O italiano Davide Ceper, que fala português perfeitamente, desembarcou em São Paulo para participar nesta segunda-feira, 7 de agosto, de um tradicional encontro das principais lideranças empresariais do agronegócio.
Antes de tomar o rumo de São Paulo, conversou com o AgFeed sobre o andamento do ousado projeto da Varda, empresa que lidera, de criar "um número de passaporte" – ou um CEP, numa analogia com os códigos postais – para cada talhão agrícola pelo mundo, que prioriza, desde o começo, países como Brasil e Estados Unidos.
O CEO da startup, controlada pela gigante de fertilizantes Yara, estará no primeiro painel do Congresso Brasileiro do Agronegócio, que é organizado pela B3 e pela Abag, entidade que representa as maiores empresas do setor.
O tema do painel é inovação nas cadeias produtivas, um assunto que na visão do executivo, passa pela espécie de “missão" que a Yara, com a Varda, vem tentando disseminar entre os principais players mundiais do agronegócio.
"Um dos componentes fundamentais para favorecer a inovação é a colaboração”, afirma Ceper. “E a colaboração só é possível quando as pessoas falam a mesma língua. É isso que estamos buscando ao criar um ecossistema colaborativo para tentar resolver este problema chato, que todo mundo reconhece, que é essa questão do mapeamento dos talhões".
Na conversa com o AgFeed, por diversas vezes o CEO da Varda repetiu que os produtores rurais brasileiros que já adotam práticas sustentáveis precisam receber "uma recompensa” por isso.
Ele considera que, apesar de obter altas produtividades, estes produtores estão em desvantagem em relação a outros países em que os subsídios são altos e o acesso ao mercado de carbono funciona melhor.
O foco na colaboração tem levado a Varda a conversar com diferentes empresas. Uma das primeiras parcerias da startup, fechada no início do ano, foi com a Syngenta, para que tanto a gigante de defensivos quanto a própria Yara adotassem o principal produto da Varda, chamado de Global Field ID, colaborando para enriquecer a base de dados desta identificação única para lavouras e talhões agrícolas do mundo inteiro.
E até concorrentes da Yara têm se sentado à mesa. Na semana passada mais um acordo foi fechado, desta vez com outro grande grupo global de fertilizantes, o ICL.
"Pela primeira vez as filiais digitais de dois produtores globais de nutrição se unem para avançar na rastreabilidade", destacou o comunicado conjunto.
Nem tudo tem saído exatamente como o planejado pela agtech. No lançamento da Varda no Brasil, em maio deste ano, o AgFeed destacou que o projeto estava muito focado em expandir o mapeamento com base na colaboração de diferentes empresas, que alimentariam o sistema a fim de criar este cadastro único.
Davide Ceper explicou que existe o interesse das empresas, mas que há entraves legais e éticos que tornam o processo mais complexo, já que são necessárias autorizações específicas de cada produtor, em cada plataforma de cada player, por exemplo.
"Por isso resolvemos investir na tecnologia por satélite, que não precisa de permissão de ninguém, que é instalada no mundo inteiro. Com os dados que terminamos de processar esta semana, para lançar o produto, estimamos no Brasil que são 15 milhões de talhões agrícolas, de várias formas e tamanhos", revela o CEO.
A opção pela tecnologia por satélite foi viabilizada por uma parceria anunciada em junho deste ano, com a norueguesa Digifarm.
A empresa utiliza modelos específicos e inteligência artificial que já teriam permitido mapear áreas agrícolas "com 94% de precisão, em mais de 400 milhões de hectares de 22 países".
No Brasil o CEO da Varda explica que o produto está disponível para que os clientes testem e repassem feedbacks a empresa. "Sabemos que o satélite por si só não traz 100% de acurácia. É uma primeira camada, que agora será melhorada", diz.
Nem a Varda, nem a Yara, revelam quanto já foi investido no projeto até o momento.
Até o fim do ano a startup promete formalizar parcerias com diversas empresas brasileiras, entre elas a Minerva, que já tem conversas avançadas, além de cooperativas e agentes financeiros.
Confira a entrevista com o CEO da Varda, Davide Ceper.
Como estão avançando os planos da Varda no Brasil?
O assunto que a gente trata é muito técnico e pouco entusiasmante no papel, afinal, falamos de identificadores. E para que eles servem? O que me motiva, pessoalmente, é pensar no futuro quando o Field ID seja realmente um padrão de troca de dados no mercado, utilizado ao longo da cadeia do agro em geral.
Qual o grande benefício dessa identificação?
Quando isso ocorrer, poderemos atribuir um justo preço aos produtos da terra. Sempre falamos dos impactos ambientais e climáticos da produção agrícola. Estamos todos cientes que, por exemplo, 70% dos recursos hídricos do mundo, excluindo os oceanos, são utilizados na agricultura. Quase 25% das emissões de CO2 dependem da agricultura, sobretudo da redução do desmatamento, há também a questão da biodiversidade.
Estes são processos de certa forma inevitáveis e por outro lado evitáveis, porque se houvesse incentivo para o produtor sustentável, se o justo preço fosse pago, seria diferente.
Como isso seria possível?
Definir qual é a pegada ambiental de 1kg de farinha, de soja, de carne, é uma tarefa extremamente complicada porque requer juntar informação de várias partes. O que falta é estabelecer uma regra comum de identificação do território, dos talhões, porque eles são pequenas fábricas de comida.
Qual é o maior desafio nesse sentido?
A agricultura é uma atividade geoespacial por definição. O problema é que hoje não existe este padrão de identificação porque a fragmentação do setor é enorme. Cada um tem o próprio método de identificação, que, dentro de uma empresa funciona. Mas quando se tenta fazer a colaboração dentro da cadeia, esta linguagem comum que falta causa ineficiência. Nós conseguimos movimentar milhões de toneladas de grãos pelo planeta e essa complexidade torna impossível estabelecer a relação entre causa e efeito, saber quanto o que eu estou consumindo causa de impacto no meio ambiente. A comoditização é eficiente porque cria preços transparentes, mas penaliza produtores que estão sendo mais eficientes do ponto de vista ambiental.
Como o fato de ter uma código de identidade global muda isso?
Ao final, ter um Field ID significa ter um ponto de origem com identificador ao longo da cadeia, para que quem transporta, processa e consome grãos, as grandes empresas alimentícias, possam utilizar como referência e depois dar esta recompensa para os produtores que são eficientes, que estão fazendo agricultura renegerativa e assim por diante. Esta é um pouco da visão mais política, pode-se dizer.
Os planos estão sendo atingidos?
Tínhamos a meta de completar o mapeamento do Brasil, como nosso principal mercado fora da Europa e considero que é o mais importante. É onde há maiores interesses em jogo do ponto de vista da preservação, do aumento da produtividade e da busca de uma recompensa aos produtores. Neste sentido fechamos essa parceria com a Digifarm no mês de junho. É uma empresa norueguesa que faz delineação de polígonos utilizando tecnologia satelital e, muito eficientemente, informações e dados públicos, gratuitos, para criar a identificação com gráficos, utilizando imagens. A tecnologia satelital é a única que pode ser utilizada em qualquer situação e que não depende de cadastros nacionais, já que a maioria dos países não tem cadastros de talhões.
E a colaboração das outras empresas?
A nossa intenção originalmente era convencer empresas como a John Deere, a Bayer, a Syngenta, quem tivesse dados digitalizados, para que contribuísse, como se fosse uma cooperativa, na criação este mapa compartilhado. Esta era a ideia original. Mas isso requer inverter a ordem do processo, convencer os donos dos dados de que vão tratá-los de certa forma, convencer o produtor. Era absolutamente inviável. Por isso resolvemos investir na tecnologia satelital. A acurácia não é de 100%. Mas isso nos permite criar uma primeira camada.
O que o trabalho no Brasil revelou?
Com os dados que terminamos de processar esta semana, estimamos no Brasil que são 15 milhões de talhões agrícolas, de várias formas e tamanhos, do micro talhão até centenas de hectares.
É isso que já foi mapeado?
Sim, foram mapeados 60 milhões de hectares no Brasil, o que representa algo próximo de 80% das áreas agrícolas, excluindo pastagens. Nossa intenção é chegar a 100%, mas para testar o produto e pegar o feedback dos usuários era importante ter algo pronto o quanto antes.
Existe colaboração com empresas brasileiras?
Estamos trabalhando com um conjunto de empresas locais. Não quero falar os nomes porque alguns não temos autorização para compartilhar, mas alguns já posso citar, como o Minerva, de carnes, e as multinacionais como a Agmatix, da ICL, a Syngenta e a própria Yara. Há muitas outras que o nosso time local no Brasil está conversando para divulgar este identificador, porque a nossa visão é ter uma adoção completa por parte do agronegócio, quanto mais usuários tiver, mais eficiente ele será. É como o telefone. No começo eram poucas casas ligando uma para outra. Mas o valor deste tipo de serviço cresce com a densidade da rede de usuários.
Há algum outro produto da Varda que virá depois do Global ID?
A estratégia do negócio tem uma camada básica que é nossa infraestrutura, o serviço de base, que chamamos de Global Field ID, sem muita fantasia. A partir desta infraestrutura as pessoas perguntam: “e agora o que faço?” É aí que vem os vários serviços que podem ser construídos. A estratégia sempre foi desenvolver estas aplicações para financiar a sustentação e manutenção do Field ID. Ele vai ser um produto que, em teoria, é um serviço público, é gratuito para a maioria.
"Estimamos no Brasil que são 15 milhões de talhões agrícolas, do micro talhão até centenas de hectares"
Queremos cobrar das empresas e das organizações comerciais uma tarifa de manutenção, para poder eventualmente não depender mais do financiamento da Yara. O grosso deveria vir de aplicações, como por exemplo, favorecer a rastreabilidade, identificando a origem de produtos agrícolas.
Pode dar exemplos?
A nova lei da União Europeia quer evitar que produtos produzidos em áreas de desmatamento entrem na região. Já definiram isso para algumas commodities como café, carne e soja. Se você perguntar para uma trading, ela tem acesso a fazenda, mas muitas vezes o produtor é que faz a entrega. Aí você já não sabe a origem, pode ter vindo de uma área ilegal, com algum desmatamento. Se tivesse uma indicação como o Field ID, você conseguiria imediatamente identificar qual é esse talhão e saber se é compatível com a legislação, saber se foi desmatado antes de 2020 ou depois.
Um outro exemplo é o crédito de carbono. As regras foram criadas de uma forma que penaliza muito o agronegócio brasileiro. Com o Field ID poderia-se documentar quais são as fazendas e os talhões que estão aplicando agricultura regenerativa e assim ter um passaporte verde.
Já há tradings entre os parceiros?
Acordo fechado ainda não, mas já conversamos com três das quatro maiores no mundo. E duas delas no Brasil. A trava que existia é que não estávamos com o produto disponível ainda no mercado e é por isso mesmo que precisava ter a cobertura e o produto antes de avançar na conversa.
Há resistência por parte delas?
As tradings têm um papel fundamental para o Field ID. As empresas de insumos empurram a corda, mas as tradings puxam e têm a capacidade de implementar isso. Nossa aspiração é realmente estabelecer parcerias com todas elas porque nosso serviço é agnóstico. Tem um pouco de vantagem competitiva, mas atende sim a uma demanda, uma necessidade coletiva de transparência e de confiabilidade da origem do produto.
Os acordos poderão ser formalizados ainda este ano?
Sou otimista. Uma das metas deste ano era ter seis licenças globais assinadas. Já atingimos a metade disso até agora. No Brasil, há muita empresa local que tem tamanho e relevância maior do que algumas das globais que a gente tinha na nossa lista. E somos uma empresa pequena. Temos 35 funcionários neste momento. No Brasil são duas pessoas. Para mim, este ano o importante é validar a solidez do produto, pegar o feedback dos usuários para ver qual é o nível de qualidade dos talhões que a gente determina. Esta tecnologia tem que ter credibilidade, não pode gerar falsos positivos ou falsos negativos.
O produto já está disponível?
O "release” foi feito essa semana. O mapeamento foi feito. Hoje se você entrar no nosso portal com a localização do GPS, já podemos dizer qual é o talhão e a forma dele. O que está faltando é justamente a possibilidade de sobrescrever o talhão que ela mapeou e colocar uma versão mais apurada, mais precisa. Às vezes é uma linhazinha, tem um pedacinho de água no meio do campo que a gente precisa tirar do talhão.
"As empresas de insumos empurram a corda, mas as tradings puxam e têm a capacidade de implementar essa tecnologia"
Esse nível de detalhamento só poderá ser feito com o envolvimento dos usuários, mas estabelecer quem tem autoridade para fazer essa modificação é um assunto complexo. Imagina se você enxergar lá seu vizinho produtor e decide modificar todos os talhões dele? Precisamos ter uma cancela de acesso ou um mecanismo de verificação de quem é o usuário que está fazendo as modificações antes de dar essa funcionalidade.
O lançamento do Global Field ID é global?
O Brasil é o primeiro país fora da Europa. Mas a gente já tem feito o desenvolvimento de negócio na Inglaterra, temos já dois ou três casos de uso andando. O produto também está disponível na França e Holanda, há áreas agrícolas mapeadas, mas nós não dedicamos recursos de desenvolvimento do negócio lá, porque cada país tem a própria língua, tem a própria infraestrutura. Eu escolhi priorizar o Brasil e depois os Estados Unidos, lá vamos fazer mês que vem.
A área mapeada globalmente está em quanto?
Eu posso dizer que somando o Brasil são cerca de 120 milhões de hectares. Somente na agricultura brasileira estamos com 60 milhões de hectares mapeados. Portanto, a maior parte daquela área de lavouras do país, que estimávamos em 77 milhões de hectares, já está mapeada. Há algumas áreas na Bahia, no Espírito Santo, na fronteira da Amazônia, que ainda não estão cobertas.
Enfrentaram dificuldades no compartilhamento de dados com as empresas já parceiras? É por isso que agora se baseiam em dados de satélite?
Temos padrões de privacidade e éticos extremamente altos, porque nós sabemos que é um assunto muito sensível para a troca de dados. Sempre gera reações extremas do ponto de vista da categoria de informações. Aqui a gente está falando literalmente em conformação, tamanho e localização detalhada, nada mais do que isso. Mas mesmo essa informação tem que vir de uma fonte que tem a autoridade e a permissão para compartilhar. E as plataformas que atendem os produtores não têm esse direito, se não pediram para o produtor a permissão, o que gera um processo extremamente lento e complexo.
Já que a base é a informação por satélite, qual é o diferencial da Varda em relação a outras startups que já oferecem serviços ou banco de dados semelhantes?
O diferencial é que temos a visão de cobrir o território inteiro, coisa que as outras empresas geralmente fazem só para os clientes deles. A gente tem essa intenção de criar um identificador estável, que seja universal e possa ser consumido por todos os atores ao longo da cadeia. Isso permite disseminar esses identificadores nas plataformas que são utilizadas pelos produtores. Ou seja, se sou cliente da John Deere, eu tenho os meus talhões com esta empresa, cada um deles tem o próprio identificador. Ao lado dele, deveria aparecer o identificador internacional global. Esse trabalho não pretende que as multinacionais e as outras empresas que atendem os produtores substituam o que já têm, mas visa ter um identificador que atue como uma ponte para poder falar a mesma língua.
E isso vale até mesmo para os concorrentes?
A forma de negócio que temos é extremamente aberta, porque nós não temos restrições de trabalhar com concorrentes da Yara, ou concorrentes entre si. Fornecemos o serviço gratuito para o produtor rural. Se ele precisar, no futuro, saber quais são os próprios IDs, quais são os usos que eu tenho dentro da minha propriedade, terá acesso a lista. Já temos uma interface de usuário que você pode acessar pelo computador ou telefone celular e clicar sobre todos os talhões predeterminados da sua fazenda. Dessa forma, a grande maioria dos produtores que ainda não fez esse tipo de mapeamento terá acesso.
Para quem a plataforma será gratuita e quem serão os clientes que pagarão uma taxa pelo serviço?
Por enquanto, no lançamento com os primeiros parceiros, não estamos procurando rentabilizar porque é uma fase de qualidade, de ter o feedback, já que nunca foi feito algo desse tipo. A nossa meta é oferecer o serviço gratuitamente para, pelo menos, produtores rurais com até 1000 hectares. Mas vamos dizer que produtores em geral, na grande maioria dos casos, seriam usuários gratuitos, excluindo as mega fazendas que são mais corporações.
"Consideramos que esse é um serviço público, é como dar nomes nas ruas. Não é algo que deveria ser pago pelo usuário"
No caso de ONGs, instituições acadêmicas, universidades ou a Embrapa, por exemplo, a gente não pretende cobrar. Consideramos que esse é um serviço público, é como dar nomes nas ruas. Não é algo que deveria ser pago pelo usuário, é algo que o governo faz, temos que pagar o imposto.
Ou seja, acaba sendo um serviço pago, mas a um ente público...
No nosso caso, entendemos que empresas comerciais têm como pagar, mas estabelecemos vários modelos em função do tamanho, do interesse, da pegada que ela tem, da questão geográfica. Você escolhe o país. Cada uma delas tem um preço, que vai de poucos mil dólares até US$ 50 mil por ano. É o máximo que a gente pede para quem quer ter cobertura no mundo inteiro. Mas isso só vai ser cobrado quando tivermos efetivamente cobertura de pelo menos sete grandes países, em vários continentes.
Mesmo no Brasil, onde o mapeamento está avançado, a cobrança não vai ocorrer agora?
No começo não. Mas nossa intenção, de qualquer forma, terminando a fase de setup de feedback, a partir do ano que vem, já tendo os primeiros 12 meses de melhorias, aí pretendemos cobrar. Vai ter uma tarifa para quem quiser cobertura no Brasil inteiro. Mas a maioria das empresas pode ter interesse sobre uma pequena área e a gente cobraria. Mas vamos dizer que isso estará na casa entre US$ 5 mil e US$ 30 mil ao ano, é a nossa intenção. Depois, o mercado decidirá se isso é suficiente para o que a gente oferece.
O serviço pago e aquele gratuito são diferentes?
Sim, tem diferença nos níveis de serviço, tem o fato de você poder baixar a base de dados inteira ou somente alguns dados, de cada vez. Tem níveis de serviços diferenciados em função de quem é o usuário, isso sim, com certeza. Como nunca foi feito, a gente não tinha uma referência. Nós estamos inventando uma parte, olhando o que outras empresas de software fazem, mas a intenção é refinar isso.
Não haveria receio de outras empresas e de produtores de concentrar tanta informação em uma única plataforma?
Ainda avaliamos sobre qual o melhor modelo para entregar esse tipo de serviço, se é uma entidade comercial ou deveria mais ser uma espécie de consórcio ou sem fins lucrativos. Essa é uma das perguntas que nós ainda estamos fazendo dentro do conselho de administração. Pelo mesmo motivo que registros de identidade e de motorista não são emitidos por empresas privadas.
"Sabemos que existe um problema de duplicação de crédito de carbono. Queremos trazer transparência"
Portanto, há um racional para administrar dessa forma. Mas isso não tira o fato que as aplicações de valor agregado, como documentação de onde estão os créditos de carbono, em parceria com os produtores, em ferramentas digitais, tudo isso vai gerar o lucro. Mas a infraestrutura em si deveria ser o mais barata e aberta possível e o menos possível controlada por uma só entidade. A Yara está super alinhada com isso e fazendo isso pelo bem coletivo.
Você falou que três das seis licenças estabelecidas como meta já foram fechadas, certo? Quais são elas?
Yara, Syngenta e agora a Agmatik, que é o braço digital da CL, empresa israelense de fertilizantes. No Brasil pretendemos alcançar entre 10 e 20 empresas locais até o fim deste ano, porque já temos muitas conversas avançadas. Já temos a Minerva que decidiu usar e estamos em conversa com distribuidores locais e cooperativas.
Há uma meta financeira?
Nós não divulgamos isso, mas posso dizer que o objetivo é pelo menos sustentar o desenvolvimento e a manutenção da infraestrutura, com o serviço de valor agregado que geramos, até 2026/2027. O custo de desenvolvimento e de manutenção é elevado quando você considera o mundo inteiro. Os talhões mudam, se a gente pudesse fazer isso uma vez só, seria mais simples. Mas a cada ano você tem que repassar e analisar os dados, explicar e educar cada empresa, em cada país, sobre como fazer o uso. Eu imagino que tem o efeito multiplicador, mas no começo, os primeiros dois ou três anos são mais lentos, naturalmente.
Qual a diferença entre a parceria que já existe com a Syngenta e a que vai ser fechada com a Minerva?
Com a Syngenta foi uma parceria intelectual, no sentido de desenvolver o protocolo. Essa ideia de ter a nossa base de dados proprietária para não interferir com a propriedade intelectual ou a privacidade, essas questões foram feitas com eles, assim como determinados casos de uso. E tinha também um componente de fornecimento de um database inicial para a gente alimentar o Field ID. No caso da Minerva, eles têm uma empresa chamada My Carbon, que está desenvolvendo créditos de carbono no supply chain deles. Queremos ajudá-los utilizando o Field ID como ferramenta para justamente reconciliar informações que venham de várias fontes.
Pode dar mais detalhes?
O Field ID é o elo que nos ajuda a juntar as informações atribuídas ao mesmo talhão. Para fazer o cálculo de pegada de carbono, você tem que ser muito rigoroso e não misturar os dados com outro talhão, porque aí você vai prejudicar a credibilidade do resultado. Depois, idealmente, queremos utilizar o Field ID para dizer que aqui tem um crédito. E que ninguém depois venha atribuir um crédito ao mesmo talhão.
Seria um sistema anti-fraude?
Sabemos que existe esse problema de duplicação de crédito, quando é mercado voluntário e não administrado por uma autoridade pública. Isso está acontecendo nos Estados Unidos, por exemplo. Tem muito produtor que sabe que está fazendo projeto com uma empresa enquanto faz com a outra e vende duas vezes a mesma terra. Com o Field ID, queremos evitar que isso aconteça, porque prejudica a credibilidade do setor e das ferramentas que vão mobilizar as finanças verdes. Queremos trazer esta transparência.
A plataforma que está sendo aberta para o feedback dos clientes já tem algo relacionado a carbono?
Estamos desenvolvendo uma interface para permitir a quem faz projetos de créditos de carbono inserir os dados lá. Essa é uma das ideias que temos, mas ainda é um protótipo interno, não está pronto para o mercado. Para mim, é uma das coisas mais interessantes, porque, de novo, ajuda a trazer essa transparência universal. É como de fato ter uma bolsa, a Bovespa, quando antes as ações eram colocadas informalmente, é o equivalente do que precisamos evoluir no mercado de carbono. A gente quer fornecer um pequeno elemento da solução, que é nada mais do que atribuir um Field ID a um crédito que já foi desenvolvido por outros.
Muitas oportunidades, mas pelo visto não é fácil...
Tem uma benção e uma maldição nesse tipo de serviço. O lado bom é que as aplicações são potencialmente inúmeras, como todas que já citei, além de outras seis ou sete. Podemos, por exemplo, ajudar pequenos produtores em países da África onde não tem nenhuma identificação da propriedade rural.
E qual é a maldição?
Essa versatilidade da infraestrutura é a maldição, porque tira o foco e cada empresa tem um interesse diferente. Então, por exemplo, uma quer rastreabilidade, a Cargill quer fazer o controle de origem, a Yara de melhorar o uso de fertilizante verde. É algo que requer custo e tempo. As vezes acaba tirando o foco e pulverizando nossos recursos em múltiplas direções, diferente de uma startup que surge focada em uma coisa só.
O acordo da ICL é semelhante ao da Syngenta?
Não, é diferente porque eles vão ser de fato usuários, mas também vão nos ajudar a achar casos de uso em outros países. Vamos começar no Brasil e depois na Índia, mas eu acho que será interessante porque o acordo com a Agmatix, que é braço digital da ICL, é para ajudá-los a desenvolver e fornecer os próprios serviços aos clientes deles, porque eles trabalham com várias fontes de dados. Vocês nos fornecem infraestrutura e isso acelera tudo. É algo muito mais comercial, mas eu gosto muito deles porque eles entendem facilmente o que a gente faz.
No Brasil quem são os outros interessados?
Não podemos falar nomes ainda mas tem um banco, tem uma empresa de serviços de risco financeiro, tem vários distribuidores, empresas de análise de solo, traders. Na verdade, estão todos esperando para que a gente diga que o produto está pronto para que entrem, olhem e digam se realmente querem.
Existe alguma adaptação necessária para o Brasil?
O que a gente precisa fazer no Brasil, que não existe em outros mercados, é uma conexão com o CAR (Cadastro Ambiental Rural), uma ferramenta extremamente interessante. Não existe no resto do mundo algo parecido com esse tipo de ambição. O CAR é como se fosse um intermediário entre o que a gente oferece e o que poderia ser um produto super top, porque ele te dá o perímetro da fazenda. Isso é extremamente interessante porque a grande maioria das empresas no Brasil utiliza, como bancos, empresas de seguro, traders. Um dos pedidos que recebemos foi essa integração com o CAR, já estamos trabalhando nisso.
Pensam em fazer algo em parceria com o governo para isso também?
O CAR é uma ferramenta aberta. Na verdade, seria somente criar uma modificação no nosso código. Hoje usuário do Field ID pode mandar uma localização GPS ou desenhar uma área e dizer o que ele quer, ou mandar um polígono próprio, dizendo que é seu talhão e quer saber qual é o ID. Temos conversado com integrantes do governo para analisar possibilidades do uso do Field ID para projetos como demonstração de cadeias livres do desmatamento, mas é algo muito incipiente ainda.