Era para ter sido uma conversa. Acabou se transformando em um manifesto, que marcou a posição de um grupo de líderes do agronegócio em torno da agenda ambiental do governo federal.
Ana Toni, secretária de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente (MMA), tinha um encontro marcado, no dia 2 de setembro, com representantes de diversas áreas do agronegócio.
Quando o evento foi cancelado, na última hora, os presentes resolveram aproveitar a viagem a Brasília para, juntos, escrever uma carta aberta que explicitou posições em torno de pontos sensíveis como os compromissos do país em relação ao desmatamento.
O documento, endereçado a Ana Toni, tem o objetivo declarado de adiantar o assunto quando uma nova reunião for marcada – espera-se que na semana que vem, em São Paulo – e ampliar a discussão sobre o Plano Clima 24-25 e a nova versão da Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), um compromisso do Brasil com metas de descarbonização.
“O diálogo sobre Plano Clima e a NDC é público. Precisa ser público, porque afeta o Brasil de forma transversal, em todos os aspectos. Na política econômica, de segurança alimentar, de segurança ambiental, de combate às mudanças climáticas”, diz Pedro de Camargo Neto, um dos signatários da carta. Produtor rural e pecuarista, Pedro foi secretário de produção e comercialização do Ministério da Agricultura entre 2001 e 2002, no governo Fernando Henrique Cardoso.
“A apresentação de uma nova NDC é uma coisa muito séria, porque nada mais é do que a estratégia de desenvolvimento do país nos próximos 10 anos”, completa Marcello Brito, agroambientalista, secretário executivo do Consórcio Amazônia Legal e coordenador do Centro Global Agroambiental na Fundação Dom Cabral.
O documento (disponível no fim deste texto) tem 13 assinaturas, de representantes de organizações e empresas como Produzindo Certo, Abiove, Gapes, AgroSB, Rabobank, Abiec, Empapel, Abrafrutas, Ibá e SRB.
Para Brito, a carta aberta reflete duas preocupações principais. “Para a gente prometer uma meta [de redução de carbono], tem que ter um ponto de partida. Sair de X para chegar em Y. Esse X é baseado em cima do inventário nacional de emissões”, diz o secretário executivo do Consórcio Amazônia Legal.
“Nosso inventário está muito desatualizado. Ele levanta todas as emissões do agronegócio, mas não necessariamente as remoções do agronegócio”.
Para Camargo e Brito, os planos de redução de emissões de carbono partem de uma visão injusta com o agro. “A gente enxerga que tem ônus jogado em cima do setor, enquanto o bônus fica em cima de outros setores. Por exemplo: 18% da energia nacional vem de biomassa, produzida pelo agronegócio. O bônus está lá no setorial de energia, mas o ônus das emissões estão aqui no setorial do agro”, diz Brito.
“Fica uma imagem de que o agro é o grande responsável pelo problema climático. Não somos. Somos vítimas. A falta de água e as altas temperaturas estão tirando produtividade do campo”, dizCamargo.
“A gente entende que o carbono da produção do alimento que a gente exporta não deveria estar computado no Brasil, deveria estar computado lá no comprador. Quem vai deixar de passar fome é ele”.
A segunda grande preocupação dos dois signatários da carta é sobre a meta de desmatamento zero em 2030. “No último NDC, o governo assumiu um compromisso internacional e, um ano depois, ainda não foi claro o suficiente para falar como vamos cumprir, ainda não transmitiu uma segurança para nós”, afirma Camargo.
“Meu temor é que, ao jogar luz no desmatamento legal, a gente faça sombra sobre a questão do desmatamento ilegal. Ele diminuiu muito, parabéns ao governo, mas ainda está longe de ser aceitável”, diz Brito.
“Precisamos resolver o desmatamento ilegal para aí sim, à luz da melhor ciência, começar a discutir o desmatamento legal. Como hoje a gente não tem nenhum planejamento em escala nacional, estamos conservando áreas que poderiam ser de plantio e estamos plantando em áreas que deveriam ser de conservação. Tem que olhar um estudo territorial que mapeie como fazer, quando fazer e onde fazer”.
Íntegra da carta aberta ao Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas
São Paulo, 2 de setembro de 2024
Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas
Sra. Ana Toni
Secretaria Nacional de Mudança do Clima
Brasília, DF
Senhora Secretária,
Os signatários lamentam não terem tido a oportunidade de expressar pessoalmente na reunião programada para acontecer nessa data, e considerando a relevância e urgência, transmitem suas preocupações de maneira resumida nessa carta.
Existe amplo comprometimento do setor com a questão climática. O setor vive da natureza. É o primeiro a sofrer com o que já vem ocorrendo. Qualquer interpretação diferente não é justa. Dependemos do clima. A intensificação do efeito estufa resultou no aumento da frequência e intensidade de eventos climáticos extremos e em alterações nos padrões de precipitação e temperatura.
A produtividade agropecuária é altamente dependente do clima. Temperaturas excessivamente altas levam a dias de crescimento prejudicado. A precipitação pluviométrica reduzida afeta muito o crescimento das culturas agrícolas. Nascentes reduzem seus volumes chegando mesmo a secar. O setor é o perdedor pelo que ocorre e reforçamos a relevância de estarmos envolvidos nas discussões para construir possíveis soluções à conjuntura atual. Reiteramos aqui nossa disposição de atuar em conjunto.
Ao analisarmos os pontos apresentados no Plano Clima 24-25 para a agricultura e pecuária concordamos com suas intenções, porém destacamos alguns pontos. Primeiramente ainda não está claro qual será a contribuição e metas do setor agro para atingimento das metas a serem estipuladas pela nova NDC. Entendemos que tais metas estão em construção, mas ressaltamos o desafio de apresentar uma nova meta sem que tenhamos clareza de como tais objetivos serão atingidos pelo país e, qual será a participação do setor agropecuário nesse processo.
A redução das emissões de gases efeito estufa na produção agropecuária é relevante no caso doméstico, mas não é o principal ofensor a nível internacional. Desta forma, nos preocupa posicionar o setor como parte central do problema ou da solução. Não podemos perder de vista os combustíveis fósseis como o principal desafio a ser combatido.
No que tange ao setor agropecuário, promover uma agricultura moderna, de menor emissão de gases de efeito estufa e inserida como parte da solução para transição energética na produção dos biocombustíveis, é nosso maior objetivo. Porém, não
podemos deixar de ressaltar a agenda da adaptação na agropecuária. Assim como ressaltado anteriormente, o desafio hoje da agricultura e pecuária é além de continuar produzindo os mesmos volumes, ampliar a produtividade de alimentos, fibras e biocombustíveis - suportando o peso das mudanças climáticas que já ocorrem, provocadas por fatores conhecidos e não de nossa total responsabilidade.
Nesse sentido, ao invés de ampliarmos os compromissos do setor agro em termos de redução de emissão, devemos avançar em estratégias e propostas para fortalecimento da agenda de adaptação. Atualmente tal agenda está totalmente defasada, vide por exemplo, os escassos recursos para o seguro rural.
Um ponto central no Plano Clima, que foi ressaltado por várias organizações nas oficinas lideradas pelo MAPA, é que uma agricultura tropical que abastece 212 milhões de pessoas e ainda é exportadora de alimentos, exige uma contabilidade nacional adequada.
Vale ressaltar que atualmente o Inventário Nacional de Gases de Efeito Estufa ainda não contabiliza em sua totalidade a dinâmica de emissão e remoção do setor agropecuário. O Inventário não contabiliza as remoções do setor agropecuário, como resultado da adoção de práticas sustentáveis.
Um exemplo é que nos últimos 10 anos de Plano ABC a adoção das tecnologias, fomentadas por essa importante política pública, ainda não foram contabilizadas no inventário. Portanto, caso não haja uma agenda de aprimoramento na contabilização das emissões e remoções do setor agro no Inventário, as próprias metas que estão sendo construídas pelo Plano Clima não serão corretamente contabilizadas.
O trabalho que está sendo conduzido pela UFRJ no âmbito do BLUES, que pretende construir as curvas de descarbonização está sendo bastante interessante, porém, também não terá condições de representar a realidade do setor agro se não avançarmos de forma célere em aprimorar a contabilização das emissões e remoções do setor agro.
Além de contar com baixos índices de emissões, possuímos ainda capacidade de remover carbono. Com manejo sustentável das culturas e do solo e plantio de florestas, podemos contribuir com a redução das emissões líquidas do país. Nos chama atenção que o Plano Clima através do modelo BLUES, não está considerando as remoções de florestas plantadas (apenas de florestas nativas). Este ponto deve ser mais bem debatido e inserido na modelagem, pois o próprio inventário nacional e o IPCC consideram estas remoções.
Estamos aqui para firmemente participar e apoiar esse desafio, porém precisamos compreender com clareza os compromissos que serão assumidos.
O preparo da revisão para novas metas na NDC a ser apresentada ainda em 2024 exige ampla transparência. A apresentação da NDC representa um compromisso internacional de longo prazo da sociedade brasileira. Porém, o maior desafio neste momento não é ampliação da ambição na redução das emissões, mas sim a sua efetiva implementação.
Entendemos como relevante fortalecer a agenda doméstica de atingimento de tais metas ao invés de estabelecer novas metas internacionais que não estejam lincadas às legislações ou compromissos já estabelecidos pela política doméstica.
Mesmo que o Acordo de Paris estabelece o aumento constante de ambição em redução das emissões, entendemos que o governo brasileiro deveria ser cauteloso nesse momento. Uma estratégia deveria ser ampliar a ambição em investimentos no âmbito da adaptação ao invés de somente mitigação.
Essa agenda interessa diretamente os países em desenvolvimento impactados pelo resultado do desenvolvimento econômico estabelecido pelos países desenvolvidos ao longo dos últimos 100 anos. Essa sim seria uma agenda de interesse estratégico doméstico e do sul global. Uma grande oportunidade a ser liderada pelo Brasil.
Destacamos que no documento apresentado em Dubai - Ajuste e Esclarecimento á primeira NDC datado de 23 de outubro de 2023 - assumiu-se o compromisso expresso com clareza pelo Presidente da República Luís Inacio Lula da Silva com o “Fim do desmatamento legal e ilegal até 2030” alicerçado no PPCDAM. Quase um ano passou pós Dubai e ainda não conseguimos entender como pretendem cumprir o fim do desmatamento legal quando sequer o ilegal está equacionado.
Vale ressaltar que a meta do PPCDAM confronta diretamente o Código Floresta vigente e gera enorme resistência do setor agropecuário em apoiar as estratégias no âmbito do Plano Clima. Ressaltamos, novamente que as metas a serem estabelecidas estejam alicerçadas nas políticas nacionais vigentes já consolidadas.
O setor agro será o principal setor impactados pelas metas a serem estipuladas pelo Plano Clima. Caso não esteja engajado na agenda, dificilmente ela terá sucesso no longo prazo. Nos colocamos nesse contexto, para garantir que as estratégias que estão sendo construídas sejam um plano de Estado e não somente um plano de Governo.
Escutamos que existirão compensações ou indenizações quanto a redução do desmatamento legal, mas ainda não está claro a estratégia. Precisamos compreender como isso será realizado. Quais os critérios que serão utilizados. Entendemos também que estabelecer metas para o desmatamento legal zero neste momento nos parece complexo. O foco precisa ser no ilegal.
Compreender alterações, estudar seus efeitos, avaliar o futuro, evoluir, é sempre uma obrigação, porém antes de equacionar o desmatamento ilegal fica impossível condenar a supressão vegetal devidamente autorizada pela lei nacional.
Estamos aqui para auxiliar no que for possível o enfrentamento do ilegal, que melhorou, mas está longe do essencialmente necessário. As ações criminais persistem. A regularização fundiária é essencial no apoio ao homem, na redução da desobediência civil na procura da sobrevivência, no cumprimento do não desmatamento, porém tem avançado pouco na gestão atual.
Estamos unidos, mas a responsabilidade é dos poderes públicos. As ilegalidades que permanecem continuam nos atrapalhando muito. Reiterando, contem conosco, não se trata de crítica, mas de apoio construtivo na certeza que é complexo.
Vale ressaltar que a principal legislação que trata da ocupação territorial no país, o Código Florestal, está praticamente paralisada. Vimos muito poucos avanços estruturantes de avanço na agenda a nível nacional. Os estados estão avançando de
forma aleatória, sem coordenação ou alinhamento.
Além disso, vemos uma nova judicialização do Código sendo liderada pelo STJ no que tange ao tema de biomas. Tal contexto coloca em xeque nossa capacidade como país de integrar a produção agropecuária à conservação ambiental. Mais um exemplo de que nossos principais desafios são implementar os compromissos domésticos antes de criar novas metas internacionais.
Cabe também nesse momento uma reflexão quanto a estratégia de negociação internacional que está surtindo efeitos questionáveis. O uso de combustíveis fósseis não está reduzindo. Os eventos climáticos se agravam. Ao sediar uma COP em Belém o Brasil tem uma oportunidade de exercer liderança propondo mudanças, revisões de prioridades, na defesa, sem exagerar, do futuro da humanidade.
Teremos condições de posicionar a discussão nos desafios que de fato precisam ser solucionados. Reduzir o uso de fósseis, investir em adaptação, regulamentar o mercado internacional de carbono, consolidar o Loss and Damage Fund, efetivar o Global Stocktake, para melhor compreender os esforços para atingimento das metas no Acordo de Paris.
Tais ações deveriam ser prioridade ao invés de trazermos novas metas e novas ambições à mesa. A Convenção passa por uma crise de credibilidade para implementar o que já foi estabelecido. Ampliar as ambições e trazer novos temas à mesa trará ainda mais desconfiança a este importante fórum multilateral.
O Brasil tem características únicas que possibilita um posicionamento também único e de liderança. Uma matriz energética onde os combustíveis fosseis tem participação limitada. Um grande produtor de alimentos que atende mais do que sua população. O país ocupa a maior parte do bioma amazônico. Sua preservação é nosso maior desafio. Temos tudo para liderar esse tema.
Nossa participação no contexto global de combate as mudanças climáticas com a redução do desmatamento, e mais, com a ampliação da restauração florestal são de suma importância, mas não podemos penalizar o Brasil com compromissos inalcançáveis que somente nos penalizarão num futuro próximo, impactando a reputação do país bem como de importantes setores da estrutura socioeconômica do nosso Brasil.
Neste sentido, entendemos que o momento é de cautela na ampliação de ambições no que tange a mitigação a nível internacional ao passo que deve ser prioritário solucionar os compromissos e políticas públicas doméstica para assegurar que o Brasil tenha condição de ser um exemplo na transição para uma economia de base renovável. Quanto a isso, nos colocamos à disposição para aprofundar essa discussão.
Conte conosco.
Atenciosamente,
Signatários em ordem alfabética
Aline Locks – Produzindo Certo
André Nassar – ABIOVE
André Schwening – GAPES
Cristiano Rodrigues – AgroSB
Fabiana Alves - RABOBANK
Fernando Sampaio - ABIEC
João Adrien - ItaúBBA
Jose Carlos Fonseca – EMPAPEL
Luis Roberto Barcelos - ABRAFRUTAS
Marcello Brito – Centro Global Agroambiental/FDC
Paulo Hartung – IBÁ
Pedro de Camargo Neto – Pecuarista
Sergio Bortolozzo - SRB