A colheita da soja começou nas últimas semanas em algumas regiões do Brasil, ainda trazendo dúvidas sobre o real impacto do clima sobre a produção brasileira. É consenso que a safra perdeu mais de 10 milhões de toneladas em relação ao seu potencial inicial, mas a diferença nas estimativas ainda é grande, gerando um debate intenso nas redes do agronegócio.
Uma das referências para o mercado são os levantamentos mensais da Conab, Companhia Nacional de Abastecimento. O primeiro relatório do ano trouxe um corte expressivo na produção esperada de soja, de 160,2 milhões de toneladas estimadas em dezembro para 155,3 milhões de toneladas agora.
Segundo a Conab, chuvas mal distribuídas e temperaturas elevadas influenciaram de maneira negativa tanto o plantio como como o desenvolvimento das lavouras.
Apesar do corte, o número projetado, se for confirmado, ainda representa uma safra recorde de soja, já que em 2022/2023 a produção foi de 154,6 milhões de toneladas, pelo cálculo da Conab.
A estimativa, porém, está bem longe do que muitas consultorias de mercado já trabalham atualmente, algo em torno de 150 milhões de toneladas. E fica mais distante ainda quando se compara à percepção de quem está no campo, junto aos produtores.
O analista Eduardo Lima Porto mora em Sinop, Mato Grosso, e chega a percorrer quase 8 mil km por mês visitando lavouras e conversando com produtores rurais.
Em entrevista ao AgFeed, Porto disse que a quebra pode chegar a 30 milhões de toneladas em relação ao que se esperava colher no País. Neste cenário, não descarta que a safra fique em 135 milhões de toneladas, embora ainda considere muito cedo para ter uma estimativa mais exata.
“É muito prematuro se inferir neste momento um volume para as perdas. Do lado dos produtores, isso se verifica, na prática, apenas depois do produto ter sido colhido e padronizado. O mercado saberá um tempo depois quando saírem os relatórios dos embarques de exportação qual será a quantidade efetiva da oferta.
Nem mesmo o consumo doméstico é passível de ser mensurado com exatidão durante uma boa parte do ano, já que a indústria local não disponibiliza dados atualizados”, afirmou Lima Porto.
Entre as principais consultorias do País, diversos cortes nas estimativas vêm sendo feitos, em função de problemas com calor e chuva irregular não apenas em Mato Grosso, mas também em outras regiões do Brasil.
A projeção mais pessimista, porém, ainda fica acima da expectativa de Porto – o grupo Labhoro estimou 145 milhões de toneladas, recentemente. Já outros grupos como Safras & Mercado, AgResource e StoneX trabalham na faixa entre 149 e 153 milhões de toneladas.
Algumas empresas preferem divulgar suas projeções ao mercado (mesmo fazendo revisões, se necessário, semanalmente, aos seus clientes) em intervalos maiores de tempo. Céleres e Agroconsult, por exemplo, nas estimativas do fim do ano, ainda apontavam 156,5 milhões de toneladas e 161,6 milhões de toneladas.
Eduardo Lima Porto desconfia de algumas metodologias utilizadas, ponderando também que há interesses em jogo de quem tem interesse em comprar mais barato, por exemplo.
“Estimar volumes potenciais de produção, tomando como base as imagens de satélite e multiplicando por um rendimento médio histórico, é uma forma muito superficial de se avaliar a realidade à campo”, diz.
“As imagens não medem a altura da planta, não mostram atributos fundamentais como a florada, número de vagens, quantidade de grãos por vagem e muito menos o peso específico dos grãos”, alerta o analista.
Situação em Mato Grosso
Porto conta que, no caso de Mato Grosso, as localidades onde a situação está “muito ruim” são parte de Sorriso (que declarou situação de emergência), Lucas do Rio Verde, Tapurah, Nova Mutum, São José do Rio Claro e Diamantino. “Verificamos problemas muito sérios nas cidades que ficam no entorno destes polos”, disse.
Entre os mais afetados estão os produtores de algodão segunda safra, que iniciaram o plantio da soja nos primeiros dias de setembro. “Segundo a tabela do IMEA que mostra o avanço do plantio no Estado, mais de 70% da área total foi plantada até o final de outubro, revelando que o potencial de comprometimento é muito sério”, afirma Porto.
Ele admite que “nem tudo é negativo no Mato Grosso”. Algumas regiões conseguiram escalonar o plantio à espera de uma condição de umidade mais adequada. Nessas áreas, segundo Porto, se verifica uma situação bastante diferente e com perspectivas positivas de colheita, eventualmente não tão boas como em anos anteriores, mas comparativamente muito melhores do que as áreas onde a seca condenou grandes extensões.
“Dentre os municípios que estão em situação razoável, cito Claudia, Santa Carmen, parte de Vera até Guarantã do Norte. Os relatos da região de Colíder, Nova Canaã do Norte, Alta Floresta e a região do Alto Xingu são mais otimistas”.
O analista Vlamir Brandalizze, que nesta quarta-feira participou de um evento em Canarana (MT), diz que está encontrando situações distintas no estado, também tendo visto “lavouras muito boas”.
“A safra de Mato Grosso deve ser menor do que no ano passado, houve muitas perdas, mas ainda assim será uma safra grande”, afirmou.
O analista pondera que apesar de fortes perdas no início de safra “ainda há muita soja no campo, se desenvolvendo bem”.
Ele diz que entende a situação do produtor do estado, que verifica as perdas na produção, enquanto tem visto os preços da soja seguirem sem reação.
Segundo Brandalizze, de ontem para hoje, por exemplo, houve uma queda de R$ 2 por saca na soja balcão, apesar do corte feito pela Conab. Em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, hoje se via ofertas de R$ 123 e há um mês estava R$ 140, segundo ele.
“Não adianta olharmos somente para a própria lavoura. O mercado de Chicago tem perdido sustentação porque na Argentina, por exemplo, a semana começou bem novamente”, destacou Brandalizze.
O analista diz que o fato de ainda ter “quase 25 milhões de toneladas de soja da safra passada que ainda não foram negociados também acaba influenciando e o prêmio fica fraco.”
“Catástrofe” à vista
O analista Eduardo Lima Porto avalia que este cenário, em alguns casos, trará “consequências literalmente catastróficas do ponto de vista financeiro”.
Segundo ele, “muitos produtores se encontram alavancados, com dívidas pesadas contraídas quando a SELIC estava em patamares muito baixos e quando os preços giravam na região na faixa de R$ 150,00 por saca”.
Porto afirma que este ano muitos produtores podem buscar renegociação de dívidas e outros poderão recorrer diretamente às Recuperações Judiciais.
“A situação afetará gravemente o setor de distribuição de insumos agrícolas (revendas), que vem há anos operando com margens estreitas e em alguns casos até negativas”, alerta o analista. Ele lembra que “o crédito já está mais caro, escasso e altamente seletivo”.
Perguntado sobre uma possível piora em relação aos problemas de 2023, Porto respondeu que deve se agravar “não só em decorrência da quebra de produção, mas sobretudo pela conjuntura doméstica e internacional”.
“Se posso deixar uma recomendação, diria aos produtores rurais do Brasil que devem estar cansados de ouvir a frase de que o ‘caixa é o rei’, agora terão que assumir o papel de ‘reis do caixa’”.