Jorge Dinnebier, um ex-gerente do Sicredi, recebeu uma ligação inusitada em meados de 2023. Do outro lado da linha, um funcionário da Piá, tradicional cooperativa de leite de Nova Petrópolis (RS), pedia socorro. "Ele dizia: 'Vem nos ajudar. Estamos perdidos'", recorda Dinnebier.

A situação da Piá, cooperativa fundada em 1967 e que já havia sido um gigante na captação de leite no Rio Grande do Sul, era crítica naquele momento. Fornecedores de leite não estavam mais recebendo pagamentos, funcionários trabalhavam com medo do futuro e, para culminar com a situação, o então presidente Jeferson Smaniotto e toda a diretoria da cooperativa renunciaram aos cargos, em maio de 2023. "Existia um objetivo forte de inviabilizar o negócio", resume Dinnebier.

Logo após a renúncia, houve uma debandada dos produtores, temerosos do fim da cooperativa. Ao chegar ao comando, Dinnebier constatou que a Piá conseguia produzir apenas 7,8 mil litros de leite por dia, insuficientes para abastecer o varejo.

"A cooperativa vinha numa batida muito forte, com uma marca extremamente forte e produtos de boa qualidade e, de repente, sumiu do mercado."

Rapidamente, um trabalho de recuperação começou com Dinnebier e outros voluntários, que receberam autorização judicial para operar o dia-a-dia da Piá. Finalmente, em 19 de junho de 2023, ele foi eleito para um mandato-tampão, que terminava em março passado – e, quando terminou, acabou sendo renovado por mais quatro anos, indo até 2029.

Em paralelo, uma auditoria sobre o andamento da cooperativa entre 2017 e 2023 passou a ser feita e identificou irregularidades na condução da Piá no período.

Em outubro de 2024, o ex-presidente Smaniotto e integrantes de sua família foram indiciados pela Polícia Civil de Nova Petrópolis por associação criminosa, furto qualificado mediante fraude e lavagem de dinheiro que resultaram em um prejuízo inicial de R$ 1,6 milhão.

Entre diversas atividades, pouco antes de deixar o comando da Piá, o grupo teria tentado vender a cooperativa para a empresa Laticínios Pereira, de Toledo (PR), segundo informações do jornal O Diário da Encosta da Serra, de Ivoti (RS).

Dinnebier prefere não comentar o episódio. “São coisas que estão em segredos de justiça e com as autoridades competentes. Tenho duas equipes jurídicas tratando disso e tenho que pensar para a frente, em como eu vou conseguir tentar tirar a cooperativa desse momento crítico.”

De lá para cá, ele comandou um profundo trabalho de reestruturação da Piá, que agora projeta encerrar o ano de 2025 com uma produção de 200 mil litros de leite por dia. Em dez anos, a ideia é chegar a cerca de 400 mil litros por dia, segundo Dinnebier.

Hoje, no entanto, a realidade é bem diferente: a Piá capta cerca de 80 mil litros por dia, sendo em torno de 48 mil vindos diretamente de pouco mais de 100 produtores e o restante adquirido no mercado de leite spot.

Como forma de simbolizar a retomada, no fim do ano passado, a nova marca passou a ser estampada nos rótulos da cooperativa, com a manutenção do mascote-símbolo da Piá, o Piazito.

A reestruturação ainda não terminou, mas o pior já passou, segundo Dinnebier. "O começo foi bastante difícil e tumultuado. Começamos a fazer contas, rever processos e contratatos e passamos a traçar um plano de reestruturação, elencando prioridades", afirma.

Dinnebier diz que o foco da cooperativa até a chegada da nova diretoria estava na venda de leite UHT, e não em produtos lácteos.

"De 100 mil litros de leite que entravam, 87 mil litros eram envasados em leite UHT", exemplifica o presidente da Piá. "O leite UHT não dá uma margem de contribuição alta. Ele é uma porta de entrada para nossos produtos no comércio, mas não dá margem de contribuição positiva, não é o que sustenta a cooperativa."

Desde então, a Piá passou a elencar alguns derivados como carro-chefes em sua estratégia na tentativa de buscar produtos com rentabilidade maior. "Optamos por iogurtes, bebidas lácteas, requeijão, nata, doce de leite, chimias [geleias de frutas] e assim por diante."

Reestruturações internas também foram feitas. Dinnebier explica que, dos 760 funcionários que a cooperativas tinham, sobraram 245. "Tivemos que fazer um processo de demissão em massa bastante forte."

A Piá passou a se concentrar na indústria e vendeu operações de agropecuária e cinco supermercado que mantinha em Nova Petrópolis e cidades próximas.

A cooperativa não divulga mais publicamente seus resultados. Nos dados mais recentes apresentados, referentes a 2023, o ano mais crítico, houve um prejuízo líquido de R$ 58,8 milhões. O faturamento recuou a R$ 240,2 milhões, ante R$ 605,2 milhões no anterior. O endividamento havia batido R$ 249,2 milhões.

Nos últimos anos, com os baixos volumes de leite, a comercialização dos produtos da Piá, que antes eram encontrados nas gôndolas de grandes e pequenos varejistas do Rio Grande do Sul, ficou comprometida.

Hoje a cooperativa já está presente em cerca de 400 dos 497 municípios gaúchos, mas perdeu espaço em pontos importantes, caso da rede de supermercados e hipermercados Zaffari e Bourbon, a maior do Rio Grande do Sul, com 37 lojas no estado e duas em São Paulo.

"O Zaffari já me chamou pelo menos duas vezes para conversar, dizendo que queria voltar com nossos produtos e eu disse: 'Não tenho como voltar nesse momento, porque eu não tenho leite'".

Na hora de captar a matéria-prima, a cooperativa passou a buscar produtores de leite que estão num raio de 150 quilômetros da sede da cooperativa. Antes, o leite era trazido de municípios mais distantes de Nova Petrópolis, como Marau e Casca, o que encarecia os custos logísticos.

Hoje, a Piá recebe leite de mais de 170 produtores, mas, no passado, já foram de mil. A cooperativa também começou a renegociar valores em atraso com fornecedores. "A gente passou a propor: 'Compramos e pagamos o leite do mês em dia e pagamos 10% do atrasado'", afirma Dinnebier.

Mas, com alguns pagamentos ainda atrasados, a Piá ficou sem crédito na praça. "A cooperativa está devendo para alguns fornecedores, muito já botamos em dia, mas isso faz com que não tenhamos crédito. Ainda temos um grande passivo pela frente”, diz o presidente, que prefere não estimar o tamanho da dívida – segundo informações do jornal Pioneiro, de Caxias do Sul, ela seria de cerca de R$ 200 milhões, podendo variar, já que vem sendo renegociada.

A dificuldade de crédito também é um entrave para a produção da cooperativa crescer, segundo o presidente. “Se eu captar mais leite, tenho que conseguir pagar, tenho mais custo de insumos, de embalagens, e tenho que aumentar a minha venda. Não adianta eu captar leite, não ter dinheiro para envasar o leite e não ter como vender.”

Uma das saídas encontradas para reduzir o passivo e conseguir mais recursos no plano de reestruturação foi a produção para terceiros, explica o presidente.

A Piá tem uma indústria inaugurada na década passada com capacidade de industrialização de 1 milhão de litros e que nunca chegou ao potencial máximo – no auge, chegou a bater a marca de 680 mil litros. Hoje, a ocupação gira na faixa de 25%.

"Estamos procurando parcerias para otimizar a nossa indústria. A ideia é que venha uma outra empresa aqui, produzamos o que eles pedem. Eles nos pagam, nós entramos com a nossa expertise, com a nossa fábrica, e eles trazem os insumos, todos os insumos, e nos pagam por isso. No fim, isso diminui nosso custo fixo”, explica Dinnebier.

Com uma grande estrutura ociosa nas mãos, não é de se estranhar que outras empresas e investidores tenham interesse em adquirir os ativos que restaram com a cooperativa.

Dinnebier diz que já recebeu investidores e representantes de fundos interessados em fazer negócio. "Não dá para usar viseira e fechar portas, é preciso estar sempre aberto às negociações. Mas vender sempre é complicado, ainda mais em uma cooperativa", avalia.

"Nossa ideia é fazer parcerias, com modelos de negócio que precisam ser muito bem estudados e analisados."

Dinnebier avalia que as cooperativas deveriam se unir. Sem citar nomes, ele menciona o caso específico de uma multinacional. "Ela está bem, muito forte, atropela do mundo e isso não é legal", afirma o presidente, ressaltando a importância das cooperativas especialmente para os pequenos produtores, a base da Piá.

"Do todo, 68% dos nossos produtores são pequenos, produzem abaixo de 300 litros por dia. Como é que ficam esses produtores? A cooperativa tem também esse lado social."

O presidente da Piá fala com conhecimento de causa: seu pai foi um dos sócios-fundadores da cooperativa e produzia leite. "Eu vinha junto à cooperativa com ele para entregar o leite, na época, era tarrão, nada dessa modernidade de hoje, com os tanques. Cresci com a Piá.”

É valorizando a ligação com a cidade-sede da cooperativa que Dinnebier e sua diretoria estão trabalhando. "Na diretoria anterior, não havia ninguém daqui. Eu sou morador de Nova Petrópolis e os demais membros da diretoria também. Estamos na Capital Nacional do Cooperativismo."

Resumo

  • Após quase colapsar em 2023, com dívida alta e produção mínima, a tradicional cooperativa gaúcha Piá iniciou uma ampla reestruturação
  • A nova gestão cortou custos, reduziu o número de funcionários, vendeu ativos e mudou o foco do leite UHT para produtos de maior valor agregado
  • Produção diária da Piá subiu de 7,8 mil litros/dia em 2023 para cerca de 80 mil litros/dia no momento. A ideia é chegar a 200 mil litros até o fim de 2025

Jorge Dinnebier, presidente da Piá