“O perigo mora nos detalhes”. Foi assim, parafraseando o provérbio atribuído ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Ricardo Alban, definiu o atual estágio da reforma tributária.
Aprovada pelo Congresso e promulgada em dezembro do ano passado por meio de Emenda Constitucional (EC132), a reforma precisa da aprovação de leis complementares que irão definir os detalhes do novo sistema tributário. E são esses projetos de lei, em análise no Congresso Nacional, que despertam dúvidas entre especialistas e em representantes do agronegócio.
“O agro teve vitórias importantes com a reforma, mas o tamanho do impacto vai depender de como será a regulamentação das leis que está em discussão no Congresso”, disse ao AgFeed Ana Luiza Martins, sócia da prática de Direito Tributário do Tauil & Chequer Advogados.
“Há grande chance de a reforma resultar em aumento da carga tributária para o setor”, afirma a advogada, citando pesquisa realizada pela Confederação da Agricultura (CNA), em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), no ano passado, que comparou cenários com as alíquotas existentes e alíquotas reduzidas para o agronegócio previstas no texto da reforma.
O governo federal estima que a alíquota-agregada base pode variar entre 26,9% e 27,5% - sendo 17,5% em tributos federais e 8,8% para estados e municípios.
E é esse cálculo final da alíquota o ponto que ainda causa insatisfação. “Mesmo com a reforma, essa ainda será uma das maiores taxas de tributo do mundo”, afirma Leonardo Roesler, da RMS Advocacia e Consultoria.
Cálculos da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) estimam que o produtor rural médio paga, em geral, 8,5% de impostos atualmente. Por isso, o setor está preocupado que esse índice fique muito acima do considerado um limite ideal para não provocar prejuízos.
O coordenador do Comitê Tributário da Sociedade Rural Brasileira, Marcelo Guarita, afirmou recentemente que qualquer aumento será equivocado.
“É um engano aumentar a tributação”, disse, reforçando que impacto da reforma será no médio e longo prazo.
Segundo o Cepea (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada), o agronegócio brasileiro é responsável por cerca de 25% do PIB (Produto Interno Bruto) nacional, o equivalente a R$ 2,63 trilhões.
O que diz o texto da Reforma Tributária
A Reforma Tributária substituirá cinco tributos Federais, Estaduais e Municipais existentes hoje por uma única cobrança. Ou seja, ela extingue PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS e institui a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS, que será federal), o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS, com arrecadação revertida para Estados e Municípios) e cria o IS (Imposto Seletivo). A reforma como um todo terá uma transição gradual e deve ser concluída até 2033.
Os primeiros efeitos da reforma serão sentidos a partir de 2025, quando entram em vigor modificações em normas do ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação), um tributo estadual que incide sobre a transferência de bens móveis, imóveis e direitos por herança em caso de falecimento ou doações, e do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), cobrado pelos municípios.
A implementação da CBS e do IBS será a partir de 2026. Eles irão conviver com os tributos já existentes por alguns anos até a transição total, o que tem sido apontado como um fator de aumento de custos para as empresas por exigir investimentos em equipes de contabilidade que orientem sobre como conciliar todos os tributos e evitar cobranças duplicadas.
O que mudou para o Agronegócio
A reforma adota um modelo de tributação sobre o consumo que, na visão de especialistas, pode ser positivo para determinados segmentos, em especial a agroindústria. Houve redução de 100% na tributação de produtos da cesta básica e de 60% da alíquota-base , além de alimentos destinados ao consumo humano, produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura e insumos agropecuários e aquícolas.
O texto traz ainda facilidades para os produtores pessoas físicas que faturam até R$ 3,6 milhões ao ano e prevê tratamento diferenciado para cooperativas, com regime específico de tributação com o objetivo de torná-las mais competitivas. Essa medida alcança 95% dos produtores rurais brasileiros, segundo o Instituto Pensar Agropecuária (IPA).
Apresentado em meados do ano passado, o estudo “Reforma Tributária: impactos para a sociedade brasileira”, conduzido pela FGV a pedido da CBA, mostrou que a adoção das alíquotas diferenciadas para o agro, produtos da cesta básica e demais atividades se refletem em pressão menor nos preços de bens, serviços e alimentos.
O que depende de lei complementar
Um ponto polêmico e sensível da reforma é o IS. Ele será um tributo de competência da União e incidirá sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Ele ainda depende de lei complementar, que será discutida pelo Congresso para definir critérios de classificação desses produtos, que terão taxação adicional quando comparados com os demais.
É essa indefinição que traz preocupação a setores do agronegócio, devido ao risco de sobretaxa de insumos como defensivos agrícolas (herbicidas e pesticidas), o que pode aumentar os custos de produção. Há ainda temor em relação ao uso de critérios ideológicos para construção da lista de produtos. Açúcar pode ser considerado prejudicial para a saúde? Como ficam os transgênicos, a carne vermelha, o tabaco ou a cachaça?
O anúncio de alíquota zero para a cesta básica foi comemorada, mas a lista de produtos que ficarão isentos de tributação será definida por lei complementar. Os primeiros textos de lei complementares incluíram 15 produtos nessa cesta, como arroz, feijão, açúcar e café. Mas itens como carnes, leites e farinha estão de fora.
O presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), deputado federal Pedro Lupion (PP-PR) vê a isenção da cesta básica como uma vitória, mas argumenta que, em algumas regiões, a cesta básica tem 150 itens e alguns produtos nem são alimentos. Ele defende ampliação da lista para 30 a 40 produtos.
Ana, do Tauil & Chequer Advogados, cita ainda exemplo do tamanho e da proporção que essa discussão ainda pode tomar: “O governo incluiu o óleo de soja na cesta básica nacional, mas não incluiu os óleos de milho, canola e girassol, que terão redução de 60%. Ou seja, o óleo de milho passa a ser tributado”.
Ela lembra ainda da falta de definição para alimentos orgânicos, que estarão sujeitos à mesma carga tributária que produtos tradicionais e que tendem a ser impactados pelo fato de a reforma não permitir mais a concessão de incentivos fiscais para estimular a produção desses alimentos.
No texto final da reforma, o setor de biocombustíveis também foi favorecido com tratamento diferenciado quando comparado com os combustíveis fósseis, mas o detalhe dessa diferenciação será discutido nas leis complementares.
“Ninguém nega a importância da reforma e o fato de ela organizar e simplificar o sistema tributário brasileiro”, afirma Ana. “Mas existe potencial de elevação de custos – fiscais e de administração, especialmente para o produtor rural”.
Na ponta, esse aumento de custos com operação vai se refletir nos preços ao consumidor.