O engenheiro agrônomo Guilherme Soria Bastos Filho é o exemplo de profissional do agro que já esteve em diversos lados do balcão.
Em mais de 30 anos de carreira, já foi sócio das maiores consultorias do agronegócio brasileiro, consultor do Banco Mundial, passou pela trading asiática Multigrain, chefiou a Conab e foi secretário de Política Agrícola do Mapa até 2022, quando finalmente encarou mais um desafio – ser o sucessor do ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues no cargo de coordenador do Centro de Estudos em Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas, o FGV Agro.
O centro, criado em 2006, há um ano passou a ser diretamente ligado à presidência da FGV, “andando com as próprias pernas e responsável por suas receitas e despesas”, como conta Guilherme Bastos em entrevista exclusiva ao AgFeed.
O executivo está liderando diversas iniciativas para contribuir com o setor em meio ao cenário de rápida transformação do agro brasileiro e das margens apertadas (ou inexistentes) que segmentos ligados à soja e ao milho estão sendo obrigados a lidar.
“Nós não estaríamos preocupados com questões de endividamento agora se nós tivéssemos uma cobertura mais abrangente do seguro rural no Brasil”, afirmou Bastos.
Diversas vezes, ao longo da conversa, ele repetiu que a falta de dotação orçamentária para o chamado PSR (Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural) é uma das razões para agricultores de todo o País hoje apresentarem ao governo os pedidos de renegociação e alongamento de prazo para pagar dívidas.
O coordenador do FGV Agro lembrou que o problema foi causado pela combinação de uma quebra na produção, gerada por intempéries climáticas, com preços mais baixos de commodities que reduziram as margens dos produtores rurais.
“Talvez não seja um seguro de produção, de produtividade, como normalmente é trabalhado. Mas talvez um seguro de renda, para cobrir o custo de produção, pode ser uma forma de evitar o que vimos este ano em Mato Grosso, por exemplo”, ressaltou Bastos.
Ele chamou de “poço sem fundo” o modelo de repasse de recursos públicos para o Proagro (Programa de Garantia da Atividade Agropecuária), um tipo de seguro bancado pelo Tesouro Nacional que cobre as operações financeiras de custeio de pequenos produtores, caso tenham a produtividade das lavouras comprometida, por clima ou pragas e doenças.
O ex-secretário diz que, apesar de o Proagro ter contado com cerca de R$ 2,4 bilhões no orçamento de 2023, foram gastos cerca de R$ 8,5 bilhões dos cofres públicos.
“Alguns já utilizam a expressão de ‘plantar Proagro’”, afirmou Bastos, referindo-se às críticas frequentes que o programa tem recebido por falta de um gerenciamento mais adequado.
Em entrevista recente ao AgFeed, o atual secretário de política agrícola do Mapa, Neri Geller, mencionou que uma realocação de recursos do Proagro para o PSR é uma das medidas que está em estudo pelo governo.
Guilherme Bastos afirma também que 2025 será o ano para o agro “ajeitar a casa”, após as dificuldades enfrentadas pelo setor este ano. Acredita que, possivelmente, uma recuperação real das rentabilidades no setor, só seja vista em 2026.
O coordenador da FGV Agro falou ainda sobre novos projetos que estão sendo desenvolvidos pelos times, como uma calculadora de carbono para a pecuária de corte e leite.
Confira os principais trechos da entrevista:
Com base na sua experiência diversa, entre consultorias, trading, governo e agora FGV Agro, como está vendo o atual momento do setor? É uma crise?
Eu acho que temos de novo um cenário desafiador em 2024. Não somente na questão climática, com expectativas inclusive de redução de safra, mas é uma questão de você ter um sinal amarelo, quase vermelho, em termos de rentabilidade do setor. Temos visto as movimentações, como o governo já pensando em prorrogar dívidas dos produtores. É um tema que estamos acompanhando. Temos que pensar em como resolver isso, estruturalmente. Evitar que o Brasil caia repetidamente neste processo.
O que poderia ser feito?
Um dos pontos que pretendemos trabalhar em 2024 é dar apoio ao desenvolvimento de uma política de seguro rural mais robusta. No governo passado, trabalhamos para o aumento de recursos de dotação para o PSR, mas ele não está sendo suficiente.
Por que não?
O motivo foi o aumento do preço das commodities (na safra passada) e também o aumento da sinistralidade. Esse é um ponto em que precisamos ver como conseguir uma sinalização do governo. Há uma percepção da necessidade de o governo subvencionar o prêmio do seguro rural, como acontece em todo o mundo, por ser realmente um evento catastrófico, afetando áreas extensas e diversos indivíduos ao mesmo tempo.
Como fazer isso?
Temos o Proagro sendo irrigado, por uma questão de obrigação de lei, em quase R$ 8,5 bilhões. É um programa que precisa ser revisto e modernizado. Já o PSR, que é uma efetiva parceria público privada, está com apenas R$ 1 bilhão para subvenção. Aqui no FGV Agro, consideramos este um ponto muito importante. Pensamos em criar um Núcleo de Inteligência em Seguro Rural, que ainda está em formatação. Queremos trazer temas que possam ajudar a balizar esta importante política para o governo e para o setor. Esse é um dos temas que já estamos nos dedicando e pretendemos dar uma formatação, atraindo seguradoras e resseguradoras para aprofundar isso.
O ministro Carlos Fávaro chegou a citar o ex-ministro Roberto Rodrigues como uma espécie de conselheiro, nesta busca de um novo modelo para o seguro rural. O que poderia ser feito?
O Roberto Rodrigues continua acompanhando de perto o nosso trabalho. É professor emérito da FGV, não está mais na coordenação, mas tem a sua sala aqui conosco. Eu diria que o modelo precisa ser aperfeiçoado. Quando eu estive no governo, conversei sobre isso com o economista-chefe do USDA, Seth Meyer, e ouvi que não existe um modelo único, ou um que seja melhor do que outro. Ele deve ser adaptado à realidade do setor de cada país.
Há, por exemplo, as iniciativas de promover o modelo do seguro paramétrico. Pode ser uma solução interessante para o Proagro, mas possui uma modelagem relativamente complexa. E há uma necessidade de informação que as vezes falta para viabilizar esse seguro paramétrico, como por exemplo uma maior granularidade nos dados meteorológicos.
O seguro paramétrico seria uma solução?
Eu não colocaria todas as fichas em um modelo de seguro. Dada a dimensão continental do nosso País, temos que ter um portfólio de produtos para atender. É um processo de continuar nesse aculturamento, sobre a importância de se ter o seguro. Estados e municípios podem e devem participar fomentando esse programa. No café, por exemplo, quase nunca tinha ocorrido geada em Minas Gerais, depois que aconteceu, todo mundo corre atrás.
Mato Grosso também não tem tradição de fazer seguro rural...
Sim. Com a seca que tivemos em novembro, em Mato Grosso, é um sinal de que as mudanças climáticas estão afetando a produção e de que é preciso pensar em formas de mitigação. Talvez não seja um seguro de produção, de produtividade, como normalmente é trabalhado. Talvez um seguro de renda, de custo, para cobrir o custo de produção. Mato Grosso não tem esta tradição de contratar seguro porque ainda não há produtos adequados para o perfil dos produtores do estado.
Falta incentivo para as seguradoras?
Precisamos de mais dotação orçamentária do governo e uma sinalização de uma certa previsibilidade para que a indústria possa se organizar. O recurso da subvenção deveria estar disponível no momento da contratação do seguro, e não depois. Assim, a indústria poderia se organizar melhor, qualificando peritos, corretores, lançando novos produtos. Tem um conjunto de ações importantes para dar esta sustentabilidade que a política de seguro rural precisa.
O governo mencionou o modelo mexicano. Faz sentido?
Tem o mexicano, o espanhol, o americano. Uma das coisas que pretendemos começar é retomar alguns estudos, que já foram feitos, de diagnóstico para essa questão estrutural e atualizar, trazendo de novo o benchmark. Não dá para ficar apostando apenas num modelo. Precisamos ver como montar esse quebra cabeça. E é com esse centro de inteligência que queremos ajudar nisso, com estudos técnicos, com ciência, sendo um think tank, como é para o agronegócio.
O seguro pode ajudar em momentos desafiadores como o atual?
Eu sempre enfatizo a questão do orçamento. É muito importante ter o recurso para o PSR. É fundamental para dar uma garantia ao sistema financeiro em termos de capacidade de pagamento. Nós não estaríamos preocupados com questões de endividamento agora se nós tivéssemos uma cobertura mais abrangente do seguro rural no Brasil.
Mas os recursos públicos não estão cada vez mais limitados?
Temos que olhar para o orçamento do Proagro em 2023. Foi algo em torno de R$ 2,4 bilhões, cerca de R$1,2 bilhão a mais que o PSR. E qual foi o dispêndio do governo? Quase R$ 8,5 bilhões. Portanto, tem orçamento. Por isso precisa ser reestruturado. Esse orçamento, que é um poço sem fundo no caso do Proagro, precisa ser realocado para ajudar o fomento de uma parceria público privada que dá resultado, que é o PSR. A seguradora entra com uma parte, dando um desconto ao prêmio, e o governo entra depois. Nos últimos 3 anos a situação só não ficou pior, na região Sul, por exemplo, porque teve um grande volume de indenizações oriundas do seguro e do Proagro.
Acredita que esta crise do agro seja pontual ou realmente estamos mudando de patamar em termos de demanda, produção e preços?
É um processo de reacomodação de preços relativos. Nós já vimos isso acontecer, pré e pós crise de 2008. Os preços das commodities e insumos subiram muito e depois houve deflação, voltaram aos níveis pré-crise. Não sei se vamos voltar à pré-crise desta vez, já que o volume de recursos despejados pelos países para conter os impactos da pandemia foi enorme.
Esse momento é crítico, quando há a reacomodação dos preços, porque você fica com suas margens comprimidas e os preços das commodities desaceleram mais rápido que os custos. Nesse momento você tem que ser muito cauteloso com os investimentos que você vai fazer. Uma ampla cobertura do seguro atenuaria esses impactos.
Em Mato Grosso não vai ter jeito. Vai ter que sentar e renegociar, com as tradings, com a indústria. E a gente já viu esse filme antes. A questão é a demanda de renegociação junto ao governo. Isso pode impactar o montante de recursos para o próximo Plano Safra.
Quando haverá uma recuperação?
Não vejo sinais para recuperação ainda em 2024. Estamos num momento delicado, inclusive climático, onde já existe uma sinalização da volta do La Niña para a segunda metade do ano. Por sinal, o impacto das mudanças climáticas sobre a produção é um dos temas de pesquisa do Observatório da Bioeconomia aqui na FGV. Acho que 2025 será um ano ainda para ajeitar a casa, não diria de recuperação. Isso talvez só aconteça em 2026.
Enquanto isso, o que pretende priorizar a frente da FGV Agro?
O objetivo do centro é ser um think tank, trazendo insights sobre as principais questões ligadas ao agronegócio brasileiro. É o antes, o dentro e o depois da porteira. E vai do pequeno ao grande, sem distinção. Nosso trabalho é dividido entre pesquisa, a assistência técnica, que atende demandas de empresas ou entidades e associações, os cursos e treinamentos e a parte de comunicação, que inclui a revista Agroanalysis.
Estão se dedicando à reforma tributária?
Sim, no âmbito da assessoria técnica fizemos estudos de viabilidade, análises setoriais, avaliações políticas, e, no ano passado, avaliamos o impacto da Reforma Tributária no setor agro. Conseguimos dar contribuições, criando um modelo robusto para poder fazer as simulações dos impactos dependendo das taxas projetadas para o IVA. É um time multidisciplinar formado por doutores de diversas áreas.
E quanto ao mercado de capitais?
Nós temos a área de cursos de pós-gradução, MBA e treinamentos, coordenada pelo Felipe Serigati. Queremos retomar este ano o projeto do mestrado profissional em agronegócio e também dar foco aos treinamentos executivos, que são cursos de curta e média duração. Já oferecemos cursos de mensuração de carbono em agricultura e pecuária, de análise de dados aplicada à bioenergia e planejamento tributário na sucessão familiar. Agora queremos trazer temas do mercado de capitais ligado ao agro. Devemos fechar uma parceria com empresa do setor de investimentos para isso.
É uma demanda que cresce?
Sim, especialmente por parte dos jovens, cujos filhos voltam para assumir posições na administração das propriedades. Estão conectados no celular, preocupados com hedge, preocupados em estruturar melhor suas operações. Essa mudança de mentalidade está gerando essa demanda por treinamentos. Segundo a nossa pesquisa sobre o mercado de trabalho do agro, apesar de o setor em 2023 ter reduzido a contratação de mão de obra, observou-se um aumento na formalidade e no rendimento médio. Isso mostra uma necessidade de investir cada vez mais em qualificação da mão de obra para este setor.
Mercado de carbono também está no foco?
O Observatório da Bioeconomia foi uma expansão de escopo de áreas do Observatório do ABC - Agricultura de Baixo Carbono. Em 2021, ainda na pandemia, o Roberto Rodrigues e o Daniel Vargas desenharam essa nova proposta. Trouxeram pesquisadores da área de agronomia, economia, direito ambiental e agronegócio, para estudar temas como a mensuração de gases do efeito estufa, bioenergia e regulação. A finalidade é ajudar no debate, no Brasil e nas empresas, na transição para uma economia de baixo carbono. O Observatório gera conteúdo disponível ao público. É financiado pela iniciativa privada, com participação do Itaú, Sicoob, OCB e CNA.
Quando ao papel do agro na descarbonização, como avalia?
Uma das questões que observamos são as diferenças das métricas, ou seja, a necessidade de tropicalizar as metodologias. Tem um estudo muito interessante, que divulgamos em novembro, que mostra como critérios do IPCC consideram a pecuária como se fosse uma só. Nosso total de animais confinados ainda é pequeno. Boa parte da pecuária ainda é a pasto. E, dependendo de como é feito o manejo, pode ser que no final se contabilize remoção e não emissão de carbono.
Há muita coisa para ser feita. É um setor diferente de uma fábrica, de uma planta de energia. Tem que ser visto sob o aspecto do balanço de emissões. Recentemente conversamos, por exemplo, com bancos que querem enxergar os cenários de descarbonização para linhas lá em 2050. Se cada banco tiver uma metodologia, fica complicado. É um alinhamento que está só começando.
Foi acertado o agro ter ficado fora do projeto que regula o mercado de carbono?
O agro pode ajudar a compensar emissões de outros setores. Isso independe de ele estar no mercado regulado ou não. É prematuro colocar um setor com essa abrangência toda. Não temos certificadoras suficientes, algumas internacionais levam 18 meses para executar esse trabalho. A FGV está liderando um consórcio BNDES, Imaflora, Agrotools, DSM e WRI justamente para trabalhar uma calculadora para a pecuária de corte baseada na análise de ciclo de vida. Ela vai considerar desde o bezerro até a porta do frigorifico. Será para corte e leite.
O BNDES fez a licitação pública, o consórcio foi vencedor e o projeto começou ano passado. A importância é ter um frame com números validando, discutindo as metodologias, os fatores de emissão, para construir essa calculadora para o setor. Nós esperamos que ela ajude inclusive a fazer o link com políticas públicas de financiamento. É isso que está faltando, essa transparência, esse alinhamento. A Embrapa está participando junto. São 18 meses de projeto e acreditamos que a calculadora seja lançada no início de 2025, porque ela será amplamente divulgada.
Quando Roberto Rodrigues anunciou que você o substituiria na coordenação da FGV Agro estava muito empolgado com o lançamento de um projeto chamado Brasil 2050. Como está esse assunto?
O projeto está andando, fizemos uma revisão. É algo que nunca foi feito. O Brasil não olha para frente, mesmo os exercícios de projeção de 10 anos são limitados. Enquanto isso, USDA, FAO, OCDE fazem projeções de longo prazo. Mas quando olham, são modelos que envolvem o mundo como um todo. Estamos mirando para uma geração que ainda não nasceu, que vai ter um conjunto de tecnologias e informações que nós ainda não estamos vendo. E precisamos usar a arte da modelagem para entender os impactos no setor, no mundo e no Brasil.
Quando olhamos estes órgãos internacionais percebemos uma discrepância em relação ao Brasil. Muito do que está lá sendo projetado para o Brasil, nós já ultrapassamos, não estamos bem retratados. Temos que ver o que o mundo vai consumir considerando mudanças climáticas, renda, envelhecimento da população, mudanças de hábitos alimentares, novas tecnologias.
Tem vários frigoríficos entrando em novas proteínas, de laboratório e plant based, por exemplo. Já ouvi também empresas removendo CO2 da atmosfera e virando energia pra alimentação do gado. Imagina o impacto disso para o Brasil e globalmente? Esse é um projeto que vai ter um evento para discutir. E não é curto, é de médio e longo prazo. Esse é o DNA do FGV Agro, contribuir e apoiar as discussões relevantes para o setor.