Um PDF tem circulado nos grupos de produtores, empresas e entidades ligadas ao agronegócio nesta semana. O documento, assinado por um escritório de advocacia de Goiânia, mostra, num tom comercial, supostos benefícios de se entrar em um processo de recuperação judicial.
As 10 páginas do folder eletrônico trazem uma lista de motivos para tentar convencer produtores endividados a adotarem a medida. No texto, é dito, por exemplo, que “a recuperação judicial é a melhor ferramenta para que o produtor rural, que deve mais de R$ 15 milhões, consiga pagar todas suas dívidas”.
Mensagens como essa têm sido compartilhadas com mais frequência em redes de relacionamento do setor e alarmado algumas entidades do setor, que vêem nesse tipo de iniciativa um indício de que uma espécie de indústria da recuperação judicial pode estar se instalando no ambiente rural brasileiro, aproveitando-se de um período de maior dificuldade financeira no campo.
Nesta quinta-feira, algumas dessas entidades começaram a se movimentar em uma reação em sentido contrário. Andav (Associação Nacional dos Distribuidores de Insumos Agrícolas e Veterinários), Anda (Associação Nacional para a Difusão de Adubos), Anec (Associação Nacional dos Exportadores de Cereais) emitiram notas simultâneas manifestando preocupação com a “banalização dos requerimentos de Recuperação Judicial” Esse pequeno alvoroço movimentou entidades ligadas ao agro, que se posicionaram contra essa espécie de clima de “indústria da recuperação judicial” que está sendo criada.
A nota da Anec, por exemplo, afirma que a entidade recebeu informações que produtores têm sido alvos de “ofertas de forma indiscriminada e muitas vezes mal-intencionada” para adotar a RJ como meio de renegociação de dívidas e contratos.
“Alertamos que a crescente procura por esse procedimento, muitas vezes escolhido sem o devido critério pelo produtor, levado a ele por desinformação ou má-fé, tem um custo para toda a cadeia econômica e para a imagem do país no exterior”, pontuou a Anec.
Já a Andav diz que a proliferação do uso de RJs pode “prejudicar a confiabilidade que precisa vigorar entre os agentes econômicos que atuam no setor”.
“O crédito é um insumo muito importante na agricultura, e as ferramentas de gestão de risco são fundamentais para seu equilíbrio. É imprescindível considerar que a Recuperação Judicial não é o instrumento capaz de resolver todos os problemas de endividamento do produtor rural, tampouco pode ser usada como base para obtenção de vantagens”, afirma.
Segundo a associação, o processo de RJ deve ser a última alternativa para resolver problemas com dívidas.
Antônio Prado Neto, executivo experiente no agro, acredita que o grande problema desse tipo de marketing pró-RJ traz uma sensação de que a recuperação judicial é algo simples e corriqueiro, e que pouco afeta o negócio do produtor.
“Vendem a RJ como uma facilidade. Já acompanhei clientes nesse processo e existe uma série de questões com interventor, permissões a serem pedidas para juiz. Não é simples. Para alguns pode ser a única saída, mas muitas vezes vemos o tema pintado como se fosse o primeiro recurso”, afirmou.
Neto atua no agro há 30 anos, já presidiu a Agrex e teve passagens longevas pela Bunge e pela Monsanto. Ele ainda ressaltou que crises e desafios são inerentes ao agro, e que mesmo com problemas climáticos, de câmbio, pragas e de queda de preços, sempre foi possível sentar com os credores para resolver o problema.
“Na safra 2015/2016, tivemos um El Niño forte, que afetou muito o Matopiba. Onde trabalhava na época, 100% dos agricultores do Piauí não conseguiam pagar a conta, pois estavam colhendo 20 sacas por hectare. Sentamos com todos eles e avaliamos a situação, prorrogamos os pagamentos. No fim ,todos pagaram a conta e tocaram o negócio, sempre crescendo”, conta.
A Anda também registra ter notado que produtores rurais vêm sendo procurados por prestadores de serviços para aderir a RJ. Por isso, divulgou um comunicado incentivando-os a buscarem mais informações sobre o tema e sobre boas práticas e regras de negócio da área.
“Reforço que as entidades têm que bater firme nesse tema. Não é assim que o agro é tocado. Esse não é o primeiro problema que o setor enfrenta e não será o último, e se quisermos resolver tudo dessa forma, teremos sérios problemas”, finalizou Antônio Prado Neto.
Tema quente na semana
O tema das recuperações judiciais têm ganhado espaço nas discussões do setor. De fato, houve uma aceleração no número de pedidos de acesso a instrumento de proteção nos últimos meses.
Segundo a Serasa Experian, de janeiro a setembro de 2023, o agro somou 80 pedidos de recuperação judicial. O dado, que é o mais recente da instituição, já mostra um avanço de 300% frente ao número de pedidos vistos em todo 2022.
Apesar do percentual chamativo, o número ainda é uma gota frente ao mar de produtores rurais nacionais, que segundo o IBGE, passam de 5 milhões.
A temática também ganha força nas discussões políticas e setoriais dentro de uma safra 2023/24 complexa, onde muitos produtores enfrentam quebra de safra devido a problemas climáticos causados pelo El Niño somados a um preço de grãos abaixo do visto nos últimos anos.
Na quarta-feira (7), o próprio ministro Carlos Fávaro, do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), reconheceu a importância de se discutir a renegociação de dívidas dos produtores, mas pregou cautela.
"O momento pede atenção do governo. Fazemos cálculos e pensamos, com cautela, as medidas que podem ser tomadas. Estamos usando as experiências de todos os governos do presidente Lula, que investiu em linhas de crédito e novas tecnologias, faremos o mesmo em 2024", afirmou ao AgFeed durante visita ao Show Rural Coopavel, feira de tecnologia agrícola que está sendo realizada em Cascavel (PR).
Neri Geller, secretário de política agrícola da pasta ainda declarou, no mesmo evento, que o Ministério “não vai sair atirando para qualquer lado e bagunçar o mercado”. “Se instalarmos o caos, estimulamos até processos de recuperação judicial, o que desestabiliza o sistema financeiro", afirmou o secretário”.
Nesta semana, a Elisa Agro, empresa de agricultura irrigada, entrou com seu pedido de RJ. A companhia possui dívidas de R$ 680 milhões, sendo R$ 327 milhões em um CRA, emitido para expandir o negócio.
A questão é que o grande argumento para a proliferação de RJs no agro tem sido o momento difícil dos produtores, que, principalmente no Centro-Oeste, enfrentam uma safra difícil por conta da seca.
Um especialista no agro ouvido pelo AgFeed classificou esse caso da Elisa Agro como um exemplo claro dessa proliferação exacerbada de RJs no setor. “Como foi a ‘venda’ deste CRA para o mercado? Além disso, toda a expansão estava pautada em áreas irrigadas que, na teoria, não deveriam sofrer com mudanças climáticas ou falta de chuva”, questionou o especialista.
Outro advogado, ligado a um grande escritório que atua junto ao agro, também criticou a postura de firmas que têm incentivado empresas e produtores a recorrerem à RJ. Ele disse ao AgFeed ter visto o folder digital do escritório goiano. "Do ponto de vista da OAB, tem um lado mercantilista bem complicado no material", disse.
"Entendo que materiais como esse podem induzir produtores a pedir RJ sem que exista uma análise completa e necessária sobre a crise em cada caso. Os altos custos envolvidos e a dificuldade de acesso a dinheiro novo, por exemplo, podem levar parte desses produtores à falência".