No último dia 20 de maio, Agroicone e Partnerships for Forests (P4F), iniciativa britânica de fomento a negócios sustentáveis, lançaram o estudo intitulado “Sustentabilidade na cadeia da carne: caminhos para o Brasil e os aprendizados do P4F”.
Eu estava lá, e participei de debate com a participação de representantes do setor financeiro, do setor produtivo e da sociedade civil.
O estudo é uma boa sistematização dos desafios que a cadeia produtiva da pecuária enfrenta. A parte não muito boa é que de fato não há ali uma grande novidade ou uma “bala de prata”, como os próprios autores reconhecem.
Quando as pessoas me perguntam se eu voltei pra Abiec, respondo brincando que voltei, e voltei no tempo também. Tudo que aparece ali já discutíamos em 2009, quando entrei na entidade.
Basicamente, o estudo fala de estratégias para acelerarmos a implementação de boas práticas, acelerar e dar escala modelos produtivos sustentáveis, melhorar o acesso a investimentos, mensurar emissões, pagamentos por serviços ambientais, rastreabilidade e monitoramento e controle do desmatamento.
Apesar dos desafios na pecuária serem persistentes, não dá para dizer que não houve progresso nos últimos anos. A produtividade continua avançando, novas tecnologias surgem todos os dias, o ciclo está encurtando e isso traz impactos positivos ao meio ambiente.
Mas ao mesmo tempo em que, no conjunto, a pecuária melhora sua produtividade e reduz a área que ocupa, paradoxalmente o boi continua sendo usado como instrumento de uma ocupação desordenada do território, especialmente na fronteira agrícola da Amazônia.
Os sistemas usados pela indústria para monitorar sua originação evoluíram muito desde que começamos esse trabalho lá em 2009. Não quer dizer que a dinâmica dessa ocupação tenha sido resolvida.
No meu ponto de vista, basicamente falamos de dois macrodesafios da cadeia que envolvem todos os citados no estudo: o primeiro trata de se enfrentar um gap imenso que existe entre os melhores e os piores produtores na pecuária, a ponta e a base da pirâmide produtiva.
Na agricultura, quem era ruim já quebrou. Na pecuária ele persiste, e sem investimento e assistência não consegue sair do lugar nem reduzir seu impacto.
O segundo trata de garantir a origem legal do boi.
E já que falamos de uma cadeia produtiva, com vários elos interessados, a pergunta que se coloca é: quem pode fazer o quê em relação a esses macrodesafios?
Não me parece sensato ou produtivo que os diferentes elos da cadeia, incluindo aí produtores, indústria, varejo, insumos e setor financeiro, acusem-se mutuamente pelo que fazem ou deixam de fazer.
É óbvio que todos têm interesse em que essa cadeia funcione. E também é óbvio que todos sabem que poderiam fazer mais – e, às vezes, muito mais – do que o que estão fazendo.
Há uma carência crônica de lideranças em todos os lados e isso entendo que é parte da resposta para a falta de uma coordenação mais incisiva em torno desses desafios.
Mas entendo que há outro fator também importante que dificulta as ações em todos os lados e tem a ver com o limite do que o setor privado pode fazer.
Na Folha de S. Paulo, o banqueiro Candido Bracher pergunta com ar professoral em sua coluna “Como é possível que eles não se tenham dado conta?!”. Com tom indignado, afirma que resistir a pressões por sustentabilidade não é a melhor estratégia em um mundo que mira uma economia de baixo carbono.
Dá como exemplos a gritaria que veio do setor em relação à demanda europeia de produtos sem desmatamento e as reclamações do setor da carne em relação a autorregulamentação da Febraban que mira frigoríficos.
Segundo Bracher: “A melhor estratégia nesse caso seria uma ‘fuga para a frente’, procurando caracterizar o Brasil como o país de agronegócio mais sustentável do planeta.”
Concordo em gênero, número e grau com o nobre colunista. Precisamos sim caracterizar nosso negócio como sustentável. O problema não é esse.
Não temos “resistência à sustentabilidade”. Pelo contrário, temos perfeita clareza que nosso futuro no mercado global depende de garantir uma origem sustentável para nossos produtos.
A dita “resistência” nasce de arbitrariedades como medidas excludentes de acesso a mercados, ou de um setor demandar que outro faça o que ele mesmo não se aplica como regra.
Não temos “resistência à sustentabilidade”. Pelo contrário, temos perfeita clareza que nosso futuro no mercado global depende de garantir uma origem sustentável para nossos produtos.
Mas onde enxergo sim uma resistência muito grande é principalmente na obrigação de se reverter na esfera privada o resultado da inépcia que acontece na esfera pública.
Segundo o Relatório Anual do Desmatamento do MapBiomas, mais de 99% da área desmatada no Brasil em 2022 teve pelo menos um indício de irregularidade, mas as ações de autuação e embargo realizadas pelo IBAMA e ICMBio até maio de 2023 atingiram apenas 2,4%dos alertas de desmatamento.
Passou-se uma década da aprovação do Código Florestal e temos pouco mais de vergonhosos 2% de cadastros ambientais rurais analisados.
A regularização fundiária na Amazonia continua sendo um buraco negro. O boi está numa área pública grilada porque permitiu-se que a área fosse invadida.
O boi não tem rastreabilidade porque bancos de dados públicos não podem ser acessados e não se integram com outras informações.
A regularização fundiária na Amazonia continua sendo um buraco negro. O boi está numa área pública grilada porque permitiu-se que a área fosse invadida.
Eu fui testemunha privilegiada nos últimos anos, em Mato Grosso, do que uma gestão pública eficiente pode promover em termos de ganhos ambientais. O Estado destaca-se na forma como tem lidado com o desmatamento ilegal e a regularização ambiental. Ou seja, é possível sim, melhorar.
O Governo Federal relançou na semana de Meio Ambiente o novo Plano de Prevenção e controle do Desmatamento na Amazônia. É um bom começo.
Tudo o que precisa ser feito está descrito ali. Há vontade política. Há recursos, se não orçamentários, de fontes como o Fundo Amazônia. Há que se implementar com eficiência.
A indústria não vai fugir às suas responsabilidades. Os controles que implementamos desde 2009 para garantir uma originação legal na Amazonia vem sendo aprimorados e vamos estendê-los a todos os associados da Abiec em todo o país.
Pretendemos liderar o debate e as soluções para a rastreabilidade da cadeia pecuária. E são frigoríficos, e nenhum outro elo, quem ajuda produtores com inconformidades a encontrarem caminhos técnicos, jurídicos e administrativos para que se regularizem, enquanto fechamos o cerco nos ilegais que deveriam ser definitivamente expurgados da cadeia.
São os mercados que abrimos os que puxam a eficiência cada vez maior na produção.
Para garantir esse futuro sustentável que todos queremos, é preciso parar com o jogo de culpas. E que cada elo dessa cadeia assuma o que está na sua responsabilidade de fazer e implementar. Governo incluído.
Fernando Sampaio é Engenheiro Agrônomo e Diretor de Sustentabilidade da Abiec