sustentável”. São 1,5 mil fazendas que recebem visitas anuais, portanto a Nestlé garante que “sabe onde eles estão”. O programa é chamado no Brasil de “Cultivado com respeito” e, lá fora, de Nescafe Plan.
Ao dar assistência técnica, ajudar na sustentabilidade econômica, social e ambiental, a empresa acredita que um dos ganhos aparece na produtividade.
Ainda assim, a Nestlé aposta no pagamento de um diferencial pela saca de café para produtores engajados no programa, que atualmente varia entre 1,5% e 2% sobre o valor de prêmio sobre o valor de mercado.
“O café é uma commodity, que já tem o mercado externo, já explorado há muito tempo, é grande exportador, já tem uma série de outras certificações, que vão conferindo diferenciais, dentro da saca do produtor”, diz Bárbara.
Até 2026, a Nestlé diz que vai investir R$ 1 bilhão na cadeia do café no Brasil. Neste caso, o cálculo considera a aplicação de recursos em atualizações tecnológicas que envolvem as linhas de produção e também as iniciativas sustentáveis.
Na cadeia do leite, o sistema que oferece “bônus verde” aos produtores que fornecem para a Nestlé também vem avançando.
“Entendemos que a forma que temos para engajar esses produtores nessa jornada de melhoria contínua e nessa transição, é com esses programas de reconhecimento do estágio e do nível de aplicação de práticas que cada fazenda está adotando”, explica.
O programa do leite, chamado de Nature por Ninho, “é acoplado a um sistema de pagamento robusto”, diz Bárbara. Os produtores são divididos em categorias, que são bronze, prata, ouro e diamante. “Então à medida que ele vai avançando na jornada, o diferencial por litro de leite dele também é diferenciado, e é isso que vem engajando o produtor”.
O bônus no preço do leite pago ao produtor varia de 2% a 6% , dependendo da categoria que a propriedade está enquadrada.
Sollero lembra que na cadeia do leite, especificamente, as práticas ainda são muito básicas, por isso o Brasil teria “uma oportunidade absurda de avanço em produtividade”.
A experiência vem mostrando que o produtor que investe em práticas mais modernas, segundo ela, acaba trazendo mais resiliência para o negócio e melhora as possibilidades de remuneração para todos os que estão envolvidos na atividade.
O projeto do leite, além da agricultura regenerativa e pecuária de baixo carbono, envolve temas como bem-estar animal, direitos humanos e gestão.
Segundo a Nestlé, a iniciativa já permitiu dobrar a produtividade por fazenda nos últimos 6 anos. “Hoje a produtividade média é de 18 litros por vaca, há 3 anos era de 15 litros”, afirma.
Sobre a possibilidade de que os próprios produtores rurais pudessem originar e comercializar créditos de carbono, Sollero diz que é algo “está ainda muito distante”, em função da complexidade de buscar certificações e consultorias.
“Estamos trabalhando juntos porque nosso interesse é descarbonizar o meu escopo 3, que hoje é 70% da contribuição ou das emissões da Nestlé no Brasil”.
Resultados já aparecem
Alguns dos programas de relacionamento com os produtores rurais são antigos, mas a novidade vem sendo o foco na “jornada regenerativa” que, em alguns casos, já inclui mensurações que indicam quanto foi a redução da emissão de carbono naquela matéria-prima.
Entre os produtores de leite da categoria “ouro”, por exemplo, que são 180 fazendas, foi possível verificar uma redução de 14% nas emissões, segundo Bárbaro Sollero.
“Em 2030 precisamos ter 50% das matérias-primas produzidas com a adoção dessas práticas regenerativas, que têm esse olhar macro de resiliência, de transformação de solo, mas, também, das pessoas e do aspecto econômico, das fazendas envolvidas”, reforçou.
Quem conseguir reduzir as emissões, será enquadrado em uma nova categoria, a diamante, que também terá benefícios econômicos no preço pago pelo leite.
A gerente executiva da Nestlé disse ao AgFeed que na cadeia do leite estão sendo investidos R$ 150 milhões para apoiar o processo de transição dos produtores brasileiros.
“É um valor que está em todo o programa, desde o reconhecimento, até o suporte técnico em massa. Temos muitos produtores que estão sendo acompanhados por agrônomos ou zootecnistas e veterinários para traçar esse plano de melhoria de eficiência e redução de (na emissão) de carbono”, explica.
Para mensurar a redução de carbono, a Nestlé está usando a ferramenta Cool Farm Tool, uma calculadora. “Através dos inputs de dados dos produtores, conseguimos dizer qual é a pegada de carbono das fazendas, no café e no leite, já temos isso em larga escala e assim traçamos os planos junto com a consultoria técnica e os produtores”.
Entre as práticas que estão dando bom resultado na cadeia do leite, está o uso dos dejetos dos animais para produzir adubo orgânico. A gerente da Nestlé diz que um grupo de 150 fazendas monitoradas mostrou redução de 13% no adubo químico, em função desta prática, o que deve ajudar a melhorar os índices nas emissões.
Cacau em evidência
Um dos setores com maior potencial para avançar na descarbonização, na visão da Nestlé, é a produção de cacau.
O programa Cocoa Plan já conta 6,5 mil produtores rurais, número que vem crescendo nos últimos dois anos e que representa 70% dos fornecedores da Nestlé.
A iniciativa também é baseada em pilares social, ambiental e de gestão. O investimento do programa, somente no cacau, é de R$ 110 milhões.
O foco principal é fazer a rastreabilidade, usando monitoramento via satélite e acompanhando de perto as questões socioambientais nas fazendas. “Desde o trabalho infantil, trabalho escravo, estamos fazendo essa gestão da parte de desmatamento também, para saber onde estes produtores estão”.
No programa do cacau, também há uma bonificação em dinheiro paga na entrega do produto ao canal de compra, segundo a empresa. A Nestlé diz que não negocia amêndoas de cacau diretamente com os cacauicultores, mas apenas através de um canal próprio.
Soja, milho e “baby food”
As demais unidades de negócio da Nestlé também vêm buscando parcerias com tradings e outros elos da cadeia para garantir produtos de baixo carbono. É o caso da Purina, negócio de ração animal, e também a fabricação de alimentos para bebês, ou “baby food”, que utiliza cereais na composição.
“É um volume pequeno, mas também temos projetos de agricultura regenerativa porque a empresa consome por exemplo o farelo de soja, que passou pelo processo de esmagamento, assim como o milho”, explicou.
Em função dos outros segmentos, segundo Bárbara Sollero, estão sendo iniciados mais três projetos de agricultura regenerativa na Nestlé. Cada um deles segue um nível de evolução e maturidade, de acordo com as prioridades que o grupo vai estabelecendo.
No projeto da pecuária de leite também são mensuradas as emissões do milho usado na silagem e do farelo de soja da ração das vacas. “Já temos um piloto para incentivar uso de farelo de soja certificado livre de desmatamento. Os grandes players deste segmento estão buscando essas soluções para que possamos ter rações de baixo carbono”.
A Nestlé diz que, em paralelo, tem atuado fortemente na comunicação com os consumidores, para que eles saibam identificar os produtos de baixo carbono e todo o trabalho feito em campo.
Uma das iniciativas foi o lançamento de uma linha de cafés chamada Origens do Brasil, considerada a primeira linha “carbono neutro do Brasil”, que envolve 34 fazendas e um trabalho de monitoramento e certificação com participação de parceiros.
Novas variedades e pesquisas
Além das práticas junto aos produtores, a Nestlé recentemente anunciou o lançamento de uma nova variedade de café que promete reduzir as emissões de gases de efeito estufa.
A cultivar de café arábica foi chamada de Star 4 e levou 10 anos para ser desenvolvida, com investimento de R$ 5,5 milhões.
Segundo a empresa, a nova variedade deve reduzir as emissões entre 36% a 41%, além de se enquadrar no mercado de cafés premium.
“Em 2021 criamos um Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento especializado em agro, que está nos dando suporte para trazer estas inovações”, disse Sollero.
A executiva revela que estudos também já vêm sendo feitos no México para medir “o efeito de diferentes nutrições nas emissões entéricas” nas vacas. Um dos desafios na pecuária mitigar as emissões de metano, mas a expectativa é de que novas pesquisas ainda demorem de 5 a 10 anos para serem divulgadas.