A novela da rastreabilidade do rebanho brasileiro, que se arrastou ao longo de 2024, chegou a um possível final feliz - pelo menos em sua primeira fase. Resta aguardar o que acontecerá nos próximos capítulos.
O Ministério da Agricultura e Pecuária lançou oficialmente nesta terça-feira, dia 17 de dezembro, o Plano Nacional para Identificação de Bovinos e Búfalos, em evento em Brasília com a participação do ministro Carlos Fávaro.
O objetivo é identificar todo o rebanho brasileiro através de brincos ao longo dos próximos anos, de forma escalonada e gradual, até 2032, conforme adiantou nesta segunda-feira o AgFeed. Será criador um sistema de identificação individual obrigatório que vai permitir o levantamento do histórico de cada animal.
O novo sistema foi costurado em grupo de trabalho que vinha atuando desde maio, com a participação da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), que representa os grandes frigoríficos, Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA), além de outros representantes.
O setor conseguiu que a implementação da rastreabilidade fosse feita de forma gradual, ainda que obrigatória.
Em agosto, um grupo de diferentes representantes do setor como Associação dos Criadores de Nelore do Brasil (ACNB), Sociedade Rural Brasileira (SRB), Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ), Associação dos Criadores de Mato Grosso (Acrimat), entre outras, chegou a pedir em uma carta aberta ao Ministério da Agricultura que o sistema fosse desenvolvido ao longo de oito anos e que não fosse obrigatória.
O ministro Fávaro ressaltou o caráter colaborativo do sistema em sua fala. “Não estamos colocando um peso no ombro dos nossos produtores. O que eles vão fazer nos próximos sete anos que possa ter rebanho todo rastreado é simplesmente colocar no sistema o que já fazemos”, disse.
"A rastreabilidade é um ativo dos nossos produtores e vamos nos apropriar dos mercados mais restritivos e mais exigentes para que remunerem mais os nossos produtores", emendou Fávaro.
A partir de janeiro do ano que vem, o governo vai começar a desenvolver um sistema eletrônico de identificação. Serão feitos testes para a validação técnica do mecanismo, que vai interagir com os sistemas estaduais de rastreabilidade já existentes. Pecuaristas interessados poderão utilizar o sistema de forma voluntária nesse primeiro momento.
O mecanismo só começará a se tornar obrigatório de fato a partir de 2027, quando animais submetidos a vacinas como a imunização contra brucelose obrigatória para fêmeas vão precisar ser identificados com brincos. Hoje, a marcação é feita a fogo, prática que deve ser abandonada.
O ciclo total vai se completar em 2032, quando o governo projeta que todo o rebanho destinado ao abate esteja identificado.
Todos os bezerros com algum tipo de movimentação, ou seja, transporte para o frigorífico ou comércio entre fazendas, terão de ser identificados individualmente.
Desde 2002, o Brasil já possui um sistema semelhante, o Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (Sisbov), originalmente para atender às exigências da União Europeia após o “mal da vaca louca”, como ficou conhecida a encefalopatia espongiforme bovina.
A adesão ao programa, no entanto, é voluntária e muitos pecuaristas não viram vantagens em entrar no sistema.
Em paralelo ao mecanismo nacional, alguns estados foram lançando sistemas próprios, regionais, de identificação de animais.
É o caso de Santa Catarina, que tem um sistema desde 2008, e do Pará, que em setembro deu início ao seu programa com a ambição de identificar todo o rebanho em trânsito até dezembro de 2025, e de São Paulo, que, no mês passado, anunciou sua iniciativa.
Para Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Abiec, o alinhamento das ações estaduais é importante para fortalecer o sistema de rastreabilidade federal. "A gente precisa garantir que as iniciativas estaduais possam ser integradas no processo", afirmou à reportagem.
Sampaio também atenta para a necessidade de assistência técnica e financeira aos pequenos produtores para que possam adquirir os brincos necessários para a identificação dos animais. “Há um trabalho de educação e apoio que vai ter que ser feito junto aos produtores e fornecedores”, afirma.
O novo sistema do governo é focado no aspecto sanitário, deixando o foco ambiental para outra ferramenta que será lançada pelo governo também nesta semana, a plataforma AgroBrasil+Sustentável, a cargo da Secretaria de Inovação, Desenvolvimento Sustentável, Irrigação e Cooperativismo, e que ficou mais de um ano no papel.
O que se se sabe até o momento é que a ferramenta digital deve fazer o cruzamento de informações das propriedades rurais como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) com bases de dados de áreas índigenas e de presrvação ambiental, além dos sistemas oficiais Prodes e Terraclass, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), para identificar se há faixas de terra com focos de desmatamento, por exemplo.
Esse tipo de análise não consta no sistema de rastreabilidade que o governo lançou nesta terça-feira.
Pressionados pela União Europeia, cuja lei antidesmatamento prevê a rastreabilidade individual do gado, os frigoríficos esperam utilizar os sistemas em conjunto para comprovar que determinados de carne bovina não tem qualquer relação com áreas onde houve desmatamento.
Como há demanda do mercado europeu por rastreabilidade por parte de grandes compradores, Sampaio, da Abiec, projeta que o processo de verificação do rebanho pode acontecer até mesmo de forma mais rápida do que o esperado.
“Se tiver incentivo do mercado, a gente entende que, ao menos para o rebanho comercial, grande parte do processo pode ser acelerado. Mas tudo vai depender do mercado.”
Produtor foi “voto vencido”
Para Francisco Castro, presidente da Comissão Nacional de Pecuária de Corte da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o novo sistema desmonta um "quebra-cabeça" que foi criado a partir da criação de diferentes sistemas regionais.
"É muito temerário cada estado fazer a sua rastreabilidade sem ter uma base nacional de integração de todos os estados", afirma Castro.
"Cada um cria o seu sistema, depois um não conversa com o outro, e os animais transitam de um estado para o outro. Saem do Pará, passam pelo Mato Grosso, vão para São Paulo, e se cada um tiver o seu sistema, como que você vai conseguir integralizar tudo isso?", emenda.
Apesar de ver a criação do sistema como positiva, a CNA foi voto vencido dentro do grupo de trabalho que criou o mecanismo, segundo Castro. A confederação defendia que a rastreabilidade fosse voluntária e acontecesse gradualmente, ao longo de oito anos, mas enfrentou oposição dos demais integrantes do grupo.
"A nossa proposta era que, depois de oito anos, cada Estado ficaria com a liberalidade de decidir se vai querer que seja obrigatório ou não", afirma Castro.
A ideia também era que houvesse um incentivo para a adoção da rastreabilidade por parte do mercado, com pagamento de prêmios, e não imposta por lei.
Como não houve concordância com essa ideia, a CNA aceitou o meio termo, que o prazo de adoção fosse gradual, ainda que o sistema fosse obrigatório.
"Conseguimos o prazo de oito anos para que nesse período, o mercado acelere o processo valorizando a carne e a rastreabilidade", afirma Castro.