Em uma rua estreita de paralelepípedos no meio do bairro de Pinheiros, em São Paulo, região famosa pelas opções gastronômicas e eventos culturais, uma parceria, a princípio curiosa, entre um restaurante vegano e uma startup de biotecnologia, foi revelada a convidados esta semana.
A startup Cellva demonstrou nos salões do restaurante Green Kitchen a aplicação prática de seu produto - uma gordura suína cultivada em laboratório.
No menu, o chef Vitor Asprino misturou cinco gramas do produto desenvolvido pela empresa a uma massa de proteína de ervilha que é utilizada na linguiça vegana da casa.
Se a parte da “carne” ainda está distante do sabor de uma proteína de origem animal, a gordura deixou uma marca um pouco mais duradoura no céu da boca de quem come. Afinal de contas, é um produto, de fato, animal.
“Essa gordura é mesmo de porco”, afirmou o CEO da Cellva, Sérgio Pinto. “Não somos uma empresa vegana, somos uma empresa de impacto. Vamos entregar um produto sem malefícios para o meio ambiente e nem para os animais, e com boa experiência de textura para quando se consumir.
As cinco gramas usadas na receita estão inseridas na conta das pouco mais de 20 gramas produzidas até agora pela Cellva, empresa criada no ano passado, num processo que dura 21 dias.
Como explicaram o CEO e a CSO, Bibiana Matte, ambos fundadores, a ideia da Cellva é expandir sua capacidade para produzir 150 gramas nesse mesmo prazo já num futuro próximo.
Até 2030, já considerando a construção de uma fábrica no final de 2025, a proposta é atingir 11 mil toneladas de gordura suína cultivada até 2030.
Responsável pela parte científica da startup, a CEO relatou que a cadeia produtiva da empresa se inicia a partir de uma biópsia feita em um suíno vivo, na qual são retiradas 5 gramas de gordura, que contém milhões de células.
Essas células são armazenadas no laboratório da Cellva, que fica em Porto Alegre, e congeladas num banco. Quando as células são descongeladas, passam por um processo de “alimentação” em biorreatores. Nele, entram em contato com proteínas, vitaminas e sais que permitem um processo exponencial.
Segundo a empresa, três semanas depois do descongelamento, a gordura de porco criada em laboratório está pronta para o uso.
“Desenvolvemos uma tecnologia com uma dieta a base de plantas para dar essa ‘sustância’ na célula e no crescimento dela. Fazemos a colheita do ingrediente, e essa cultura é para ser utilizada em diversos produtos. Utilizamos esse cultivo celular para produzir alimentos com uma redução de tempo”, comenta Bibiana Matte.
O tempo é o grande pulo do gato, que nesse caso pode ser o pulo do porco, da Cellva. Em um processo convencional de crescimento de um animal até o abate, são despendidos de 18 a 24 meses.
Como as células, se bem nutridas, conseguem se expandir exponencialmente, não são necessárias várias biópsias, já que uma coleta gera milhões de células e essas, por sua vez, vão se expandindo.
“A célula tem capacidade de, se bem estimulada, crescer e ter o próprio metabolismo. Temos bancos de células que têm capacidade de crescer em biorreatores, e não dentro dos organismos, nesse caso, suínos”, completou Bibiana Matte.
A executiva diz que a validade dessas células congeladas pode atingir de 30 a 40 anos, segundo alguns estudos recentes. Com isso a empresa se mostra tranquila em termos de base de células para as próximas fases do negócio.
Além disso, como a extração das células é feita por uma biópsia, o porco segue vivo após o procedimento. Outro aspecto destacado pelos executivos é a baixa necessidade de espaço.
“Ao invés de uma necessidade de terra para 40 mil cabeças de animais ao longo de três anos, fazemos isso num espaço reduzido. Ao invés de estar exposto a zoonoses, fazemos tudo num ambiente controlado”, ressaltou o CEO da empresa, Sérgio Pinto.
O grande desafio da Cellva é a escalabilidade, ou seja, fazer essa produção alcançar voos mais altos. Para atingir as prometidas 11 mil toneladas de gordura cultivada, o financiamento para aumentar as instalações e acelerar as pesquisas se mostra importante.
O aporte inicial, segundo o CEO, foi feito pelos próprios fundadores. Sérgio e Bibiana colocaram, de seus próprios bolsos, uma quantia superior a R$ 1 milhão.
Esse montante, segundo Sérgio Pinto, levou a empresa desde o ano passado até dois meses atrás, quando participou de uma rodada de investimentos. Nem os participantes nem os valores foram divulgados.
Apesar da demonstração do produto ter sido feita em um restaurante vegano, o cliente final da empresa será a indústria alimentícia.
“Não estaremos na gôndola. Vamos incrementar a indústria de alimentos, mas isso pode se estender a outras indústrias que utilizam gordura”, ressaltou o CEO.
Grandes indústrias alimentícias têm investido em produtos à base de proteínas alternativos. Mas geralmente o foco é na proteína em si e não na gordura.
Recentemente, a JBS anunciou que construirá a sua primeira fábrica em escala comercial de carne cultivada da sua subsidiária BioTech Foods, na Espanha.
O mercado entendeu o movimento como um complemento ao braço plant based da empresa. Esse universo, vale ressaltar, ainda é pequeno comparado ao oceano das proteínas tradicionais.
A Cellva é a sexta empresa no mundo a investir no desenvolvimento de biotecnologia para o cultivo celular de gorduras e lipídios, mas a primeira voltada para uso de ingredientes à base de plantas ao longo do seu processo de produção.
Outro desafio da empresa, além da escalabilidade, é o processo de aprovação junto à Anvisa. Para o CEO, demonstrações como a feita no Green Kitchen podem acelerar o processo. Nas estimativas do executivo, o sinal verde deve vir até, no máximo, o final de 2024.